sábado, 1 de dezembro de 2007

CARAMBA !

O meu pai era caçador. Saía de manhã, não muito cedo, para o mato.
Calçava botas altas e calças velhas, assim como um casaco coçado, velho e fora
de uso.
À cinta, além da cartucheira, a merenda: pão, presunto e chouriço. Para ele e para a cadela que naqueles dias tinha o previlégio de come igual ao dono.
Para matar a sede, encontrava pelo caminho sumarentas e doces laranjas, bagos de uva esquecidos nas videiras depois da vindima, figos, enfim, qualquer fruta que encontrasse.
Enquanto mais novo ia sozinho com a cadela. Mais tarde, foi o meu irmão que se juntou a eles e caçava também.
Nunca caçavam muito. Duas ou três perdizes, um coelhito ou mesmo uma lebre, penduradas à cintura constituíam um belo galhardete.
Havia muita caça por aqueles lados. O pinhal cuidado e o mato roçado permitia às espécies nativas procriarem e desenvolverem-se sem poluição ou o inferno dos incêndios.
Recuando no tempo lembro-me de, pequena, acompanhar a minha mãe ou os empregados da casa, na época, a um pinhal que tínhamos no Casal Marques
Sempre gostei da vida do campo. Aí havia uma represa de água limpinha, um velho moinho que já não moia e um poço pequeno a que chamavam de “ chabouco” onde tirávamos água à cegonha ou picota ( é o mesmo ).
Havia, ainda, umas colmeias do vizinho onde íamos espreitar a azáfama das abelhas em volta da urze e que por vezes nos ferroavam Pedras enormes que separavam as terras e a ribeira cujo leito percorríamos descalços saltando de pedra em pedra.
Mais ainda. Se íamos para o pinhal à procura de pinhas e pinhões encontrávamos os ninhos das perdizes feitos de musgo e ervas secas, no chão, com ovinhos pequeninos salpicados de pintas castanhas e muitas vezes, também os próprios perdigotos em fila atrás da mãe perdiz. Confundiam-se com a paisagem, com o mato, tojos e carqueja. Nessa época, ainda, com o meu irmão por companhia, saíam de manhã, com a indumentária e atavio do costume que iam ficando de uns anos para os outros. A merenda para eles e para a cadela, que era também a mesma, compunha-se, como sempre de pão, presunto e chouriço, para os três. Aí as coisas mudaram um pouco.
Traziam perdizes, um coelho, cogumelos. Depois de uma boa meia hora, sentavam-se à sombra das oliveiras, na conversa e talvez uma boa soneca.
E era aí, perto das oliveiras, que se encontravam os cogumelos, grandes, castanhos a que se dá o nome popular de gasalhos.
Chegados a casa a minha mãe cozinhava as perdizes, ainda frescas, pois não eramos adeptos do ditado popular “ come-se a perdiz, com a mão no nariz “.
A receita culinária inventou-a ela mesma: púcara de barro, presunto da salgadeira, azeite do lagar, vinho tinto e o lume fraquinho das brasas retiradas do fogão de lenha. Fervia lenta, lentamente, durante horas até apurar.
Entretanto o meu irmão foi chamado para a tropa. Portanto o meu pai voltou a caçar sozinho.
Um Domingo de manhã a minha mãe declarou:
__ Ela vai contigo !
Era comigo. Pronto. Lá estava eu metida em trabalhos.
Agora o meu pai passava a caçar com dois cães: eu e a cadela !
Rumávamos para outros sítios mais fáceis de caminhar. Menos mato e menos pedras. E foi assim que descobrimos a casa onde moravam e moram ainda, as Carambas. Vida simples aquela. Não tinham nada, mas também não precisavam. Não trabalhavam. Não havia homens Só mulheres, excepto um muito velho, como velhas eram todas as Carambas. O velho morreu para lá dos cem anos e a mulher penso que já os fez, também.
Sentadas à porta de casa, ao sol, quando nos viam passar, diziam:
__ Caramba, somos muito velhas, caramba !
Por tudo e por nada a palavra escolhida era: caramba ! Daí o alcunha: Caramba.
Como subsistência utilizavam os produtos da terra que na sua maioria era espontânea, tal como: acelgas, leitugas, almeirôes e couves A broa, essa sim, cozida no forno artesanal, herdado de uns outros Carambas mais velhos.
Como a roupa durava anos a fio, também se comprava poucas vezes. E era da venda do porco criado na pocilga que vinha algum rendimento. Conta-se que, um dia, o velho Caramba levou o porco à feira com a finalidade de o vender.
Preso por uma pata com um baracito sujo, lá foram os dois a pé.
Chegados à feira, esperou pacientemente por um possível comprador.
Apareceu o Maia, que era homem de negócios, tão esperto como vigarista.
Cajado na mão, boina na cabeça, acercou-se e perguntou:
__ O seu porco come de tudo ?
__ Come, pois ! Come de tudo !
__ Ai, não come, não ! Disse a sorrir para ver até onde o velho, conseguia fazer o negócio.
__ Come, pois! Voltou a repetir.
__ Olhe lá. O porco come pedras ?
__ Ah ! Isso não !
__ É isso. Não come de tudo ! Assim não quero !
__ Caramba ! Só porque o porco não come de tudo, lá se foi o negócio ! CARAMBA!

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Menina Primavera

Juntaram-se todos na esplanada do café.
A relva fresca e verde dava um colorido especial ao ambiente. Quem eram ?
A Primavera, Outono,Verão e Inverno.
Casa um deles olhava com olhos gulosos a Menina Primavera que, alegre e estouvada não parava de falar e rir. Qualquer um deles, queria namorar e consequentemente casar com ela.
Ela, feliz, ria. Colocou na cabeça uns lacinhos cor de rosa e nos pés umas chinelas de taão alto.
O vestido com flores grandes, dava nas vistas. Cada um, finda a conversa, foi à vida, pensando na melhor forma de lhe agradar.
Com passadinhas miudinhas chegou o Verão, ainda “ enfeitado” com flores que sobraram da estação anterior. Com calor, muito calor levou as pessoas até à praia. Os
risos dos meninos a saltar nas ondas e a construir efémeros castelos de areia. As colheitas de frutos e cereais que amadurecem. O canto das cegarregas, animando a terra enquanto as formigas recolhem atarefadas os grãos que lhes vão servir de alimento no Inverno.
O fresco das manhãs, onde as gotas de orvalho, presas nas ervas parecem diamantes perdidos. As festas de Verão onde há cor, musica e alegria. Rapazes e raparigas rodopiando em bailes de aldeia.
Ainda despiu as pessoas fazendo mostrar os corpos dourados pelo sol. O luar de Agosto !
De tudo isto se muniu o Verão para oferecer de presente à sua amada.
Eis que, cansado de tanto esperar, apareceu o Outono.!!!!
Com a fúria dos apaixonados soprou as folhas das árvores. Varreu tudo em volta. Mas com doçura e para lhe agradar também, deixa cair as primeiras gotas de chuva. Comprou uma paleta de tintas e pintou o arco-iris no céu. A relva brotou, verdinha Contratou os vendedores de castanhas, que, contadas uma a uma, depois de assadas em grandes e quentes fogareiros, mergulham em pequenos cartuchos de papel de jornal. O fumo desses fogareiros deixam no ar uma neblina semelhante a nevoeiro ou chuva miudinha.
E foi aí que a Primavera se deixou seduzir e com muita ternura desceu à terra e fez alguns dias ensolarados e quentes pelo S Martinho.
Agora foi a vez do Inverno que chegou devagarinho, sem se fazer notar.
A Primavera teria bom gosto e seria o Inverno quem queria oferecer os presentes melhores. Trouxe com ele o frio gélido e noites pequenas. Um “ barbeiro” que nos enregela a espinha e o corpo todo !
Juntou as pessoas perto da lareira contando velhas histórias. Fez os rios e as ribeiras saltar das margens alagando tudo. Os animais, na corte, olham o campo pensando que, quando a chuva passar, haverá muita fartura de pasto.
Pensou melhor e para agradar ainda mais, pintou as serras de branco. Colocou neve branquinha lá bem no cimo dos montes. Em Dezembro colocou o Natal. Festa religiosa que os cristãos veneram na figura do Menino Jesus, nascido numa gruta por entre palas e animais.
Mais ainda. Termina um ano e inicia outro. Ninguém seria capaz de oferecer tanto !
Vaidoso, adormeceu. E dormiu bem quentinho por entre os cobertores de lã. De mansinho as flores começaram, de novo, a brotar. Os dias a crescer. E sem se dar por isso, chega Março com todo o seu esplendor.
É a Primavera que regressa mais uma vez !!
Juntaram-se todos de novo, curiosos e ansiosos por saber quem a sua menina iria escolher.
Ela olhou para os três. Riu com uma gargalhada sonora e foi embora levando consigo os sapatos de tacão alto e os lacinhos cor de rosa na estouvada cabeça. Tinha que pintar as flores, amadurecer os morangos e as maçãs. Ah! E dormir a sesta à sombra das árvores onde as folhas iniciam o processo de renascimento.
Tinha muito que fazer !!!!
Quanto a eles, ficaram por ali na conversa, lamentando ter tido tanto trabalho para nada. Nada. Não agradaram à Menina Primavera. E ainda agora o Verão o Outono e o Inverno continuam, com uma rotina que nem sempre é a mesma, a enfeitar-se, na esperança que a Primavera ainda escolha um deles para se casar.

As minhas Primaveras

Porque é que eu, no limiar do meu Outono de vida, hei-de falar da Primavera !
Embora seja uma estação do ano com encanto, a Primavera da vida não poderei já, vivê-la. Só recordar .....
E vou recordando a minha luta com os livros que ao abrir me mostravam o que de melhor havia na natureza, em outras paragens longínquas. E dou comigo cavalgando montes e vales, num cavalo branco com os cabelos ao vento, embora saindo em pensamento de dentro das páginas dos livros.
Assim conheci muito do mundo que me rodeia. Algumas primaveras e não só.
A cada página que eu ia folheando, via casas, árvores pessoas e pássaros.
E foi assim, no início da Primavera da da minha já longa vida, que despertei e conheci o MUNDO.
E a primavera renovou-se ainda mais, alguns anos depois. A Primavera renova-se todos os anos com encantos sempre diferentes.
Uma dessas Primaveras surgiu quando nasceu a minha primeira filha. Tinha nos seus olhos negros todo o brilho de dois sóis e na cara o rosado de um botãozinho de rosa.
Depois mais duas Primaveras se sucederam na minha vida: os meus dois rapazes.
Não menos rosados, não menos em flor.
E agora que o Outono da minha vida está a terminar e vou entrar na última estação: o Inverno, fez-se de novo Primavera ! Os meus dois meninos, de olhitos muito negros e faces rosadinhas: A minha Sara e o irmão Manelito
Natércia Martins

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Só a cabecita !!!!!

A Margarida Torneira era tão teimosa como uma torneira velha quando pinga, pinga e não há nada que a faça parar.
Nem uma bucha nova. Fica tudo na mesma.
Com a senhora Margarida Torneira, que Deus haja, era o mesmo. Fazia sempre a sua vontade, até mesmo quando o Sr José, seu marido, perdia a paciência, ela sempre a resmungar, até se calar.
Não tinha filhos. Mas aferrolhava tudo e fazia os possíveis e os impossíveis para não gastar dinheiro. Matar uma galinha ? Comer um ovo ? Isso era para os dias de festa E era quando, era.
Como já disse, a Sra Margarida Torneira não tinha filhos, mas gostava muito de crianças. Contava-lhes histórias longas e intermináveis nas noites iluminadas pela lua de Agosto durante as descamisadas ou debulha do milho
É que as noites quentes de Verão eram aproveitadas pelos vizinhos da minha aldeia na entreajuda dessas tarefas. Sem luz eléctrica, apenas iluminadas pelo luar ou candeeiro a petróleo, mais se ouvia do que via as espigas caírem dentro dos cestos grandes e fundos.
Nunca viu o mar. Não fazia a menor ideia como seria. Apenas sabia que era grande, fundo e azul. Nas suas histórias entrava sempre, como personagem principal, o Mar.
Porquê ? Nem ela sabia. Mesmo sem o conhecer gostava de falar dele.
E falar do mar, de areia, de peixes, de búzios, barcos e monstros no meio de serras e mato talvez fosse de uma imaginação assustadora. Era assim a Senhora Margarida Torneira.
O mercado semanal, único lugar onde se comprava e vendia os produtos da terra era à Segunda feira.
Entrava-se por um portão de ferro com enfeites em forma de lança e percorrendo um corredor empedrado ficava , de um lado o pão vendido e arrumado em cestos de verga. Os bolos em forma de bonecos de braços esticados, num cesto ao lado. Depois seguíam-se as couves, feijão verde, batatas, tremoços, cabritos e tudo mais que houvesse para comprar e vender. A lei da oferta e da procura.
Lá ao fundo, recordo bem, o monte de milho e grão de bico posto em cima de mantas da azeitona e medido com o alqueire de madeira, negro e sujo pelo tempo e pelo uso.
Do lado oposto, o peixe. Lá estavam as mulheres com caixas de sardinha acamadas e direitinhas como filas de soldados, cobertas de sal.
Contavam-nas com uma certeza que sempre me confundiu. É que nesse tempo a sardinha vendia-se por conto.
Também a Sra Margarida Torneira ia ao mercado com o marido. Única distracção. Aproximava-se da caixa da sardinha. Procurava as mais pequenas e mais baratas. Levava três ou quatro. Não precisava de mais. Chegavam para o seu Zé.
Ele bem queria que levassem mais, mas ela, teimosa, não consentia. Eram só para ele.
Chegados a casa, assavam as sardinhas nas brasas que ficaram no borralho. No prato dele luziam, com azeite e cebola picada, poisado em cima dos joelhos. O Sr José dava a primeira garfada. E era quando ela, devagarinho ia chegando o banquito de madeira para junto dele e baixinho começava:
__ Ah ! Zé, dá-me só a cabecita .....
Então ele explodia:
__ Filha da ....... comprasses mais sardinhas, como eu queria. Vai buscá-las ao mercado, sovina .....
Mas a Sra Margarida Torneira, teimosa, como uma torneira que pinga toda a noite, não ia comprar mais sardinhas, mas todas as Segundas-feiras atazanava a cabeça do marido:
__ Ah! Zé dá-e só a cabecita !!!!!!

sábado, 10 de novembro de 2007

A moda do " Grafanhoto "

Há pouco tempo estive lá. Subi devagar a calçada até à capela da Senhora do Livramento, na Portela.
A calçada pouco íngreme de pedra rolada da ribeira trouxe-me à memória a taberna do Xico Sapateiro.Pelo caminho fui encontrando as casas, hoje vazias e a cair, dos moradores de outros tempos, não muito longínquos.
A casa da D. Alzira, do Sr Benjamim, da Srª Emília e Sr Artur,do Zé Higino que era sapateiro e do Xico sapateiro que no fim de contas era taberneiro. Tinha uma varanda que servia de eira, sala de jogo da malha, de salão de baile. Ao Domingo os rapazes iam para lá jogar a malha e beber copos de vinho tinto com tremoços.
A malha de ferro voava até ao adversário no meio de um palavrão com a certeza de quem derruba por artes mágicas. Eram assim os Domingos à tarde, nas tardes calmas e soalheiras da canícula de um Verão no meio das serranias bordadas a mato e pinheiros.
E o Xico Sapateiro mais a mulher, dentro de um balcão feito de tábuas negras e surradas com lixo de anos.
Ele, homem dos seus cinquenta anos, lento, como lentos são os dias passados na aldeia, gordo e bochechas vermelhas.
Ela, a mulher, pedia licença a um pé para mexer o outro, ou seja, lenta, lentinha..... ainda mais que o marido, também de faces vermelhas, ria por tudo e por nada, enquanto as gargalhadas e conversas sem interesse se desenrolavam até bem perto da noite, hora que em silêncio se iam levantando do banco corrido colocado ao fundo da taberna.
O chão de terra batida e negro pelo pisar dos homens e das botas cardadas, do vinho entornado ia assistindo, tarde após tarde, ano após ano, sempre ao mesmo ritual.
Não havia nada, mais nada para fazer. E fui subindo a rua. Fui encontrando os seus moradores e ao mesmo tempo revivendo o tempo antigo.
Não se pense que recordar o tempo passado é o mesmo que ficar carpindo como um velho, agarrado ao passado e às mágoas . Sem passado não se pode construir o futuro.
Acredito que daqui a alguns anos aquela aldeia perdida na serra ganhe novamente vida, as casas renovadas, novamente fervilhem de vida como outrora. As crianças percorram aquela rua, agora quase deserta. A correr e a rir. O sino da igreja faça repiques de casamentos e batizados como naquele dia em que eu, também, al jurei fidelidade a um homem.
E volto às memórias antigas. E tão antigas ......
O Xico Sapateiro que não era sapateiro, mas sim taberneiro, tinha duas filhas em idade de arranjar namoro e, casar. Havia que fazer por isso. Com uma sala de baile ali tão perto, até era ao ar livre, uma concertina tocada “ouvido” por um “ moço” que ali apareceu a fim de trabalhar numa casa como criado. Agora já tudo muito mais animado.
Aos Domingos à tarde juntavam-se as raparigas acompanhadas das mães que ficavam enlevadas vendo as suas meninas dançando esperançadas de um futuro namoro. Naquele Domingo à tarde tudo se repetia. Invariavelmente da mesma maneira.
Começa o toque da concertina. Algumas raparigas a dançar levantavam a saia rodada no movimento da roda da “ moda”
É, então, que lá ao fundo da escada aparece um rapaz mais ou menos conhecido vindo da aldeia vizinha, fato preto meio amarrotado, camisa de linho, botas de atanado, cardadas e boina na cabeça, cara de labrego, torrada pelo sol e pelo trabalho duro do campo.
Devagarinho vai-se chegando a uma das filhas do dono da taberna e de mansinho, a medo, vai perguntando:
__ Menina “ Coceição” vamos dançar a moda do “ grafanhoto” ...... ?
A menina “ Coceição” foi dançar a moda do “ grafanhoto” e nunca mais parou.
Passaram meses e o rapaz do fato preto, amarrotado, e cara de labrego saiu da igreja com o sino a repique numa manhã de Domingo, de braço dado com a menina “ Coceição” ainda meio envergonhado por naquela tarde ter pedido para dançar a moda do “ grafanhoto”

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Cinema ao ar livre

Nem vos passa pela cabeça onde foi a primeira vez que fui ao cinema. Lembro-me perfeitamente. Íamos a pé ( claro ) a meio da tarde de um Domingo de Agosto. As cegarregas cantavam debaixo das folhas secas que estalavam com o pó, o calor e a sede. Quando chegávamos à vila esperava-nos a “ sala do cinema” Uma rua estreita e empedrada levava-nos até lá. Um lençol branco(?) era o ecrã. A máquina de projectar em cima de um escadote fazia crack ... crack ... enquanto a cremalheira perra fazia o filme correr numa bobine grande e ferrugenta.
As pessoas, depois de pagarem a entrada sentavam-se numas tábuas dispostas em paralelo, poisadas nuns bancos a servir de suporte.
As cenas iam passando a preto e branco, com música estridente e sem estereofonia. O que era isso ? Ali não havia outra luz que a do próprio filme ou a do sol. É que a sala tinha sido adaptada do curral das mulas do Cipriano.
Caiou, varreu, limpou . Quem não quisesse, não fosse lá ......
De vez em quando, uma ou outra pulga, aranha ou centopeia, lembrava-se de nos visitar. Nada que não levasse uma valente sacudidela. E o filme corria .... corria ....
Os intervalos eram só quando a fita partia. Era preciso colar com acetona. Isso levava o seu tempo.
Não me lembro muito, mas apenas de algumas cenas. A fita era “ O Zé do Telhado “ Um ladrão de barba grande,aprumado e limpo, num fato de bom corte. Roubava aos ricos pra dar aos pobres.
No filme chovia e estava frio. Um chá é que sabia bem. .... Na sua casa não havia lenha na lareira. Pensando bem .... olhou em redor. O piano ! Músicas em cima. Agarrou uma partitura e com elas fez um chá num bule que na minha imaginação seria verde. Bebeu em goles pequenos, saboreando o chá e aquecendo as mãos no bule verde. Nisto apareceram uns policias de grandes bigodes e cara de poucos amigos. Queriam prendê-lo Sem mais, salta pela janela da mansarda e corre pelos telhados. Do filme, não me lembro de mais nada, mas sei que tive muita pena do Zé do Telhado. Alguém também com o mesmo sentimento, fungava e limpava as lágrimas com um lenço branco metido no bolso para esse efeito.
Depois, já perto da noite regressávamos a casa, a pé mais uma vez, não sem antes passar por casa da Avó Emília.
A avó Emília era a mãe do meu avô Joaquim. Morava junto do cruzeiro, ao cimo da Rua Torta, perto da Marquitas Lobo. A Marquitas Lobo era cozinheira dos casamentos e batizados.
Fazia maranhos como ninguém. Também empadas e tigeladas. Era uma referência na vila. Mas, dizia eu, a avó Emília, mulher pequenina, magrinha e teimosa ...
Morava sozinha. Era viúva há muitos anos.
A minha mãe, a minha tia Laura e eu, saiamos do cinema e dirigiamo-nos a casa dela.
__ Então, meninas, de onde é que vêm ?
( Ela farta de saber )
__ Avó, fomos ao cinema.
__ Entrem, entrem, meninas. Sentem-se.
__ Pois é, avó. Está um calor ...... Não se suporta.
__ Querem uma caneca de café ?
__ Pois sim, avó. O cinema faz fome.
A avó, andava desde o fogareiro até à cantareira e à janela. Fazia o caminho duas ou três vezes. Parava perto da janela. Olhava com atenção para o lavadouro que ficava logo em baixo, onde as mulheres cantavam ao desafio enquanto lavavam roupa.
Olhava melhor para o céu azul e vermelho de tanto calor. Coçava a cabeça e dizia:
__ Vão-se embora, meninas. Vão-se embora. Vem lá tanta chuva .. É melhor irem-se embora .
As duas pegavam em mim e iam mesmo embora, antes que chovesse !!!!!

domingo, 26 de agosto de 2007

A minha Rua

A minha rua não é bonita nem feia. É a minha rua !
Modesta rua de aldeia onde passeiam, livremente cães, gatos e até pessoas. Não tem passeios. Não precisa. Ladeiam-na oliveiras, nogueiras e pinheiros. Automóveis passam, só os dos moradores da aldeia. Um ou outro de alguém cujas terras de cultura ficam lá mais acima. Mas estes são poucos. São tractores” todo-o terreno”. Sabemos sempre quem são. Conhecem-se pelo barulho do motor. Distinguimo-los tão bem como distinguimos o timbre das vozes das pessoas. Cada um tem um “ trabalhar” diferente.
A minha rua não tem lojas, montras e muito menos um supermercado. Mas tem o rebate da minha porta onde ao Domingo, no Verão, nos sentamos a conversar e a contar histórias antigas.,
São poucos os que ali moram, por isso mesmo cabemos todos. Quem não cabe na velha pedra, senta-se num banquinho pequeno que usamos frente à lareira, no Inverno. As histórias que se contam, são sempre relacionadas com moradores actuais ou familiares já desaparecidos.
Contam que o Ti Albano ia com os filhos arrancar pedra à pedreira lá ao fundo do lugar. Essa pedra calcária era mesmo dali transportada em brita, que nos anos vinte serviu para fazer as calçadas de Coimbra.1 Rebentavam os veios com picaretas e partiam as pedras com a mesma que se parte uma fatia de bolo..
As filhas, descalças, levavam o almoço enquanto as pedras do caminho lhes pisavam as unhas já calejadas de tanta “ topada” de dias e meses anteriores. A mulher,Ti Grabelinda, magrinha, pequenita de estatura, colhia ervas medicinais que vendia ao dono da ervanária que passava de vez em quando. Outras mulheres levavam cestos cheios de estrume para os “balcões” roubados ao pinhal, a fim de semear batatas, couves, e outros legumes sazonais. As ovelhas e cabras, tinham honras de entrar pela porta da frente, única, aliás.
Sempre isto me fez alguma confusão .
Pessoas e animais coabitarem em harmonia,dentro da mesma casa.
As coisas modificaram-se nestes últimos anos. Já não há animais, assim, a coabitar com as pessoas. Os velhos morreram e os novos têm outros hábitos. Falamos da vida de antigamente., quando a única iluminação era a candeia de azeite o petróleo. A electricidade só apareceu lá para os finais dos anos sessenta.
Algumas das histórias têm cunho rocambolesco. As casas muito pequenas com a cozinha fora, no páteo, que por sua vez, tinha como iluminação a lua. Diziam: “ casa que caibas e terra que não saibas “. Sem água da rede pública, esta era carregada à cabeça desde a fonte, lá ao fundo, em Alcabideque, até casa no cântaro de barro ou de lata, mais leve.
Por vezes, ainda, alguma roupa lavada na fonte e trazida no topo do cântaro.
Vida dura,esta ,
À noite, os pés eram lavados em bacia de lata: um luxo !
Primeiro, o pai. Depois os filhos e finalmente a mãe A água ainda servia para regar as flores plantadas num alguidar ou penico velho. Em conversa, falou-se da Ti Deolinda que tinha o hábito de escutar às portas. Fazia-o à vontade encoberta pela sombra da grande nogueira plantada perto das casas.
Uma noite, viu um homem entrar na cozinha do Ti Albano e, ligeirinha ... foi escutar perto da parede.. A dona da casa sem se aperceber da sua presença, despejou a água, sem avisar, para a rua. Levou a Ti Deolinda um valente banho ! Até foi bom Foi um banho de graça !.
Contam, ainda, que as raparigas novas brincavam com os rapazes despejando o ar das rodas das bicicletas, único transporte nestas bandas. Depois iam rir às escondidas.
À tarde jogava-se à “pela”, à malha ou anelinho. Brincadeiras de gente inocente. Fico sozinha. São horas de cada um ir à sua vida. Horas de preparar a caia. Ficámos à conversa toda a tarde. E é assim todos ou quase todos os Domingos, na minha aldeia, na minha rua.
Lembro-me de quando íamos à escola . O prazer de ir à escola! Saco de linhagem a tiracolo. O que, na verdade, nos dava prazer eram as brincadeiras que se faziam pelo caminho. Laranjas “ voavam “ para dentro das janelas abertas. O pisar o gelo formado em cima das poças de água, durante a noite. Sentir a sola dos sapatos ou tamancos a ranger por cia desse mesmo gelo. Bolas de lama que se atiravam e iam cair onde calhava e a pontaria pouco afinada o permitia. As bagas dos carrascos metidas no bolso a fingir de moedas que não tínhamos. Eram os nossos tesouros !!
Agora passamos por qualquer escola do País e lá estão os pai a ir buscar os filhos de carro.
Eu penso que lhes estão a roubar o prazer de ir à escola. Roubam-lhes as brincadeiras que se podem fazer enquanto se não chega a casa. Chegados sentam-se frente ao televisor ou à “ consola” e absorvem o jogo já sem margem para imaginação. Está tudo preparado para a criança não se maçar ou pensar. Onde estão prazer de imagina castelos encantados, reis, rainhas, bruxas ou salteadores escondidos por entre os pinheiros.?
Tudo muda. O prazer do caminho até casa,também.
Mal de um povo que não evolui. Eu sei !
Mas sei,que há coisas que não se esquecem nunca e ficam gravadas na memória e não há tempo que a apague.

domingo, 19 de agosto de 2007

Memórias de um Director




Ainda hoje lá está sem a imponência de outros tempos .......

O Instituto Vaz Serra ! Com um castanheiro da Índia ao fundo do pátio dos rapazes.

Como Director tinha o Dr. Gil.

O Dr. Gil Marçal era um homem austero, alto, muito alto e com farta cabeleira acastanhada.

É este o retrato físico, daquilo que me lembro dele.

Homem de personalidade forte, muito forte. Talvez, agora, as minhas lembranças o tornem ainda mais forte.

Era eu, bem pequena, quando frequentava a casa do meu pai.

Hoje, passados cerca de 50 anos, vejo-o por uma perspectiva diferente. O que sei dele não passam de memórias de criança. Sei que lá pelos finais dos anos 40 se refugiou em casa do meu avô que tinha uma quinta em Coimbra, mais propriamente no Alto de S. João. Via que, de vez em quando, permanecia calado, lendo um livro, sentado num cadeirão, ou simplesmente com a cabeça entre as mãos, pensativo.

Passando ao fundo da quinta, a linha de caminho de ferro que liga Coimbra à Lousã e havendo um túnel mesmo junto ao portão vi-o algumas vezes cabisbaixo, saindo de lá como que a fugir de “ certas visitas” que lá iam. Nunca deixou de ser amigo do meu pai.

E o meu pai sempre lhe retribuiu essa amizade. Nunca o traiu.

Quando, um pouco mais tarde, precisou de tirar a carta de condução, uma vez que até aí não era obrigatória, desde que alguém com carta , acompanhasse Foi mais uma vez, o Mendes Nunes que o ajudou, oferecendo-lhe casa e jantar, nessa mesma quinta, até que resolveu o problema.

Mais tarde encontrei-o no Instituto Vaz Serra, como director. Posso afirmar que foi ele quem escolheu os melhores professores e projectou o edifício onde se recebiam as aulas.

Percurso atribulado o dele. Dizia a minha mãe que tinha assinado em tempos “ uns papéis “Na altura de apoio a Norton de Matos e assim ficou “ marcado “ e sem poder movimentar-se com o à vontade que desejava. Mesmo assim fundou e dirigiu com mão de ferro o Instituto. Ali tínhamos que usar sempre, a farda. A de trabalho e a de passeio. Não era autorizado não trazer a gravata, o cinto ou o “ bivaque “. Quem se esquecia ou perdia, tinha que o ir buscar a casa ou então “ arranjar “ outro, por meios, por vezes, pouco ortodoxos.

Fez poesia e publicou-a. Li, há algum tempo, alguns pequenos textos que o meu pai guardou. Carregados de sentimento mas, muito velado, uma oposição forte ao regime da época. Nas entrelinhas lia-se uma feroz raiva por não poder mudar as coisas.

Só gente muito próxima entendia o que ele escrevia.

Na Rua Torta, ( hoje Rua Dr. Gil Marçal ) e na cave da sua casa, associou-se a amigos, comprou máquinas de tecer,cortar e coser e fez uma camisaria.

Ainda guardo uma caixa dessas. Chamava-se a dita fábrica: Camisaria BILAC.

Precisamente e talvez devido à perseguição de que era alvo, teve que fechar, acabando, assim com uma pequena mas útil empresa, que teria dado emprego a bastante gente.

Enquanto Director do Instituto, organizava, todos os anos uma excursão com alunos, professores e empregados.

A comida, confeccionada, na cozinha do internato era levada em enormes cestos.

Alguns Domingos ou dias de festa, os alunos internos colaboravam na missa na pequenina capela da Quinta da Águias Fardados percorriam as ruas da vila, com o estandarte em parada militar.

Sabia o comportamento de todos nós. Como sabia tudo, mesmo tudo, de cada aluno, cada professor ou empregado, não sei ! Mas lá que sabia, sabia.

Teria os seus informadores .....

Não saía muito do gabinete. Um escritório ao fundo do corredor, estrategicamente colocado, onde dava observação para todas as dependências das aulas ou internato.

E o que significava uma chamada a esse gabinete ?

Era quase uma visita ao purgatório ou mesmo ao inferno.. Perguntas e mais perguntas. E muitas vezes umas tantas reguadas com a “ menina de cinco olhos “.

Coisas que os nossos filhos fazem, hoje, e nem lhes damos castigo, ou melhor, nem sequer lhes damos importância.

Era assim um pouco, o Dr. Gil Marçal. Um pouco da memória do tempo em que foi director do I. V. S. !!!!!



Natércia Mendes Nunes

A primeira pétala

A primeira pétala caiu

Da rosa que tu me deste.

Depois as outras cairam também,

Talvez vergadas ao peso das minhas lágrimas !

Jazem caídas, Mortas,

Despidas do encanto,

Do viço que tinham antes !!

Ao olhá-las

Aí mortas,

Lembro o teu amor,

Que de repente floresceu

E como as pétalas,

Da rosa que me deste.

Talvez vergado

Ao peso das minhas lágrimas

Caiu

E para sempre morreu !

Natércia Nunes

História de Natal



Toda a gente o conhecia. Vindo sabe-se lá de onde aparecia sempre pelo Natal, época em que o lagar de azeite funcionava.

Sentava-se em frente à fornalha, indo embora apenas quando a última brasa se apagava.

Como chegava, desaparecia: em silêncio.

Durante o tempo de permanência no lagar, contava histórias. A seu lado uma caneca com café que os lagareiros faziam, mas que repartiam com ele. Ia bebendo em pequenos golos sorvidos com um barulho semelhante a musica num gira-discos velho e roufenho.

Um dia deu ao meu irmão pequeno, na época, umas pedrinhas ovais e pintalgadas de azul. Disse-lhe que eram ovos de anjo.

No meio das suas histórias contou-nos que há muitos anos nasceu uma criança, linda, rodeada de anjos, pastores e reis vindos de longe guiados por uma estrela.

De todos recebeu presentes, levados com carinho e algum sacrifício.

Os caminhos encheram-se . Todos queriam ser os primeiros a chegar. Ninguém notou, mas com eles e da forma que pôde um pequeno aranhiço, também rumou à pequena gruta.

Quando chegou e ainda sem Ninguém notar a sua presença, deu conta que não tinha nada para oferecer.

Subiu para um arbusto e toda a noite teceu uma teia enrolada aos ramos frágeis

De manhã estava pronta e com as gotinhas de orvalho brilhava ao sol parecendo prata e ouro.

Enquanto a vida do lagar corria numa lentidão própria do esmagar e caldar, o azeite corria em bica para a “ fonte”. Aí o lagareiro mexia com uma vara fininha de marmeleiro, a ver onde a água-ruça se separa e começa o azeite, doirado, amarelinho .

E nós brincando por ali, passávamos o tempo E havia sempre mais uma história.

Contou que, uma vez, num Natal qualquer, sem lugar para onde ir e sem família se sentou frente à lareira, junto a um presépio, em casa do pai, falecido há tempo. Sentou-se e acomodou-se. Mais uma vez olhou para o presépio. Arregalou os olhos quando viu que as figuras começavam a movimentar-se. As ovelhas, com fome, comiam as pontas dos arbustos. O pastor corria não deixando o rebanho tresmalhar. O forno incandescente cozia pão que a mulher amassava numa gamela, lá atrás. O moinho girava as velas movidas a água de um regatozinho feito com prata de chocolate.

Nossa Senhora e S. José sorriam, sentados junto à manjedoura onde a vaca e o burro aqueciam o Menino com o seu bafo. Um galito empoleirado num campanário, cantou anunciando a meia noite

O Menino, deitado na palha da mesma manjedoura e vestido com uma camisa feita de tecido branco de cetim bordado a ouro, sorria também.

Lentamente o Menino levantou-se e veio sentar-se no seu colo. Aninhou-se nos braços e ....... adormeceu .

Ali ficaram ambos, até que sentiu um líquido quente a escorrer-lhe nos joelhos.

Acordou !!! Tinha adormecido ! Já era manhã !

Olhou, de novo, para o presépio. Tudo na mesma. Nada estava fora do local onde os colocara antes. Firmou-se melhor no Menino, ainda a tempo de ver o pé pequenino e descalço, mexer como que a esconder a ponta molhada do vestido branco, bordado a ouro..

O Sol anunciou que já era manhã. Uma manhã ensolarada de dia de Natal. A fogueira ardeu até ao fim e ele ali ficou a pensar que tinha sido um Natal bem diferente de todos os outros Natais


Natércia Martins

domingo, 12 de agosto de 2007

Baú de sonhos



Tenho no meu sótão um baú cheio de caixas coloridas.

Cada caixa contém,conforme a cor, desilusões, alegrias, ódios, amores desamores,sentimentos e cheiros.

Não abro todas as caixas ao mesmo tempo.

A caixa dos cheiros, contém os cheiros das manhãs no campo. O cheiro da terra molhada depois de um dia de chuva. O cheiro das espigas de milho na eira, ao anoitecer, depois de um dia de sol intenso. O cheiro das filhós a fritar em azeite, na noite de Natal. O cheiro da canja a ferver na panela de ferro em cima do fogão de lenha. O cheiro do jasmim e da celinda no jardim. Cheiros intensos, estes.

A caixa das chatices, dos arrufos, ódios, discussões, permanece bem no fundo . E nunca a abro. Tem uma fita bem amarrada, para maior segurança da tampa. Não vá ela saltar.

A caixa da saudade tem lá dentro a memória dos meus pais e alguns familiares próximos, principalmente a saudade da minha avó.

As histórias contadas em redor da braseira, apoiada num estrado de madeira por baixo da camilha.

Histórias que nunca se apagam da memória. Noites longas de Inverno, frias e brancas transformando o orvalho num manto de gotas de gelo.

Enquanto os olhos se iam fechando vencidos pelo sono, as nossas mentes transportavam para o sonho, o que os ouvidos ouviam.

A caixa azul contém recortes e recordações.

As escadas de cantaria viradas para a estrada e eu pequena, sentada no último degrau tendo por companhia o cão preto e branco, cujo nome se perdeu nos meandros da minha memória.

Ali sentado, esperava pacientemente a meu lado, que o moleiro passasse com meia dúzia de burros carregados de farinha ou grão, pronto para o moinho lá ao fundo da aldeia,.

Havia o padre António, já muito velho que aos Domingos de manhã, passava numa charrete puxada por uma mula tão velha como o dono.

Melhor que tudo era a passagem de um cavaleiro e um cavalo branco que por vezes por ali andava. Era lindo o cavalo .... E eu mais o cão sentados no último degrau das escadas. E aquela do assalto ?

Pois bem, o quarto do criado, situava-se junto à casa do forno e por cima do curral da mula. Tocava acordeão nos bailes na taberna do Xico Sapateiro. Das teclas saía um som mágico que ouvíamos com agrado, das “ modas” em voga no tempo. Naquela noite, como não era dia de baile, tocava uma “ moda” no quarto. Na cozinha ouviram-se uns barulhos esquisitos, seguidos de passos. Uma porta bateu. Todos nós ficámos gelados de medo. Foi, então, que a minha avó, agarrando um pouco de coragem, chegou à janela e chamou o rapaz que tocava o acordeão, lá fora, no quarto. O cão ladrou e os passos calaram-se.

Num repente,a porta abriu-se entrando de rompante o criado, com um gesto rápido, passou na cozinha, agarrou um chouriço que estava em cima da mesa e enfrentou o intruso, como se de uma arma se tratasse.

Se era um ladrão, nunca se soube, ao certo, mas a fama do homem que enfrentou um ladrão com um chouriço, correu pela aldeia.

Há, ainda, uma caixa em forma de coração. Lá dentro, bem arrumadinhos, os meus amores. Não falo deles. São meus e não partilho com ninguém.

Mas há uma outra caixa verde. Esta caixa é a dos meus sonhos. Não a abro nunca. Tenho medo que se escapem e se espalhem por aí. É que apesar da idade, os sonhos, não se acabam.

Natércia Martins

2007

quarta-feira, 20 de junho de 2007

O Foguetão


Quando conto aos meus filhos que antigamente, antes do 25 de Abril, não podíamos falar com os rapazes, pois as escolas eram de sexos separados: cada um para seu lado.... eles fartam-se de rir.

O colégio onde estudei era misto Os rapazes num recreio e as raparigas separadas deles por um muro bem alto.

Sempre ouvi que o fruto proibido é o mais apetecido.. Fazíamos malabarismos incríveis só para os ver. Falar-lhes às escondidas. E como era bom uma pequena escapadela até às escadas ou ao corredor ande eles estavam.

Os pequenos namoricos ..... Esses eram também às escondidas. Passávamos papelinhos escritos em folhas arrancadas, de caderno. Até o papel que usávamos tínhamos que dissimular

dentro de cadernos de apontamentos “inocentemente” trocados durante o intervalo das aulas.

Havia uma janelita alta no cima das escadas que era território disputado com “ unhas e dentes”. É que a tal janelita estava estrategicamente colocada para o recreio dos rapazes. Quantas zaragatas, quantas dentadas e unhadas pela disputa da janelita.

Outros tempos ......

-junto ao colégio havia um campo de futebol, para os rapazes, claro !

Nós jogávamos ao mata, bilharda ou outros jogos considerados femininos, mas no recreio oposto.

O Director do colégio era um homem muito rígido. Com os óculos na ponta do nariz parecia que era bruxo

Aparecia sempre quando menos esperávamos. Havia de aparecer quando uma de nós tinha “ conquistado” a dita janela. Que pena ! Tanto trabalho e os rapazes lá em baixo sem nós os podermos olhar.....

De vez em quando, muito raramente, dava-nos autorização para se ir ao campo de futebol. Havia por lá actividades que, mesmo, sem o minimo interesse se agarravam com algum entusiasmo, pela nossa parte. Estavam lá os nossos “ meninos” !!!

Mas a juventude irreverente e imaginativa sempre soube dar as volta às questões. O meu irmão, o Sabe Tudo, O Bolinhas e o Papa lembraram-se de lançar um foguetão. Ainda hoje, quando falo nisto a qualquer um deles, abrem-se num sorriso maroto.

Será que pensaram em gozar com toda a gente ? Se foi isso que pensaram, conseguiram.

A história é assim: um chapéu de chuva aberto, um lençol, e alguns tubos de ensaio cheios de pólvora Só isto ? Pois !!!! E o estratagema para a infiltração no território feminino ?

Elas coseram pacientemente sob a orientação deles as varetas do chapéu ao lençol.


Levou alguns intervalos. Bastantes intervalos, claro. E o dia marcado lá chegou. Cartazes pendurados pelos corredores anunciavam a subida do foguetão.

Primeiro os “ cientistas” e algumas raparigas para recoserem as linhas partidas ou mal cosidas. Depois a população do colégio: professores, empregados e vigilantes.

Montado o cenário levaram algum tempo Havia que criar algum suspense....

Debaixo do chapéu e do lençol em forma de cilindro, o meu irmão ( “boa peça” ) acendeu o tão esperado fósforo e chegou ao tubo da pólvora. Mas em vez do foguetão subir fez um fraco e envergonhado PUM. O lençol e chapéu em fanicos e toda a gente a rir, menos quem tinha sido gozado a sério: o Director do colégio.


Nota: Esta história quase verdadeira passou-se no Instituto Vaz Serra em Cernache de Bonjardim lá para os anos 60

Natércia Martins

terça-feira, 19 de junho de 2007

Carta para TI

É uma carta que nunca vais ler
De tanto cismar nunca me saíste da " cabeça". Há tantos, tantos anos ....
Hoje resolvi dizer o que tenho cá dentro e nunca serei capaz de Te dizer Nunca mais te encontrei e o tempo foi passando ... Hoje acho que é impossível encontrar-te e olhar-Te como fazíamos há um ror de anos ... Lembras-te ?
Éramos muito novos e uma birra fez com que tudo acabasse Estupidez a minha !!!!!
Mas o destino não tinha programado encontrarmos e ficar juntos. Que pena ! O que poderíamos ter feito entretanto !!!!
Teria tido outros filhos e outros netos. Seriam parecidos com quem ? Comigo ? Contigo ? Sei lá !!!!
Ainda guardo algumas cartas e fotografias tuas, no fundo de uma velha caixa de sapatos Se soubessem o que ela tem lá dentro !!!! Um mundo de recordações !!!!
Lembras-te de um livrinho de missa que me ofereceste ? Quero levá-lo comigo quando morrer Sei de cor tudo o que tem dentro As pagelas e uma foto de um Padre Cruz que tu sabias que eu gostava Correm-me as lágrimas pela cara ao escrever esta carta. Deixo-as correr à vontade.
Quando estou sozinha em casa tu fazes-me companhia, tantas vezes . Eu gosto de te recordar como éramos noutros tempos: novos!!!!!
Não poderia morrer sem que tu soubesses como te recordo
E tal como nos nossos tempos envio-te um grande beijo mesmo que seja às escondidas, aliás como o faziamos ........

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Ovos de Anjo




Quando atravessamos a barreira dos cinquenta anos surgem-nos, com mais frequência factos da infância longinqua.

Factos antigos, factos de que nos lembramos vagamente que até parecem tirados de histórias de velhos livros, carregados de poeira, rebuscados no fundo da prateleira mais afastada do nosso conhecimento.

E foi assim, remexendo nos pensamentos que um dia destes dei por mim a reconstituir o velho lagar de azeite perdido algures num recanto quase esquecido da civilização, lá para os lados de uma aldeia do interior profundo do nosso Portugal.

Lembro-me da fornalha acesa durante toda a época da colheita da azeitona. Ardia com toros de oliveira com um brasido que nos fazia lembrar o inferno.

O inferno ? Porquê ? Verdadeiramente ninguém sabia dar uma explicação plausível.

Naquele lugar quentinho sentava-se quem passasse no caminho, num banco de madeira, feito de um toro cortado ao meio.

Mas havia quem tivesse lugar “ cativo”. Era o Abílio. O Abílio era um homem sem idade, sem identidade Abílio Abílio mais nada Nem sequer precisava de sobrenome Era do conhecimento de todos.

Sentava-se ali no primeiro dia de lagaragem vindo sabe-se lá de onde e sem se saber quem o informava que o lagar abria naquele dia..

Só abalava quando o último carvão se apagava. Desaparecia em silêncio tal como chegara, no primeiro dia.

Contava histórias de lobisomens, bruxas, duendes, santos e pessoas.

Eu e o meu irmão ouvíamos essas histórias pensando serem verdadeiras e compondo os factos conforme a nossa imaginação de crianças. Não gostava de ser interrompido. Abria muito os olhos a meter medo. E nós tínhamos medo.

O meu irmão mais pequenito agarrava – se à minha mão ou ao meu vestido a pedir protecção. Coitada de mim que tinha tanto medo como ele. Mas mesmo assim, corríamos para o lagar e ficávamos à espera que começasse a contar as suas histórias fantásticas, enquanto o azeite escorria amarelinho e em fio para dentro da fonte, enquanto as azeitonas eram esmagadas pelas mós e as ceiras com a massa já moída escorria como lágrimas por uma cara sem rosto.

Um dia o meu irmão, depois de uma longa conversa com o Abílio apareceu a correr em casa com dois minúsculos ovos sarapintados de azul, fechados na sua mãozita pequena, de garoto de 4 ou 5 anos

Todo contente correu para a minha mãe e segredou:

-- Mãe. Olha o que o Abílio me deu. São ovos de anjo !

-- De anjo?

-- Sim Se os anjos têm asas com penas porque é que não podem pôr ovos ?



Natércia Martins

domingo, 17 de junho de 2007

Os Zazuinos



Vejo-os passar sempre juntos.

Quase sempre pela uma da tarde ou, então, rente à noite.

Com dois carrinhos de mão, pouco pesados, que o peso trazem eles em sacas de linhagem ou ráfia, empilhados em cima umas das outras, presas com um cordel . Dentro das sacas levam pinhas.

Pinhas dos pinheiros, apanhadas pacientemente, uma a uma. Não sofrem de “ stress” , nunca a paciência lhes faltou à procura das ditas infrutescências.

Faça sol, faça chuva, lá passam eles todos os dias.

As pinhas, essas, vendem-nas a quem as encomenda.

Sustento do pão de cada dia. Conversa fácil de quem tem pouca cultura. Conversa fluente, simples, a falar sempre do mesmo: o monte, as pinhas, os pinheiros.

Sempre os dois. Inseparáveis há um ror de anos. Não tiveram filhos, porque uma operação mal feita lhes roubou esse prazer e a deixou estéril.

Não pedem nada. Aceitam o que lhes dão. Vivem das suas pinhas que vendem barato. O dinheiro apurado, chega para o “ conduto” que os alimenta dia a dia. Vida vivida dia a dia, sem precalços de maior, sem correrias.

Apenas, ele, bebe um “ copito” de vez em quando. Nada de grave. Nada que não se cure com uma soneca. Mas só de vez em quando .... que a vida são dois dias.

O que gosto de ver neles, é a amizade, a companhia que fazem um ao outro. O trabalho simples em conjunto, com tanto valor como um qualquer funcionário de grande empresa.

Cada um faz aquilo para o que está habilitado, ou melhor, cada um faz o que sabe.

Ela carrega um pequeno luxo: duas meias libras em ouro, penduradas nas orelhas.

Brincos bem antigos. Prenda da mãe quando se casou.

Dinheiro amealhado, tostão a tostão, também pacientemente guardado dentro de um porquinho de barro.

Aqui na Carapinheira, toda a gente os conhece.

Da minha parte, apenas esta pequena homenagem à sua amizade ou mesmo ao amor que têm um pelo outro e talvez, eles próprios nem saibam que têm


Natércia Martins






Nota: Numa das minhas idas ao Museu vim a saber que a Dália morreu Era assim que se chamava esta mulher.

Chorei sentida e sem falsa vergonha de o fazer. Afinal era uma pessoa que, de tanto a ver passar, me afeiçoei. Tenho saudades dela.

Que Deus a tenha em bom descanso .



terça-feira, 15 de maio de 2007

Fagarra ou Ganfarra ?


Ti Zefa era a mulher que na aldeia “ aparava” os bébés que nasciam.

Como não havia hospital ou maternidade por perto, fosse rica ou pobre, todas as mulheres recorriam às mãos hábeis e curiosas da Ti Zefa.

Claro que não havendo sequer os cuidados mínimos de higiene todos , ou quase todos, nasciam sem mazelas, pelo menos visíveis.

Fosse a que horas fosse, estivesse na cama ou no trabalho do campo, havia sempre um marido aflito a gritar por ela:

__ Venhadepressa que a mulher já está com as dores Não se demore !

E lá ia ela ligeirinha a “ atender” a parturiente.

Lavava as mãos à pressa e com a mesma pressa chegava.

E tudo começava

O marido ficava à porta, do lado de fora. Podia ser preciso alguma coisa.

Ele tinha parte passiva na questão.” Aquilo” era coisa de mulheres. Ficava perto do quarto sentado a ouvir e quando o primeiro choro do bébé soava, alegrava-se e suspirava de alívio. Pronto ! Já está !

A Ti Zefa, acabado o serviço, era agora a sua vez de uma “ pinguinha” para acalmar. E se ela gostava ......

Sentava-se numa cadeira junto à cama da comadre e ficava a olhar embevecida, o bébé que dormia

É que todas as mães da aldeia lhe transmitiam o estatuto de Comadre por lhes ter “ aparado “ os filhos Isto é lhes ter feito o parto. Era a única entendida por aqueles lados. Tinha muitas comadres, por isso.

Para companhia de boas petiscadas era a comadre Marquinhas.

Cozinheira de profissão. Companheira e comadre de bebida. Tambem ela gostava, e muito ........

Cara redonda, vermelha, com algumas borbulhas. Sinais evidentes de quem bebia bem.

Um antigo governante português dizia que “ beber um copo de vinho era dar de comer a um milhão de portugueses “

Não deixavam créditos por mãos alheias. Bebiam bem até fartar !

A Senhora Marquinhas era chamada para os casamentos e batizados. Uns dias antes da boda ia a casa dos pais da noiva ou do noivo, conforme o caso e “ atacava” logo com um copo de tinto. Depois de ajudar a matar o porco ou os carneiros iam mais uns quantos para aquecer.

As receitas dos cozinhados do casamento já se faziam por intuição A comida chegava sempre.

Os convidados na sua maioria, gente do campo, tinham uma refeição melhorada. Era dia de festa e os pais dos noivos não olhavam a despesas Era em tudo um dia especial Havia que disponibilizar o melhor tanto para a boda como para a cozinheira. Mais filhos para casar e esta cozinheira a saber os “ preceitos” todos. Vinho com fartura e a Comadre Marquinhas já ficava contente.

Quando as duas se juntavam era uma festa.

Domingo à tarde na aldeia. Ninguem por perto e lá iam as duas até à taberna do Ti Xico Sapateiro. Conversavam e conversavam as desgraças da vida. Ambas viúvas de muitos anos. Uma porque o filho não dava notícias há muitos anos A outra porque a filha se casou para longe e raramente vinha ver a mãe. O genro tambem não era “ grande coisa “

As duas desfiavam um rosário de tristezas que se iam avolumando conforme o vinho ia diminuindo dentro da garrafa. O taberneiro ia enchendo de tinto .... E elas iam bebendo .......

E conversavam ..... e bebiam ........ e mais um copo ...... mais uma gargalhada ......

As faces já vermelhas mostravam bem o resultado de uma tarde de conversa e bebida .

Já noite fechada, Ti Zefa olha para a rua por entre a porta entreaberta. Vê que já é noite fechada . Olha para a garrafa vazia , vira-se para a comadre e comenta:

__” Oh Comadre ! Como nós estemos. Já chama fagarra a uma ganfarra “!!!!!!!


Natércia Martins



As botas do meu pai


A tarde corria devagar. Aliás, na aldeia, a tarde corre sempre devagar. Não há muito para fazer, além de cuidar dos animais. Há que regar as plantas: couves, milho e batatas. Mas isso faz-se logo pela manhã, quando o “ fresco “ se faz sentir. E que bom é o fresquinho da manhã, no meio do milho com a água a correr e molhar os pés. Eu gosto !

Há muitos anos que não faço este trabalho. E tenho saudades .....

Depois do almoço fica a “ sorna “. Com o calor a apertar e a cantiga das cegarregas convida à sesta dormida à sombra de uma árvore se as formigas cavalonas não se lembrarem de nos interromper o descanso com ferroadas dolorosas e chatas.

Resta a tarde, longa, até à noite.

Por entre um abrir e fechar de olhos sonolentos e preguiçosos há que pensar e talvez recordar .

O local mais fresco e aprazível fosse o “ Pivetas “. O Pivetas era o sapateiro. É isso mesmo ! Ali também se conversava e por entre cabedais, fivelas, sandálias e chinelas, encontravam-se umas figuras femininas com pouca roupa, impressas nuns postais comprados às escondidas e guardados nas prateleiras, bem lá no fundo.

Juntavam-se ali à espera que o Pivetas desse ordem de uma espreitadela às meninas dos postais em fato de banho, ou até uma ou outra mais despida.

Aquilo era uma festa ! O poder espreitar para um daqueles postais !

Depois vinham as histórias contadas quase sempre na primeira pessoas. Cada um dos “ visitantes” tinha uma história. Assim o sapateiro tinha sempre companhia. Ele gostava. Um dia a minha avó chamou a atenção do meu pai que as botas precisavam meias solas.

O meu pai pegou nelas e, claro, foram parar à oficina do Pivetas. Havia mais uns quantos sapateiros mas aquele tinha os postais mais bonitos, embora a colecção,fosse antiga e vista e revista.

Pegou nas botas com a promessa que na semana seguinte estariam consertadas.

A tarde convidava à conversa. Sentou-se num banquito perto da porta, onde já se encontravam mais dois ou três clientes.

O Pivetas com o avental de cabedal e a forma colocada nos joelhos martelava uns pregos numa chinela de mulher. Olhou para o meu pai e perguntou:

__ Ó senhor Nunes, como foi aquela história do canivete e o padre Zé ?

O meu pai encabulou porque embora a história tivesse uns laivos de cómica tinha-lhe valido uma valente tareia da minha avó, que não era mulher para brincadeiras.

Risota geral. Eles tinham ouvido a mesma história dezenas de vezes. Mais uma vez ...... nem parecia mal. Há um ou outro ponto que se acrescenta e tem sempre contornos diferentes.......

Apesar de tudo a história é gira .......

Parece que, quando o meu pai era pequeno o Padre Zé lhe pedia para ajudar à missa. Normalmente eram os garotos que mudavam o missal, levavam a bandeja para a comunhão, colocavam o vinho e água na galheta.

A isso chamava-se ajudar à missa

Eram sempre os garotos mais educados que ficavam encarregues desse trabalho.

E o pequeno António lá ia mesmo contrariado, mas não havia outro remédio ....

Um Domingo, à porta da Igreja e junto dos homens, tentando imitá-los pegou num canivete de cabo branco, de corno e afiava uma varinha de salgueiro Com calma, o padre chegou e olhou para as mãos do pequeno. Deitou - -lhe a a mão e levou para dentro da Igreja o objecto que considerava perigoso. Deu início ao acto sagrado. Lá para o meio da missa quando chegou a ocasião dizia o padre:

__ Muda o missal, António !

__ Não mudo. Dê-me o canivete.

__ Não posso. No fim da missa.

__ Não dá ? Não mudo o missal !

No público ninguém ouvia O diálogo entre os dois era sussurrado, em surdina.

__ Muda o missal !

__ Não mudo !

Foi, então, que o padre se viu obrigado a levantar a batina e tirar do bolso das calças, em plena missa, o canivete e passá-lo para as mãos do garoto. Pronto ! A história foi contada mais uma vez.

Fim do dia. E as botas ?

__ Senhor Nunes, estou com elas, dizia o Pivetas.

E a pergunta repetiu-se durante uma ou duas semanas.

__ As botas ?

__ Estou com elas, Senhor Nunes .....

Nas frase “ Estou com elas “ fazia supor que estava com elas no conserto. A meio, talvez ....

Até que um dia, o meu pai perguntou mais uma vez se as botas estavam prontas. A resposta repetiu-se.

__ Estou com elas ... Estou com elas ....

Olhando para os pés do velho sapateiro ....... e lá estavam elas ....... calçadas !!!!!!!

Pois ... Até falava verdade. “ Estou com elas” significava que estava com elas ...... calçadas .....

E assim, se ia governando, sem precisar de comprar botas ou sapatos. Ia calçando as dos fregueses que as levavam para consertar ....

Sempre ouvi dizer: “ Quem não tem cão .... caça com gato “ ........

Natércia Martins


terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Espertinho !!!!!!





Hoje já ninguém se lembra, mas no início do século passado, as ruas, que hoje se chama “ A Baixinha” de Coimbra, ficavam ao mesmo nível do rio.

Depois, com as obras da Rua Navarro, ficaram a um nivel inferior. E era aí numa dessas ruas estreitas que a minha avó tinha uma taberna, onde se vendia chanfana, ou mesmo só o molho quando não havia dinheiro para pagar a carne.

Parece que tinha fama de saborosa.

O velho Basófias era navegável e as Barcas Serranas desciam o rio desde Penacova, carregadas de carqueja, azeite e carvão. As recoveiras aproveitavam o transporte e aviavam os recados, as lavadeiras traziam a roupa para lavar, ali mesmo na margem, pendurando-a a seguir nas grades que ainda hoje lá se encontram, ou até no próprio areal.

Quando as Barcas subiam o rio, levavam de volta as lavadeiras com a roupa já seca.

Contava a minha mãe que a minha avó mandava a criada para a porta da taberna contar as velas das Barcas a fim de saber quantos pratos de chanfana tinha que preparar

Numa tarde de vento e chuva forte, aliás numa tarde de tempestade, a minha mãe foi visitar a mãe dela, minha avó e ...... nessa tarde, eu nasci.

Ao mesmo tempo desabava a chaminé em cima de um tacho de arroz de chouriço que cozinhava em cima do fogão da taberna. Passados um dia ou dois, lá fomos as duas a caminho da aldeia. E foi na casa da minha avó, na Rua Sargento-Mor, rua pequena, estreita e escura que eu nasci. Lá em baixo, na taberna, apesar do temporal, a vida continuou sem sem mais transtornos que o arroz de chouriço desfeito debaixo da chaminé caída.

Aos Domingos havia música no Parque da Cidade. E era ver algumas velhotas, rapazinhos e militares a correr para ficar bem à frente da grade do coreto. Não raras as vezes a luta por um lugar melhor “ descambava” em zaragata. E apanhava quem não podia fugir, ou porque as pernas não acompanhavam o pânico que se gerava, ou porque não havia tempo de fugir. Numa dessas zaragatas, a minha bisavó foi apanhada. Ela, que não perdia uma boa tarde de música no coreto, ao Domingo. Na pressa da fuga perdeu uma chinela. Claro que a minha avó não gostou da “ coisa”. No outro dia foi à esquadra a fim de reaver a chinela. Só tinham encontrado umas asas de um qualquer anjinho de uma qualquer procissão. Foi uma risota entre os militares, pois conheciam bem a referida velhota.

As histórias e personagens vão-se entrelaçando entre si. São sempre as mesmas pessoas, pois sendo um local pequeno, toda a gente se conhecia. As tristezas, as alegrias e até as partidas eram como se de uma família só se tratasse.

Ali mesmo ao lado da rua onde morava a minha avó havia o Largo do Romal. Morava ali o “ Perneta”. Tinha uma perna de pau Daí o alcunha Vivia no 1º andar. Como companhia, uma gata amarela. Quando subia a escada de madeira só se ouvia o som cavo da perna de pau a bater nos degraus.

Um dia a gata morreu. O homem desfazia-se em lágrimas de pranto. Juntaram-se as vizinhas e decidiram consolar o pobre homem. Fizeram uma coroa com o material que tinham mais à mão: carqueja. Ficou danado e nem teve dificuldade em descer as escadas atrás delas com a muleta pronta a desabar na primeira que encontrasse.

Tinha a minha avó Catarina um galo lindo. De penas amarelas e pretas. Andava por entre as pernas dos fregueses, sentados em bancos corridos. Comiam chanfana e bebiam vinho.

Lá ao fundo alinhavam-se os pipos cheios do líquido cor de rubi. O meu avô pouco por ali parava. Não gostava ! Tinha outras ocupações. E o galo por ali andava sem incomodar ninguém e também ninguém o incomodava. Migalha aqui, migalha ali Já fazia parte da clientela. O meu avô embora, por vezes arredio dali, ia-o observando Parecia que de prazenteiro e alegre durante o dia, tudo se modificava à noite. Cambaleava e o rabo cheio de penas enormes, ficava retorcido. A crista vermelha, ficava ainda mais vermelha e tombada. Mau! Estaria o galo doente ?

Os dias iam correndo. O galo, de vez em quando largava um cócórocó sonoro, de bico aberto apontando ao sobrado onde eu nasci num dia de tempestade. À noite nem força tinha para cantar. O sonante cócórocócó saia rouco, esganiçado e desafinado. Não havia resposta para tal transformação.

O meu avô tirou-se de cuidados e espreitou. Então não era que o esperto bicho se colocava debaixo da torneira da pipa e aparava, de bico aberto, o pingo que caía . Claro! À noite a bebedeira era no mínimo....... muito grande !!!!!!



Natércia Martins

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Dava tudo !!!!



Daquele nosso primeiro encontro

Eu guardo cada gesto, cada palavra.

Guardo o azul dos teus olhos.

E o vermelho dos teus lábios ...

Guardo ainda, a tua juventude

Que junto à minha velhice

Torna tudo mais doce !!

E relembro

E recordo

E penso

Como tudo se modificou !

Agora só me resta recordar-te.

Mas queria ver-te mais uma vez !

Só mais uma vez .....

E penso,

E recordo,

E relembro,

Cada uma das tuas frases !

E a minha velhice fica mais doce !

Queria ver-te mais uma vez.

Dava , da minha vida, uma hora,

Um dia,

Um mês,

Um ano .....

Só para estar contigo ....

Para te ver de novo,

E poder,

Relembrar,

Recordar

E pensar ...

Depois ..... Bem, depois ......

Posso morrer !


Natércia Martins

2005


sábado, 10 de fevereiro de 2007

Engano

Engano


Amar-te,eu sei, foi pecado sem perdão !

Não terás o prazer de me ver chorar !

Hoje sou pétala caída no chão

Sou a rua deserta, a vida esquecida, a noite sem luar !!


Foste coisa que passou e não volta.

Foste miragem que fugiu e se perdeu !

Amargura, traição, ódio e revolta

Uma calma triste. Tudo isto sou eu .


O que fizeste de mim ?Não sei dizer-te.

Sou outra. Não me reconhecerás. Não sou eu !

Foste amor que passou como os demais.


Um castelo de cartas que ruiu !

Sim .... Soam gargalhadas roucas de prazer ....

Porque, afinal, eu nunca gostei de ti !!!!!!


Natercia Martins

Sou feliz !!!!


Desço a encosta ao teu encontro.

As folhas secas desfazem-se sob os meus pés

Encontro-te mudado, pareces outro.

Eras muito diferente do que agora és .....


Os teus olhos, não são estrelas. São sinais ...

Essas duas rugas, eu não tas conhecia.

Vida, amor e tudo o mais,

Quero que seja como no primeiro dia !


Amor, alegra os teus olhos.

Sorri para os meus. É novo dia.

Tudo é alegria, sol e esperança !


Já não tenho lágrimas nem receios.

Já não tenho medo de te perder.

Agora, sim, amor Sou feliz !!!!



Natércia Martins



OVNIS (ou não )

Dizem que andam por aí. Como e onde, não sabemos. Há sempre quem veja um ou outro OVNI

Afirmam como de coisa real se tratasse.

Eu, infelizmente, nunca vi nenhum, mas afirmar que não há vida além do nosso planeta Terra, é coisa que não posso. Seria estupidez da minha pessoa fazer uma afirmação dessas. Deve haver vida inteligente lá noutras galáxias, e de vez em quando apetecendo-lhes dar uma voltinhas por estes lados, pegam seus veículos e aparecem por aí.

Como, se calhar, a nossa curiosidade é, de certa forma, grande, pomo-nos a olhar para o céu, de nariz no ar.

Há uns anos colocaram por iniciativa de um professor da Escola Preparatória da Carapinheira um sistema de observação de previsão do tempo. Alguns jovens interessaram-se por isso e faziam as observações utilizando o computador. Até lhes fizeram uma entrevista num jornal diário com direito a fotografia.

Estudaram com muito entusiasmo o céu, as estrelas, constelações e nebulosas. E como muito jovens que eram, fantasiavam empurrados por leituras que faziam. Também algumas vezes “ viram “ objectos estranhos nos céus. Mesmo, nós os mais velhos nos interessámos por tal estudo, acompanhando,por vezes as ditas observações.

Afinal foi um bom método para o estudo da geografia, começando assim um sistema bem diferente do ensino decorado do meu tempo.

O céu é um fascínio ! Aliás sempre foi.

Por essa época, apareceram nos jornais muitas noticias de pessoas que viram OVNIS.

Estes com técnicas muito avançadas traziam para a viagem espacial veículos de formas originais. Uns diziam serem do feitio de charuto. Outros afirmavam serem redondos e com luz verde..

Uma noite no Inverno, e vindos do ensaio do rancho folclórico, chegados a casa, deparámos com o meu marido, no quintal observando uns raios de luz, fortes, coloridos e que se movimentavam procurando algo no céu. Claro ! Um OVNI!

Eu e o meu filho Zé, o mais novo, chegámos e também vimos. Ele era um interessado nessas tais observações. Meio em pânico, ficámos olhando durante algum tempo. Foi aí que uma ideia se apoderou de nós. Telefonar para o jornal avisando da estranha presença. Ainda bem que não o fizemos.

Os vizinhos, mantinham-se em casa, alheios a tal fenómeno. Só nós os três faziamos conjecturas. Eles andavam por ali. Que quereriam eles ?

Mudámos de sítio percorrendo o quintal, mas de todo o lado se viam os mesmos raios luminosos e coloridos percorrendo o céu.

E se fossem mesmo extraterrestres ? Se no quintal aterrasse naquele momento a nave com gente esquisita de côr verde e olhos vermelhos ?

É que a nossa imaginação aliada ao medo já via alguém a sair e dirigir-se nos . Como nos iríamos entender ? Logo se veria Que aterrassem mesmo ali !!

E os raios luminosos quase tocavam as nossas cabeças parecendo cada vez mais baixos.

Viamos uma grande bola de luz lá em cima, tocando as pontas altas dos pinheiros.

Isto demorou até que madrugada alta chegou o meu filho mais velho, o Pedro, vindo também da rua. O barulho da velha motorizada tranquilizou-nos.

Chamámo-lo. Entrou, mãos nos bolsos e admirou-se de nos ver ainda levantados àquela hora tardia.

__ Aconteceu alguma coisa ?

__ Viste o que se passa na rua ? Não viste os raios luminosos ?

__ Vi, disse ele, já a sorrir.

Com uma gargalhada sonora, exclamou:

_ Vocês são mesmo doidos ! Aquilo que vocês estão a ver, é um sistema novo de publicidade a uma discoteca aqui perto.

Mistério desfeito !

Fomos para a cama sonhar e pensar nos OVNIS, que mais não eram que simples e inocente publicidade a um local de diversão.


Natércia Martins



2006