Há pouco tempo estive lá. Subi devagar a calçada até à capela da Senhora do Livramento, na Portela.
A calçada pouco íngreme de pedra rolada da ribeira trouxe-me à memória a taberna do Xico Sapateiro.Pelo caminho fui encontrando as casas, hoje vazias e a cair, dos moradores de outros tempos, não muito longínquos.
A casa da D. Alzira, do Sr Benjamim, da Srª Emília e Sr Artur,do Zé Higino que era sapateiro e do Xico sapateiro que no fim de contas era taberneiro. Tinha uma varanda que servia de eira, sala de jogo da malha, de salão de baile. Ao Domingo os rapazes iam para lá jogar a malha e beber copos de vinho tinto com tremoços.
A malha de ferro voava até ao adversário no meio de um palavrão com a certeza de quem derruba por artes mágicas. Eram assim os Domingos à tarde, nas tardes calmas e soalheiras da canícula de um Verão no meio das serranias bordadas a mato e pinheiros.
E o Xico Sapateiro mais a mulher, dentro de um balcão feito de tábuas negras e surradas com lixo de anos.
Ele, homem dos seus cinquenta anos, lento, como lentos são os dias passados na aldeia, gordo e bochechas vermelhas.
Ela, a mulher, pedia licença a um pé para mexer o outro, ou seja, lenta, lentinha..... ainda mais que o marido, também de faces vermelhas, ria por tudo e por nada, enquanto as gargalhadas e conversas sem interesse se desenrolavam até bem perto da noite, hora que em silêncio se iam levantando do banco corrido colocado ao fundo da taberna.
O chão de terra batida e negro pelo pisar dos homens e das botas cardadas, do vinho entornado ia assistindo, tarde após tarde, ano após ano, sempre ao mesmo ritual.
Não havia nada, mais nada para fazer. E fui subindo a rua. Fui encontrando os seus moradores e ao mesmo tempo revivendo o tempo antigo.
Não se pense que recordar o tempo passado é o mesmo que ficar carpindo como um velho, agarrado ao passado e às mágoas . Sem passado não se pode construir o futuro.
Acredito que daqui a alguns anos aquela aldeia perdida na serra ganhe novamente vida, as casas renovadas, novamente fervilhem de vida como outrora. As crianças percorram aquela rua, agora quase deserta. A correr e a rir. O sino da igreja faça repiques de casamentos e batizados como naquele dia em que eu, também, al jurei fidelidade a um homem.
E volto às memórias antigas. E tão antigas ......
O Xico Sapateiro que não era sapateiro, mas sim taberneiro, tinha duas filhas em idade de arranjar namoro e, casar. Havia que fazer por isso. Com uma sala de baile ali tão perto, até era ao ar livre, uma concertina tocada “ouvido” por um “ moço” que ali apareceu a fim de trabalhar numa casa como criado. Agora já tudo muito mais animado.
Aos Domingos à tarde juntavam-se as raparigas acompanhadas das mães que ficavam enlevadas vendo as suas meninas dançando esperançadas de um futuro namoro. Naquele Domingo à tarde tudo se repetia. Invariavelmente da mesma maneira.
Começa o toque da concertina. Algumas raparigas a dançar levantavam a saia rodada no movimento da roda da “ moda”
É, então, que lá ao fundo da escada aparece um rapaz mais ou menos conhecido vindo da aldeia vizinha, fato preto meio amarrotado, camisa de linho, botas de atanado, cardadas e boina na cabeça, cara de labrego, torrada pelo sol e pelo trabalho duro do campo.
Devagarinho vai-se chegando a uma das filhas do dono da taberna e de mansinho, a medo, vai perguntando:
__ Menina “ Coceição” vamos dançar a moda do “ grafanhoto” ...... ?
A menina “ Coceição” foi dançar a moda do “ grafanhoto” e nunca mais parou.
Passaram meses e o rapaz do fato preto, amarrotado, e cara de labrego saiu da igreja com o sino a repique numa manhã de Domingo, de braço dado com a menina “ Coceição” ainda meio envergonhado por naquela tarde ter pedido para dançar a moda do “ grafanhoto”
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