A minha rua não é bonita nem feia. É a minha rua !
Modesta rua de aldeia onde passeiam, livremente cães, gatos e até pessoas. Não tem passeios. Não precisa. Ladeiam-na oliveiras, nogueiras e pinheiros. Automóveis passam, só os dos moradores da aldeia. Um ou outro de alguém cujas terras de cultura ficam lá mais acima. Mas estes são poucos. São tractores” todo-o terreno”. Sabemos sempre quem são. Conhecem-se pelo barulho do motor. Distinguimo-los tão bem como distinguimos o timbre das vozes das pessoas. Cada um tem um “ trabalhar” diferente.
A minha rua não tem lojas, montras e muito menos um supermercado. Mas tem o rebate da minha porta onde ao Domingo, no Verão, nos sentamos a conversar e a contar histórias antigas.,
São poucos os que ali moram, por isso mesmo cabemos todos. Quem não cabe na velha pedra, senta-se num banquinho pequeno que usamos frente à lareira, no Inverno. As histórias que se contam, são sempre relacionadas com moradores actuais ou familiares já desaparecidos.
Contam que o Ti Albano ia com os filhos arrancar pedra à pedreira lá ao fundo do lugar. Essa pedra calcária era mesmo dali transportada em brita, que nos anos vinte serviu para fazer as calçadas de Coimbra.1 Rebentavam os veios com picaretas e partiam as pedras com a mesma que se parte uma fatia de bolo..
As filhas, descalças, levavam o almoço enquanto as pedras do caminho lhes pisavam as unhas já calejadas de tanta “ topada” de dias e meses anteriores. A mulher,Ti Grabelinda, magrinha, pequenita de estatura, colhia ervas medicinais que vendia ao dono da ervanária que passava de vez em quando. Outras mulheres levavam cestos cheios de estrume para os “balcões” roubados ao pinhal, a fim de semear batatas, couves, e outros legumes sazonais. As ovelhas e cabras, tinham honras de entrar pela porta da frente, única, aliás.
Sempre isto me fez alguma confusão .
Pessoas e animais coabitarem em harmonia,dentro da mesma casa.
As coisas modificaram-se nestes últimos anos. Já não há animais, assim, a coabitar com as pessoas. Os velhos morreram e os novos têm outros hábitos. Falamos da vida de antigamente., quando a única iluminação era a candeia de azeite o petróleo. A electricidade só apareceu lá para os finais dos anos sessenta.
Algumas das histórias têm cunho rocambolesco. As casas muito pequenas com a cozinha fora, no páteo, que por sua vez, tinha como iluminação a lua. Diziam: “ casa que caibas e terra que não saibas “. Sem água da rede pública, esta era carregada à cabeça desde a fonte, lá ao fundo, em Alcabideque, até casa no cântaro de barro ou de lata, mais leve.
Por vezes, ainda, alguma roupa lavada na fonte e trazida no topo do cântaro.
Vida dura,esta ,
À noite, os pés eram lavados em bacia de lata: um luxo !
Primeiro, o pai. Depois os filhos e finalmente a mãe A água ainda servia para regar as flores plantadas num alguidar ou penico velho. Em conversa, falou-se da Ti Deolinda que tinha o hábito de escutar às portas. Fazia-o à vontade encoberta pela sombra da grande nogueira plantada perto das casas.
Uma noite, viu um homem entrar na cozinha do Ti Albano e, ligeirinha ... foi escutar perto da parede.. A dona da casa sem se aperceber da sua presença, despejou a água, sem avisar, para a rua. Levou a Ti Deolinda um valente banho ! Até foi bom Foi um banho de graça !.
Contam, ainda, que as raparigas novas brincavam com os rapazes despejando o ar das rodas das bicicletas, único transporte nestas bandas. Depois iam rir às escondidas.
À tarde jogava-se à “pela”, à malha ou anelinho. Brincadeiras de gente inocente. Fico sozinha. São horas de cada um ir à sua vida. Horas de preparar a caia. Ficámos à conversa toda a tarde. E é assim todos ou quase todos os Domingos, na minha aldeia, na minha rua.
Lembro-me de quando íamos à escola . O prazer de ir à escola! Saco de linhagem a tiracolo. O que, na verdade, nos dava prazer eram as brincadeiras que se faziam pelo caminho. Laranjas “ voavam “ para dentro das janelas abertas. O pisar o gelo formado em cima das poças de água, durante a noite. Sentir a sola dos sapatos ou tamancos a ranger por cia desse mesmo gelo. Bolas de lama que se atiravam e iam cair onde calhava e a pontaria pouco afinada o permitia. As bagas dos carrascos metidas no bolso a fingir de moedas que não tínhamos. Eram os nossos tesouros !!
Agora passamos por qualquer escola do País e lá estão os pai a ir buscar os filhos de carro.
Eu penso que lhes estão a roubar o prazer de ir à escola. Roubam-lhes as brincadeiras que se podem fazer enquanto se não chega a casa. Chegados sentam-se frente ao televisor ou à “ consola” e absorvem o jogo já sem margem para imaginação. Está tudo preparado para a criança não se maçar ou pensar. Onde estão prazer de imagina castelos encantados, reis, rainhas, bruxas ou salteadores escondidos por entre os pinheiros.?
Tudo muda. O prazer do caminho até casa,também.
Mal de um povo que não evolui. Eu sei !
Mas sei,que há coisas que não se esquecem nunca e ficam gravadas na memória e não há tempo que a apague.
2 comentários:
Sempre gostei muito deste teu texto "A minha rua". Não sei porquê, mas há uma calma familiaridade na sequência do texto.
Muito bom.
Eu também sou um frequente passeante "da sua rua" e gostei da forma como conseguiu "espremer este sumo" de uma "fruta tão pobre".
É verdade! Não é bonita nem feia, mas está orlada de inumeros vasos com as suas respectivas flores.
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