terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Ti Manel da cruz

Ti Manel da Cruz
A casa do Ti Manel da Cruz era um amontoado de coisas. Uma só assoalhada com a cama e lareira juntas.
Casa de banho? Não havia. As necessidades fisiológicas eram feitas num pátio com mato a servir de tapete, onde em tempos houve galinhas e ovelhas.
A idade e a paciência não lhe permitia ter animais Por outras palavras: Não estava para aí virado. Davam trabalho.
Homem já velho, solteiro, olhar vago, como que a pensar no que não lhe apetecia fazer.
Sempre morou sozinho. Nunca quis casar porque sempre teve a ideia que as mulheres além de exigentes, teimosas, vaidosas e refilonas dão muito trabalho. Além disto, que já não é pouco, uma mulher deve gastar muito dinheiro. Ah! Isso é que não. O seu dinheiro? Elas precisam de coisas que são absolutamente inúteis, tal como vestidos, blusas, sapatos e ainda pior: precisam de espaço para arrumar o que ele gostava de ter desarrumado.
Em novo ainda pensou em namorar com a vizinha do fundo da rua. Bonita e com um corpinho de fazer inveja aos rapazes. Nos bailaricos de carnaval ou de verão, lá estava ela a dançar, fazendo rodopiar a saia de godés, mostrando umas pernas bem torneadas. Pensou bem e desistiu.
Os anos foram passando e sem os contar chegou à velhice.
Sentou-se na cama, onde não havia lençóis. Apenas uns cobertores da Serra da Estrela, herdados da mãe quando morreu. Herdou também uma panela e uns pratos, alguns com falhas nas bordas. Lavava-os quando lhe apetecia. A televisão pequenita sem grande definição dava para ver um ou outro filme. Gostava de ver cinema americano. A língua não o atrapalhava. Não entendia o que diziam. As legendas davam para ler. Achava graça àquela forma de falar. Então quando havia cavalos e cow- boys o filme ainda era melhor. Estendia-se na cama e enquanto lia as legendas, ria rebolando-se para um lado e para o outro.
Uma tarde de Inverno apeteceu-lhe ir até ao café, no centro da vila. Olhou para os cartazes que anunciavam grandes prémios conseguidos através de uma coluna do totoloto. E se experimentasse? Nunca se sabe …. Pegou no papelinho, escolheu os números, registou, meteu o papelinho no bolso e saiu. Já em casa, pendurou o casaco nas costas da cadeira e nunca mais ligou àquele papelinho cheio de números.
Os dias foram passando.
Um dia adoeceu. Foi ao médico que diagnosticou uma pneumonia. Ficou internado.
Nunca disse que tinha registado aquele boletim. E o tempo foi passando.
Alguém na vila ganhou um prémio de milhões. Quem seria? O cartaz a anunciar os números esteve afixado na porta do café. A incógnita do ou da vencedora mantinha-se. Afinal quem seria? Todas as pessoas iam e vinham com os boletins a confirmar. Ninguém apareceu com o boletim premiado.
O Ti Manel da Cruz continuava internado, até que o sino da igreja deu a má notícia. Não tinha resistido. Morreu calmamente na cama limpa e branca do hospital. Pediram roupa a fim de o vestir para a sua última morada.
A irmã procurou na casa o que pôde e o que se poderia aproveitar. Finalmente pegou no casaco. Agarrou-o da cadeira onde ele o pendurou no dia em que fora à vila. Revistou os bolsos. E bem dobradinho um boletim do Totoloto. Primeiro nem ligou. Pegou de novo no boletim e viu com espanto que os números coincidiam com os do cartaz do café. Foi ele que acertou na chave certa.
Natércia Martins
2012