sábado, 10 de dezembro de 2011

Esqueci-me

Esqueci-me da vida

Esqueci-me de sonhar.

Pequena fantasia de me esquecer.

Esqueci-me de como és.

E de perder-me nos teus braços.

Esqueci-me de ver a tua face

A amarelecer com o tempo

O tempo não pedoa !

Esqueci-me de como são as tuas mãos

Que doces, afagavam as minhas mãos.

Tudo se esquece !

Esqueci-me de dizer sim e não.

É o tempo que passa a correr !

Esqueci-me do geito dos teus lábios

Sussurando o meu nome.

Doce fantasia ! Esqueci-me de tudo.

Mas ..... de ti ... esqueci-me de te esquecer !

Natércia Martins -- 2011-12-10

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

De Tomar ao Entroncamento

Era grande, preto, feio e deitava uma fumarada pegajosa logo que se punha em movimento..

No entanto as portas e janelas tinham bordaduras amarelas que brilhavam ao sol.

No cais de embarque havia um homem de fato de ganga azul que com o apito estridente, que se metia pelos ouvidos, dava ordem para o comboio iniciar a marcha. E ele lá começava, devagar, como que a pedir desculpa de andar tão devagar, tão devagarinho. Mas o carvão e as máquinas não davam mais.

Quem se atrasava precisava de correr, mas apanhava sempre o comboio.

O Comboio ia de Tomar ao Entroncamento. Tenho saudades dessas viagens. A distância entre as duas localidades não é muito grande mas o comboio demorava muito tempo.

Sentávamo-nos onde queriamos, ou onde houvesse um lugar vago. Ali viajavam os militares e as vendedeiras do mercado. Junto com as vendedeiras iam ao colo ou junto do chão, as galinhas, laranjas, figos e uvas.

Todos nos conheciamos porque eram sempre as mesmas pessoas.

A tropa vindo do quartel de Tomar e em direcção às suas casas no fim de semana ou em dia de folga.

E aí estava estabelecida mais uma confusão. Entravam na primeira carruagem e quando chegavam perto de estação de Curvaceiras, saiam e pouco depois entravam na ultima carruagem. Iam aos figos ou às uvas. Entravam e saiam com o comboio em movimento. E tinham tempo. Depois, muito bem instalados, nos bancos de madeira, já polidos de tantos passageiros transportados. De vez em quando, entrecortado pelo taf taf das rodas de ferro nos carris, gastos pelo tempo, o piiiiiiiiiii agudo avisando da sua presença.

Algumas passagens de nivel com a guarda de bata amarela e bandeirinha vermelha na mão, ficavam fechadas com a mesma lentidão com que o comboio passava..

Mas a viagem, longe de ser monótona, pese embora o tempo demorado, que era bastante, para não dizer que era imenso, era deveras divertida.

Os militares e vendedoras já vindas do mercado, insultavam-se mutuamente. Fosse pela ocupação de um lugar, fosse pelo incómodo que causava um cesto, ou ainda pelo cheiro algo incomodativo vindo de algum passageiro. Também havia disso. Ah! Sim Havia !

O comboio era o local certo para se arranjar namoro. Um namoro inocente que não passava da mão no ombro ou de frase mais atrevida.

Que saudades eu tenho dessas viagens de Tomar ao Entroncamento. Passava-se a linha, aliás um emaranhado de linhas férreas e entrávamos no Foguete que nos levava a Lisboa. Não tinha militares nem vendedoras do mercado. Era mais rápido e de cor prateada, mas também parava em todas as estações.

Quando viajava no comboio de Tomar ao Entroncamento tinhamos a sensação que a viagem nunca mais chegava ao fim, com os bancos de madeira, incómodos e atulhados de gente.

Recordo um militar de cabelo louro, um tanto refilão, aprumado na farda gasta, num dia de calor intenso, já farto da viagem, subiu a um dos bancos e quando pensávamos que iria fazer alguma declaração de guerra, ou de protesto, pôs - se a declamar versos de Camões:

Amor é fogo que arde sem se ver “.................

Estava apaixonado o rapaz ! Risota e assobios. Muito convicto no que dizia, falava, falava .....

O revisor, de alicate na mão madou-o calar, tocou-lhe no braço, gritou-lhe, mandou -o sair de cima do banco, pediu -lhe o bilhete. E ele sempre a declamar versos de Camões.

O revisor encolheu os ombros, apontou um dedo à cabeça e foi embora revistando os outros bilhetes.

Natércia Martins -- 2011-11-13

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Sonhei !

Sonhei que o meu corpo

Tocava o teu.

Sonhei que uma chama lenta

Me consumia a alma.

Sonhei que a maré

Me levava com sussurros

De um mar de lava e fogo

Sonhei que as mãos se entrelaçavam.

Sonhei ! Sonhei !

E o mar revolto me afogava

Sonhei !

Os sonhos são assim:

Um deserto e um oásis

Misto de fogo , suor e água

E eu vou contigo.

És o sonho que fugiu

O sonho que não passa disso mesmo.

Natércia

Julho de 2011-07-18

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A velha caixa

Tenho uma caixa de papelão muito velha, atada com um cordel velho como a caixa, pousada numa prateleira. O nó do cordel, bem apertado, não se deixa desatar. Puído, mas seguro. Nunca ninguém se atreveu a ver o que tem lá dentro. Quando a minha avó ainda era viva, não deixava que eu ou o meu irmão lhe tocássemos. Dizia que tinha lá dentro um segredo.. Pois! Um segredo ! Que raio teria a caixa lá dentro ? Um dia, numa tarde quente de verão, a casa parecia sem ninguém. Vazia. Todos tinham ido à sua vida. A criada, única pessoa, por perto, naquela tarde, fazia o seu trabalho, arrumando a roupa passada a ferro, lisinha e cheirosa , porque a água límpida do tanque fizera o seu papel e o estendal no corredor das roseiras, túlipas e buganvilias fizeram o resto, transmitindo o seu cheiro à roupa, mesmo sendo o ferro aceso com carvão que cheirava mal. E a caixa na prateleira ! Uma dessas tardes, o meu irmão e eu decidimos que iríamos ver o que continha a caixa de tão precioso. Um de nós subiu a uma cadeira, tirámos a caixa com muito cuidado, sentámo.nos no chão ainda hesitantes, mas decididos. Iríamos ver o que estava lá dentro. A caixa era muito leve. Poderíamos afirmar que não continha nada. Mas devia ter.Teria ? Abrimos ? Não abrimos ? Porquê tanta preocupação com uma caixa velha ? Tantas perguntas sem resposta. Nisto e como por magia, apareceu a minha avó. Mesmo no momento certo. Passou-- nos uma descompostura lal, tão violenta, aguçou-nos ainda mais a curiosidade mas nunca mais tocámos na caixa, nem olhámos para a prateleira, tal o medo que nos pregou. A avó, passados uns anos faleceu E a caixa lá em cima . Mudou tudo na casa, menos a tal caixa, muda, quieta, intocável, na velha prateleira, no mesmo sítio. Agora era a minha mãe que não deixava que se abrisse. Crescemos e o tempo foi passando. As férias, os amigos, as aulas, os verões, os invernos, o frio, o calor, as noites de lua cheia, as noites escuras como bréu, os meus namorados, as namoradas do meu irmão, as mortes, os casamentos, os baptizados, tudo se foi sucedendo. Passaram anos. A velha caixa também mudou de casa. Está ali, juntinho a um relógio de sala que veio com ela de casa dos meus pais. Sem nunca ninguém ter tido a coragem de a abrir. O que tem lá dentro ? Não sei ! Talvez nunca ninguém venha a saber porque a caixa vai passando de geração em geração e como se de magia se tratasse, vai ficando com o nó feito de cordel, mas que ninguém se atreveu a desatar.
Natércia Martins Junho de 2011-07-18



sábado, 2 de abril de 2011

Tenho saudades ....

Tenho saudades dos beijos que me davas ..

Tenho saudades dos teus olhos castanhos

Tenho saudades de te ver. Tenho saudades ...

Tenho saudades da tua mão na minha mão,

Quando ao anoitecer me procuravas,

E com as tuas mãos brancas e cuidadas

Acariciavas o meu cabelo.....

E me chamavas linda.

Que bom recordar-te.

Sonhar contigo nas noites intermináveis .

E tu voltas, ali, tão perto, tão real, tão presente.

Estendo os meus braços

E só encontro vazio.

Que foi feito de mim ? Que foi feito de nós ?

E a noite avança escura e fria.

E eu, sozinha, caminho pelos silêncios fora.

Perdida ? Não !

Tenho saudades.

E a saudade que me aperta o peito

É de imensidão tão grande .....

Mas eu caminho sempre,

Procurando sempre

Aquilo que não encontro:

Os meus sonhos sepultados

Num velho castelo de cartas

Que ruiu e com uma leve brisa se desmoronou ....

Natércia Martins

2011

terça-feira, 29 de março de 2011

Paisagem de S. Pedro do Sul -- Rio Vouga

Que é feito de ti ?

João Inácio era um belo rapaz vindo trabalhar para Lisboa, onde uma irmã vivia com o marido e um filho.

Filho de gente humilde das terras onde os pinheiros, pedras e mato são paisagem relevante. Procurou instruir-se, trabalhando de dia e estudando à noite. Quantas vezes a cabeça cheia de sono, lhe caía sobre os livros. E ele, teimoso, fazia os possíveis por decorar os textos escritos, onde , sequiso de saber, ia buscar os conhecimentos necessários aos testes apresentados pelos professores.

O tempo foi passando até que conheceu, a colega de turma que lhe pareceu bem diferente das outras meninas.

Chegou o tempo da tropa. Mobilizado para uma das colónias trazia sempre consigo a fotografia de Emília.

No mato, por entre tiros e o medo que os assolava a todos, a fotografia acompanhava-o como um talismã.

Sempre que as dificuldades se lhe deparavam, o simples olhar passado à pressa pela foto, sentia - -se cheio de coragem para voltar à sua terra. E o tempo ia passando. As cartas, escritas, por vezes em situações de grande stress, traduziam toda a emoção de uma guerra para onde tinha sido chamado, e com a qual nada tinha nada a ver.

Chegou o fim da comissão. Voltou e a primeira coisa que fez, foi procurar a sua Emília.

Encontrou-a diferente. Escrevera-lhe cartas longas, cheias de emoção. Recebeu, em troca , versos e missivas com toda a ternura que uma jovem apaixonada pode escrever.

Mas estava diferente. Mais tímida, ela que não demostrava timidez, nas cartas e nos versos que enviava. Mais fria, contrariando, os versos e os projectos de uma vida a dois. E o tempo, mais uma vez foi passando. O distanciamento tornou-se cada vez maior.

As cartas ficaram cada vez mais raras, até que não chegaram mais, tanto de um lado como do outro.

E o tempo voltou a passar .....

Emília sentou-se no muro do jardim por entre azáleas e buxos. Olhou as pedras que faziam a calçada do carreiro. As formigas iam e vinham na azáfama do costume carregando pequenos grãos e sementes trazidos dos canteiros.

Sabia de cor quase todos os textos das cartas que João lhe enviara há anos. De tanto as ler, uma por uma, sabia-as de cor. Falou alto como que a relembrar o que escrevera em resposta àquelas cartas.

Onde estaria João ? Nunca mais se encontraram. A vida levou-os cada um para seu lado e agora as saudades começaram a fazer-se sentir.

Levantou-se e andou algum tempo até à beira da fontezinha pequena, apanhou uma mão cheia de pedrinhas e começou a atirá-las uma a uma, para a água onde nadavam dois peixinhos vermelhos.

A velhice é assim ! As recordações antigas voltam à nossa memória. Factos que julgávamos perdidos E recorda, a cada dia que passa, muito do que viveu com as cartas de João.

Lembrou-se da cara redonda, muito corado, quase sem barba. Alto e magro.

Virou a cara ouvindo o marulhar de pés no saibro do caminho. Era João.

Viu uns olhos cansados e uns fios brancos a matizar a cabeleira ainda na sua maioria, de cabelos pretos. A vida traz-nos, por vezes, factos que julgávamos esquecidos.

__ Vim ver-te. O que é feito de ti ?

Trazia com ele dois meninos pequenos.

-- São os meus netos.

Emília levantou, ainda mais a cabeça, mostrando o rosto cansado, também. Os olhos tinham o fulgor de outrora e os cabelos já na maioria, brancos.

Os meninos largaram a mão firme do avô e debruçaram-se no pequeno lago, rindo à gargalhada por causa dos peixinhos vermelhos.

-- Avô. Olha que lindos !

João olhou em volta Estava tudo na mesma Aquela casa era-lhe familiar, de visitas dos tempos de rapaz Os craveiros nos vasos, as hortenses azuis, os jacintos amarelos ..... Tudo ! Tudo na mesma !

Os degraus da escada em granito, servira tantas vezes de banco, onde se sentavam, mão na mão. Agora, ali, dois velhos, sentados na beira do laguinho a ver os dois meninos a brincar com os peixes vermelhos.

Natércia Martins

2011