terça-feira, 28 de agosto de 2007

Cinema ao ar livre

Nem vos passa pela cabeça onde foi a primeira vez que fui ao cinema. Lembro-me perfeitamente. Íamos a pé ( claro ) a meio da tarde de um Domingo de Agosto. As cegarregas cantavam debaixo das folhas secas que estalavam com o pó, o calor e a sede. Quando chegávamos à vila esperava-nos a “ sala do cinema” Uma rua estreita e empedrada levava-nos até lá. Um lençol branco(?) era o ecrã. A máquina de projectar em cima de um escadote fazia crack ... crack ... enquanto a cremalheira perra fazia o filme correr numa bobine grande e ferrugenta.
As pessoas, depois de pagarem a entrada sentavam-se numas tábuas dispostas em paralelo, poisadas nuns bancos a servir de suporte.
As cenas iam passando a preto e branco, com música estridente e sem estereofonia. O que era isso ? Ali não havia outra luz que a do próprio filme ou a do sol. É que a sala tinha sido adaptada do curral das mulas do Cipriano.
Caiou, varreu, limpou . Quem não quisesse, não fosse lá ......
De vez em quando, uma ou outra pulga, aranha ou centopeia, lembrava-se de nos visitar. Nada que não levasse uma valente sacudidela. E o filme corria .... corria ....
Os intervalos eram só quando a fita partia. Era preciso colar com acetona. Isso levava o seu tempo.
Não me lembro muito, mas apenas de algumas cenas. A fita era “ O Zé do Telhado “ Um ladrão de barba grande,aprumado e limpo, num fato de bom corte. Roubava aos ricos pra dar aos pobres.
No filme chovia e estava frio. Um chá é que sabia bem. .... Na sua casa não havia lenha na lareira. Pensando bem .... olhou em redor. O piano ! Músicas em cima. Agarrou uma partitura e com elas fez um chá num bule que na minha imaginação seria verde. Bebeu em goles pequenos, saboreando o chá e aquecendo as mãos no bule verde. Nisto apareceram uns policias de grandes bigodes e cara de poucos amigos. Queriam prendê-lo Sem mais, salta pela janela da mansarda e corre pelos telhados. Do filme, não me lembro de mais nada, mas sei que tive muita pena do Zé do Telhado. Alguém também com o mesmo sentimento, fungava e limpava as lágrimas com um lenço branco metido no bolso para esse efeito.
Depois, já perto da noite regressávamos a casa, a pé mais uma vez, não sem antes passar por casa da Avó Emília.
A avó Emília era a mãe do meu avô Joaquim. Morava junto do cruzeiro, ao cimo da Rua Torta, perto da Marquitas Lobo. A Marquitas Lobo era cozinheira dos casamentos e batizados.
Fazia maranhos como ninguém. Também empadas e tigeladas. Era uma referência na vila. Mas, dizia eu, a avó Emília, mulher pequenina, magrinha e teimosa ...
Morava sozinha. Era viúva há muitos anos.
A minha mãe, a minha tia Laura e eu, saiamos do cinema e dirigiamo-nos a casa dela.
__ Então, meninas, de onde é que vêm ?
( Ela farta de saber )
__ Avó, fomos ao cinema.
__ Entrem, entrem, meninas. Sentem-se.
__ Pois é, avó. Está um calor ...... Não se suporta.
__ Querem uma caneca de café ?
__ Pois sim, avó. O cinema faz fome.
A avó, andava desde o fogareiro até à cantareira e à janela. Fazia o caminho duas ou três vezes. Parava perto da janela. Olhava com atenção para o lavadouro que ficava logo em baixo, onde as mulheres cantavam ao desafio enquanto lavavam roupa.
Olhava melhor para o céu azul e vermelho de tanto calor. Coçava a cabeça e dizia:
__ Vão-se embora, meninas. Vão-se embora. Vem lá tanta chuva .. É melhor irem-se embora .
As duas pegavam em mim e iam mesmo embora, antes que chovesse !!!!!

domingo, 26 de agosto de 2007

A minha Rua

A minha rua não é bonita nem feia. É a minha rua !
Modesta rua de aldeia onde passeiam, livremente cães, gatos e até pessoas. Não tem passeios. Não precisa. Ladeiam-na oliveiras, nogueiras e pinheiros. Automóveis passam, só os dos moradores da aldeia. Um ou outro de alguém cujas terras de cultura ficam lá mais acima. Mas estes são poucos. São tractores” todo-o terreno”. Sabemos sempre quem são. Conhecem-se pelo barulho do motor. Distinguimo-los tão bem como distinguimos o timbre das vozes das pessoas. Cada um tem um “ trabalhar” diferente.
A minha rua não tem lojas, montras e muito menos um supermercado. Mas tem o rebate da minha porta onde ao Domingo, no Verão, nos sentamos a conversar e a contar histórias antigas.,
São poucos os que ali moram, por isso mesmo cabemos todos. Quem não cabe na velha pedra, senta-se num banquinho pequeno que usamos frente à lareira, no Inverno. As histórias que se contam, são sempre relacionadas com moradores actuais ou familiares já desaparecidos.
Contam que o Ti Albano ia com os filhos arrancar pedra à pedreira lá ao fundo do lugar. Essa pedra calcária era mesmo dali transportada em brita, que nos anos vinte serviu para fazer as calçadas de Coimbra.1 Rebentavam os veios com picaretas e partiam as pedras com a mesma que se parte uma fatia de bolo..
As filhas, descalças, levavam o almoço enquanto as pedras do caminho lhes pisavam as unhas já calejadas de tanta “ topada” de dias e meses anteriores. A mulher,Ti Grabelinda, magrinha, pequenita de estatura, colhia ervas medicinais que vendia ao dono da ervanária que passava de vez em quando. Outras mulheres levavam cestos cheios de estrume para os “balcões” roubados ao pinhal, a fim de semear batatas, couves, e outros legumes sazonais. As ovelhas e cabras, tinham honras de entrar pela porta da frente, única, aliás.
Sempre isto me fez alguma confusão .
Pessoas e animais coabitarem em harmonia,dentro da mesma casa.
As coisas modificaram-se nestes últimos anos. Já não há animais, assim, a coabitar com as pessoas. Os velhos morreram e os novos têm outros hábitos. Falamos da vida de antigamente., quando a única iluminação era a candeia de azeite o petróleo. A electricidade só apareceu lá para os finais dos anos sessenta.
Algumas das histórias têm cunho rocambolesco. As casas muito pequenas com a cozinha fora, no páteo, que por sua vez, tinha como iluminação a lua. Diziam: “ casa que caibas e terra que não saibas “. Sem água da rede pública, esta era carregada à cabeça desde a fonte, lá ao fundo, em Alcabideque, até casa no cântaro de barro ou de lata, mais leve.
Por vezes, ainda, alguma roupa lavada na fonte e trazida no topo do cântaro.
Vida dura,esta ,
À noite, os pés eram lavados em bacia de lata: um luxo !
Primeiro, o pai. Depois os filhos e finalmente a mãe A água ainda servia para regar as flores plantadas num alguidar ou penico velho. Em conversa, falou-se da Ti Deolinda que tinha o hábito de escutar às portas. Fazia-o à vontade encoberta pela sombra da grande nogueira plantada perto das casas.
Uma noite, viu um homem entrar na cozinha do Ti Albano e, ligeirinha ... foi escutar perto da parede.. A dona da casa sem se aperceber da sua presença, despejou a água, sem avisar, para a rua. Levou a Ti Deolinda um valente banho ! Até foi bom Foi um banho de graça !.
Contam, ainda, que as raparigas novas brincavam com os rapazes despejando o ar das rodas das bicicletas, único transporte nestas bandas. Depois iam rir às escondidas.
À tarde jogava-se à “pela”, à malha ou anelinho. Brincadeiras de gente inocente. Fico sozinha. São horas de cada um ir à sua vida. Horas de preparar a caia. Ficámos à conversa toda a tarde. E é assim todos ou quase todos os Domingos, na minha aldeia, na minha rua.
Lembro-me de quando íamos à escola . O prazer de ir à escola! Saco de linhagem a tiracolo. O que, na verdade, nos dava prazer eram as brincadeiras que se faziam pelo caminho. Laranjas “ voavam “ para dentro das janelas abertas. O pisar o gelo formado em cima das poças de água, durante a noite. Sentir a sola dos sapatos ou tamancos a ranger por cia desse mesmo gelo. Bolas de lama que se atiravam e iam cair onde calhava e a pontaria pouco afinada o permitia. As bagas dos carrascos metidas no bolso a fingir de moedas que não tínhamos. Eram os nossos tesouros !!
Agora passamos por qualquer escola do País e lá estão os pai a ir buscar os filhos de carro.
Eu penso que lhes estão a roubar o prazer de ir à escola. Roubam-lhes as brincadeiras que se podem fazer enquanto se não chega a casa. Chegados sentam-se frente ao televisor ou à “ consola” e absorvem o jogo já sem margem para imaginação. Está tudo preparado para a criança não se maçar ou pensar. Onde estão prazer de imagina castelos encantados, reis, rainhas, bruxas ou salteadores escondidos por entre os pinheiros.?
Tudo muda. O prazer do caminho até casa,também.
Mal de um povo que não evolui. Eu sei !
Mas sei,que há coisas que não se esquecem nunca e ficam gravadas na memória e não há tempo que a apague.

domingo, 19 de agosto de 2007

Memórias de um Director




Ainda hoje lá está sem a imponência de outros tempos .......

O Instituto Vaz Serra ! Com um castanheiro da Índia ao fundo do pátio dos rapazes.

Como Director tinha o Dr. Gil.

O Dr. Gil Marçal era um homem austero, alto, muito alto e com farta cabeleira acastanhada.

É este o retrato físico, daquilo que me lembro dele.

Homem de personalidade forte, muito forte. Talvez, agora, as minhas lembranças o tornem ainda mais forte.

Era eu, bem pequena, quando frequentava a casa do meu pai.

Hoje, passados cerca de 50 anos, vejo-o por uma perspectiva diferente. O que sei dele não passam de memórias de criança. Sei que lá pelos finais dos anos 40 se refugiou em casa do meu avô que tinha uma quinta em Coimbra, mais propriamente no Alto de S. João. Via que, de vez em quando, permanecia calado, lendo um livro, sentado num cadeirão, ou simplesmente com a cabeça entre as mãos, pensativo.

Passando ao fundo da quinta, a linha de caminho de ferro que liga Coimbra à Lousã e havendo um túnel mesmo junto ao portão vi-o algumas vezes cabisbaixo, saindo de lá como que a fugir de “ certas visitas” que lá iam. Nunca deixou de ser amigo do meu pai.

E o meu pai sempre lhe retribuiu essa amizade. Nunca o traiu.

Quando, um pouco mais tarde, precisou de tirar a carta de condução, uma vez que até aí não era obrigatória, desde que alguém com carta , acompanhasse Foi mais uma vez, o Mendes Nunes que o ajudou, oferecendo-lhe casa e jantar, nessa mesma quinta, até que resolveu o problema.

Mais tarde encontrei-o no Instituto Vaz Serra, como director. Posso afirmar que foi ele quem escolheu os melhores professores e projectou o edifício onde se recebiam as aulas.

Percurso atribulado o dele. Dizia a minha mãe que tinha assinado em tempos “ uns papéis “Na altura de apoio a Norton de Matos e assim ficou “ marcado “ e sem poder movimentar-se com o à vontade que desejava. Mesmo assim fundou e dirigiu com mão de ferro o Instituto. Ali tínhamos que usar sempre, a farda. A de trabalho e a de passeio. Não era autorizado não trazer a gravata, o cinto ou o “ bivaque “. Quem se esquecia ou perdia, tinha que o ir buscar a casa ou então “ arranjar “ outro, por meios, por vezes, pouco ortodoxos.

Fez poesia e publicou-a. Li, há algum tempo, alguns pequenos textos que o meu pai guardou. Carregados de sentimento mas, muito velado, uma oposição forte ao regime da época. Nas entrelinhas lia-se uma feroz raiva por não poder mudar as coisas.

Só gente muito próxima entendia o que ele escrevia.

Na Rua Torta, ( hoje Rua Dr. Gil Marçal ) e na cave da sua casa, associou-se a amigos, comprou máquinas de tecer,cortar e coser e fez uma camisaria.

Ainda guardo uma caixa dessas. Chamava-se a dita fábrica: Camisaria BILAC.

Precisamente e talvez devido à perseguição de que era alvo, teve que fechar, acabando, assim com uma pequena mas útil empresa, que teria dado emprego a bastante gente.

Enquanto Director do Instituto, organizava, todos os anos uma excursão com alunos, professores e empregados.

A comida, confeccionada, na cozinha do internato era levada em enormes cestos.

Alguns Domingos ou dias de festa, os alunos internos colaboravam na missa na pequenina capela da Quinta da Águias Fardados percorriam as ruas da vila, com o estandarte em parada militar.

Sabia o comportamento de todos nós. Como sabia tudo, mesmo tudo, de cada aluno, cada professor ou empregado, não sei ! Mas lá que sabia, sabia.

Teria os seus informadores .....

Não saía muito do gabinete. Um escritório ao fundo do corredor, estrategicamente colocado, onde dava observação para todas as dependências das aulas ou internato.

E o que significava uma chamada a esse gabinete ?

Era quase uma visita ao purgatório ou mesmo ao inferno.. Perguntas e mais perguntas. E muitas vezes umas tantas reguadas com a “ menina de cinco olhos “.

Coisas que os nossos filhos fazem, hoje, e nem lhes damos castigo, ou melhor, nem sequer lhes damos importância.

Era assim um pouco, o Dr. Gil Marçal. Um pouco da memória do tempo em que foi director do I. V. S. !!!!!



Natércia Mendes Nunes

A primeira pétala

A primeira pétala caiu

Da rosa que tu me deste.

Depois as outras cairam também,

Talvez vergadas ao peso das minhas lágrimas !

Jazem caídas, Mortas,

Despidas do encanto,

Do viço que tinham antes !!

Ao olhá-las

Aí mortas,

Lembro o teu amor,

Que de repente floresceu

E como as pétalas,

Da rosa que me deste.

Talvez vergado

Ao peso das minhas lágrimas

Caiu

E para sempre morreu !

Natércia Nunes

História de Natal



Toda a gente o conhecia. Vindo sabe-se lá de onde aparecia sempre pelo Natal, época em que o lagar de azeite funcionava.

Sentava-se em frente à fornalha, indo embora apenas quando a última brasa se apagava.

Como chegava, desaparecia: em silêncio.

Durante o tempo de permanência no lagar, contava histórias. A seu lado uma caneca com café que os lagareiros faziam, mas que repartiam com ele. Ia bebendo em pequenos golos sorvidos com um barulho semelhante a musica num gira-discos velho e roufenho.

Um dia deu ao meu irmão pequeno, na época, umas pedrinhas ovais e pintalgadas de azul. Disse-lhe que eram ovos de anjo.

No meio das suas histórias contou-nos que há muitos anos nasceu uma criança, linda, rodeada de anjos, pastores e reis vindos de longe guiados por uma estrela.

De todos recebeu presentes, levados com carinho e algum sacrifício.

Os caminhos encheram-se . Todos queriam ser os primeiros a chegar. Ninguém notou, mas com eles e da forma que pôde um pequeno aranhiço, também rumou à pequena gruta.

Quando chegou e ainda sem Ninguém notar a sua presença, deu conta que não tinha nada para oferecer.

Subiu para um arbusto e toda a noite teceu uma teia enrolada aos ramos frágeis

De manhã estava pronta e com as gotinhas de orvalho brilhava ao sol parecendo prata e ouro.

Enquanto a vida do lagar corria numa lentidão própria do esmagar e caldar, o azeite corria em bica para a “ fonte”. Aí o lagareiro mexia com uma vara fininha de marmeleiro, a ver onde a água-ruça se separa e começa o azeite, doirado, amarelinho .

E nós brincando por ali, passávamos o tempo E havia sempre mais uma história.

Contou que, uma vez, num Natal qualquer, sem lugar para onde ir e sem família se sentou frente à lareira, junto a um presépio, em casa do pai, falecido há tempo. Sentou-se e acomodou-se. Mais uma vez olhou para o presépio. Arregalou os olhos quando viu que as figuras começavam a movimentar-se. As ovelhas, com fome, comiam as pontas dos arbustos. O pastor corria não deixando o rebanho tresmalhar. O forno incandescente cozia pão que a mulher amassava numa gamela, lá atrás. O moinho girava as velas movidas a água de um regatozinho feito com prata de chocolate.

Nossa Senhora e S. José sorriam, sentados junto à manjedoura onde a vaca e o burro aqueciam o Menino com o seu bafo. Um galito empoleirado num campanário, cantou anunciando a meia noite

O Menino, deitado na palha da mesma manjedoura e vestido com uma camisa feita de tecido branco de cetim bordado a ouro, sorria também.

Lentamente o Menino levantou-se e veio sentar-se no seu colo. Aninhou-se nos braços e ....... adormeceu .

Ali ficaram ambos, até que sentiu um líquido quente a escorrer-lhe nos joelhos.

Acordou !!! Tinha adormecido ! Já era manhã !

Olhou, de novo, para o presépio. Tudo na mesma. Nada estava fora do local onde os colocara antes. Firmou-se melhor no Menino, ainda a tempo de ver o pé pequenino e descalço, mexer como que a esconder a ponta molhada do vestido branco, bordado a ouro..

O Sol anunciou que já era manhã. Uma manhã ensolarada de dia de Natal. A fogueira ardeu até ao fim e ele ali ficou a pensar que tinha sido um Natal bem diferente de todos os outros Natais


Natércia Martins

domingo, 12 de agosto de 2007

Baú de sonhos



Tenho no meu sótão um baú cheio de caixas coloridas.

Cada caixa contém,conforme a cor, desilusões, alegrias, ódios, amores desamores,sentimentos e cheiros.

Não abro todas as caixas ao mesmo tempo.

A caixa dos cheiros, contém os cheiros das manhãs no campo. O cheiro da terra molhada depois de um dia de chuva. O cheiro das espigas de milho na eira, ao anoitecer, depois de um dia de sol intenso. O cheiro das filhós a fritar em azeite, na noite de Natal. O cheiro da canja a ferver na panela de ferro em cima do fogão de lenha. O cheiro do jasmim e da celinda no jardim. Cheiros intensos, estes.

A caixa das chatices, dos arrufos, ódios, discussões, permanece bem no fundo . E nunca a abro. Tem uma fita bem amarrada, para maior segurança da tampa. Não vá ela saltar.

A caixa da saudade tem lá dentro a memória dos meus pais e alguns familiares próximos, principalmente a saudade da minha avó.

As histórias contadas em redor da braseira, apoiada num estrado de madeira por baixo da camilha.

Histórias que nunca se apagam da memória. Noites longas de Inverno, frias e brancas transformando o orvalho num manto de gotas de gelo.

Enquanto os olhos se iam fechando vencidos pelo sono, as nossas mentes transportavam para o sonho, o que os ouvidos ouviam.

A caixa azul contém recortes e recordações.

As escadas de cantaria viradas para a estrada e eu pequena, sentada no último degrau tendo por companhia o cão preto e branco, cujo nome se perdeu nos meandros da minha memória.

Ali sentado, esperava pacientemente a meu lado, que o moleiro passasse com meia dúzia de burros carregados de farinha ou grão, pronto para o moinho lá ao fundo da aldeia,.

Havia o padre António, já muito velho que aos Domingos de manhã, passava numa charrete puxada por uma mula tão velha como o dono.

Melhor que tudo era a passagem de um cavaleiro e um cavalo branco que por vezes por ali andava. Era lindo o cavalo .... E eu mais o cão sentados no último degrau das escadas. E aquela do assalto ?

Pois bem, o quarto do criado, situava-se junto à casa do forno e por cima do curral da mula. Tocava acordeão nos bailes na taberna do Xico Sapateiro. Das teclas saía um som mágico que ouvíamos com agrado, das “ modas” em voga no tempo. Naquela noite, como não era dia de baile, tocava uma “ moda” no quarto. Na cozinha ouviram-se uns barulhos esquisitos, seguidos de passos. Uma porta bateu. Todos nós ficámos gelados de medo. Foi, então, que a minha avó, agarrando um pouco de coragem, chegou à janela e chamou o rapaz que tocava o acordeão, lá fora, no quarto. O cão ladrou e os passos calaram-se.

Num repente,a porta abriu-se entrando de rompante o criado, com um gesto rápido, passou na cozinha, agarrou um chouriço que estava em cima da mesa e enfrentou o intruso, como se de uma arma se tratasse.

Se era um ladrão, nunca se soube, ao certo, mas a fama do homem que enfrentou um ladrão com um chouriço, correu pela aldeia.

Há, ainda, uma caixa em forma de coração. Lá dentro, bem arrumadinhos, os meus amores. Não falo deles. São meus e não partilho com ninguém.

Mas há uma outra caixa verde. Esta caixa é a dos meus sonhos. Não a abro nunca. Tenho medo que se escapem e se espalhem por aí. É que apesar da idade, os sonhos, não se acabam.

Natércia Martins

2007