Quando atravessamos a barreira dos cinquenta anos surgem-nos, com mais frequência factos da infância longinqua.
Factos antigos, factos de que nos lembramos vagamente que até parecem tirados de histórias de velhos livros, carregados de poeira, rebuscados no fundo da prateleira mais afastada do nosso conhecimento.
E foi assim, remexendo nos pensamentos que um dia destes dei por mim a reconstituir o velho lagar de azeite perdido algures num recanto quase esquecido da civilização, lá para os lados de uma aldeia do interior profundo do nosso Portugal.
Lembro-me da fornalha acesa durante toda a época da colheita da azeitona. Ardia com toros de oliveira com um brasido que nos fazia lembrar o inferno.
O inferno ? Porquê ? Verdadeiramente ninguém sabia dar uma explicação plausível.
Naquele lugar quentinho sentava-se quem passasse no caminho, num banco de madeira, feito de um toro cortado ao meio.
Mas havia quem tivesse lugar “ cativo”. Era o Abílio. O Abílio era um homem sem idade, sem identidade Abílio Abílio mais nada Nem sequer precisava de sobrenome Era do conhecimento de todos.
Sentava-se ali no primeiro dia de lagaragem vindo sabe-se lá de onde e sem se saber quem o informava que o lagar abria naquele dia..
Só abalava quando o último carvão se apagava. Desaparecia em silêncio tal como chegara, no primeiro dia.
Contava histórias de lobisomens, bruxas, duendes, santos e pessoas.
Eu e o meu irmão ouvíamos essas histórias pensando serem verdadeiras e compondo os factos conforme a nossa imaginação de crianças. Não gostava de ser interrompido. Abria muito os olhos a meter medo. E nós tínhamos medo.
O meu irmão mais pequenito agarrava – se à minha mão ou ao meu vestido a pedir protecção. Coitada de mim que tinha tanto medo como ele. Mas mesmo assim, corríamos para o lagar e ficávamos à espera que começasse a contar as suas histórias fantásticas, enquanto o azeite escorria amarelinho e em fio para dentro da fonte, enquanto as azeitonas eram esmagadas pelas mós e as ceiras com a massa já moída escorria como lágrimas por uma cara sem rosto.
Um dia o meu irmão, depois de uma longa conversa com o Abílio apareceu a correr em casa com dois minúsculos ovos sarapintados de azul, fechados na sua mãozita pequena, de garoto de 4 ou 5 anos
Todo contente correu para a minha mãe e segredou:
-- Mãe. Olha o que o Abílio me deu. São ovos de anjo !
-- De anjo?
-- Sim Se os anjos têm asas com penas porque é que não podem pôr ovos ?
Natércia Martins
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