terça-feira, 15 de maio de 2007

As botas do meu pai


A tarde corria devagar. Aliás, na aldeia, a tarde corre sempre devagar. Não há muito para fazer, além de cuidar dos animais. Há que regar as plantas: couves, milho e batatas. Mas isso faz-se logo pela manhã, quando o “ fresco “ se faz sentir. E que bom é o fresquinho da manhã, no meio do milho com a água a correr e molhar os pés. Eu gosto !

Há muitos anos que não faço este trabalho. E tenho saudades .....

Depois do almoço fica a “ sorna “. Com o calor a apertar e a cantiga das cegarregas convida à sesta dormida à sombra de uma árvore se as formigas cavalonas não se lembrarem de nos interromper o descanso com ferroadas dolorosas e chatas.

Resta a tarde, longa, até à noite.

Por entre um abrir e fechar de olhos sonolentos e preguiçosos há que pensar e talvez recordar .

O local mais fresco e aprazível fosse o “ Pivetas “. O Pivetas era o sapateiro. É isso mesmo ! Ali também se conversava e por entre cabedais, fivelas, sandálias e chinelas, encontravam-se umas figuras femininas com pouca roupa, impressas nuns postais comprados às escondidas e guardados nas prateleiras, bem lá no fundo.

Juntavam-se ali à espera que o Pivetas desse ordem de uma espreitadela às meninas dos postais em fato de banho, ou até uma ou outra mais despida.

Aquilo era uma festa ! O poder espreitar para um daqueles postais !

Depois vinham as histórias contadas quase sempre na primeira pessoas. Cada um dos “ visitantes” tinha uma história. Assim o sapateiro tinha sempre companhia. Ele gostava. Um dia a minha avó chamou a atenção do meu pai que as botas precisavam meias solas.

O meu pai pegou nelas e, claro, foram parar à oficina do Pivetas. Havia mais uns quantos sapateiros mas aquele tinha os postais mais bonitos, embora a colecção,fosse antiga e vista e revista.

Pegou nas botas com a promessa que na semana seguinte estariam consertadas.

A tarde convidava à conversa. Sentou-se num banquito perto da porta, onde já se encontravam mais dois ou três clientes.

O Pivetas com o avental de cabedal e a forma colocada nos joelhos martelava uns pregos numa chinela de mulher. Olhou para o meu pai e perguntou:

__ Ó senhor Nunes, como foi aquela história do canivete e o padre Zé ?

O meu pai encabulou porque embora a história tivesse uns laivos de cómica tinha-lhe valido uma valente tareia da minha avó, que não era mulher para brincadeiras.

Risota geral. Eles tinham ouvido a mesma história dezenas de vezes. Mais uma vez ...... nem parecia mal. Há um ou outro ponto que se acrescenta e tem sempre contornos diferentes.......

Apesar de tudo a história é gira .......

Parece que, quando o meu pai era pequeno o Padre Zé lhe pedia para ajudar à missa. Normalmente eram os garotos que mudavam o missal, levavam a bandeja para a comunhão, colocavam o vinho e água na galheta.

A isso chamava-se ajudar à missa

Eram sempre os garotos mais educados que ficavam encarregues desse trabalho.

E o pequeno António lá ia mesmo contrariado, mas não havia outro remédio ....

Um Domingo, à porta da Igreja e junto dos homens, tentando imitá-los pegou num canivete de cabo branco, de corno e afiava uma varinha de salgueiro Com calma, o padre chegou e olhou para as mãos do pequeno. Deitou - -lhe a a mão e levou para dentro da Igreja o objecto que considerava perigoso. Deu início ao acto sagrado. Lá para o meio da missa quando chegou a ocasião dizia o padre:

__ Muda o missal, António !

__ Não mudo. Dê-me o canivete.

__ Não posso. No fim da missa.

__ Não dá ? Não mudo o missal !

No público ninguém ouvia O diálogo entre os dois era sussurrado, em surdina.

__ Muda o missal !

__ Não mudo !

Foi, então, que o padre se viu obrigado a levantar a batina e tirar do bolso das calças, em plena missa, o canivete e passá-lo para as mãos do garoto. Pronto ! A história foi contada mais uma vez.

Fim do dia. E as botas ?

__ Senhor Nunes, estou com elas, dizia o Pivetas.

E a pergunta repetiu-se durante uma ou duas semanas.

__ As botas ?

__ Estou com elas, Senhor Nunes .....

Nas frase “ Estou com elas “ fazia supor que estava com elas no conserto. A meio, talvez ....

Até que um dia, o meu pai perguntou mais uma vez se as botas estavam prontas. A resposta repetiu-se.

__ Estou com elas ... Estou com elas ....

Olhando para os pés do velho sapateiro ....... e lá estavam elas ....... calçadas !!!!!!!

Pois ... Até falava verdade. “ Estou com elas” significava que estava com elas ...... calçadas .....

E assim, se ia governando, sem precisar de comprar botas ou sapatos. Ia calçando as dos fregueses que as levavam para consertar ....

Sempre ouvi dizer: “ Quem não tem cão .... caça com gato “ ........

Natércia Martins


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