terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Espertinho !!!!!!





Hoje já ninguém se lembra, mas no início do século passado, as ruas, que hoje se chama “ A Baixinha” de Coimbra, ficavam ao mesmo nível do rio.

Depois, com as obras da Rua Navarro, ficaram a um nivel inferior. E era aí numa dessas ruas estreitas que a minha avó tinha uma taberna, onde se vendia chanfana, ou mesmo só o molho quando não havia dinheiro para pagar a carne.

Parece que tinha fama de saborosa.

O velho Basófias era navegável e as Barcas Serranas desciam o rio desde Penacova, carregadas de carqueja, azeite e carvão. As recoveiras aproveitavam o transporte e aviavam os recados, as lavadeiras traziam a roupa para lavar, ali mesmo na margem, pendurando-a a seguir nas grades que ainda hoje lá se encontram, ou até no próprio areal.

Quando as Barcas subiam o rio, levavam de volta as lavadeiras com a roupa já seca.

Contava a minha mãe que a minha avó mandava a criada para a porta da taberna contar as velas das Barcas a fim de saber quantos pratos de chanfana tinha que preparar

Numa tarde de vento e chuva forte, aliás numa tarde de tempestade, a minha mãe foi visitar a mãe dela, minha avó e ...... nessa tarde, eu nasci.

Ao mesmo tempo desabava a chaminé em cima de um tacho de arroz de chouriço que cozinhava em cima do fogão da taberna. Passados um dia ou dois, lá fomos as duas a caminho da aldeia. E foi na casa da minha avó, na Rua Sargento-Mor, rua pequena, estreita e escura que eu nasci. Lá em baixo, na taberna, apesar do temporal, a vida continuou sem sem mais transtornos que o arroz de chouriço desfeito debaixo da chaminé caída.

Aos Domingos havia música no Parque da Cidade. E era ver algumas velhotas, rapazinhos e militares a correr para ficar bem à frente da grade do coreto. Não raras as vezes a luta por um lugar melhor “ descambava” em zaragata. E apanhava quem não podia fugir, ou porque as pernas não acompanhavam o pânico que se gerava, ou porque não havia tempo de fugir. Numa dessas zaragatas, a minha bisavó foi apanhada. Ela, que não perdia uma boa tarde de música no coreto, ao Domingo. Na pressa da fuga perdeu uma chinela. Claro que a minha avó não gostou da “ coisa”. No outro dia foi à esquadra a fim de reaver a chinela. Só tinham encontrado umas asas de um qualquer anjinho de uma qualquer procissão. Foi uma risota entre os militares, pois conheciam bem a referida velhota.

As histórias e personagens vão-se entrelaçando entre si. São sempre as mesmas pessoas, pois sendo um local pequeno, toda a gente se conhecia. As tristezas, as alegrias e até as partidas eram como se de uma família só se tratasse.

Ali mesmo ao lado da rua onde morava a minha avó havia o Largo do Romal. Morava ali o “ Perneta”. Tinha uma perna de pau Daí o alcunha Vivia no 1º andar. Como companhia, uma gata amarela. Quando subia a escada de madeira só se ouvia o som cavo da perna de pau a bater nos degraus.

Um dia a gata morreu. O homem desfazia-se em lágrimas de pranto. Juntaram-se as vizinhas e decidiram consolar o pobre homem. Fizeram uma coroa com o material que tinham mais à mão: carqueja. Ficou danado e nem teve dificuldade em descer as escadas atrás delas com a muleta pronta a desabar na primeira que encontrasse.

Tinha a minha avó Catarina um galo lindo. De penas amarelas e pretas. Andava por entre as pernas dos fregueses, sentados em bancos corridos. Comiam chanfana e bebiam vinho.

Lá ao fundo alinhavam-se os pipos cheios do líquido cor de rubi. O meu avô pouco por ali parava. Não gostava ! Tinha outras ocupações. E o galo por ali andava sem incomodar ninguém e também ninguém o incomodava. Migalha aqui, migalha ali Já fazia parte da clientela. O meu avô embora, por vezes arredio dali, ia-o observando Parecia que de prazenteiro e alegre durante o dia, tudo se modificava à noite. Cambaleava e o rabo cheio de penas enormes, ficava retorcido. A crista vermelha, ficava ainda mais vermelha e tombada. Mau! Estaria o galo doente ?

Os dias iam correndo. O galo, de vez em quando largava um cócórocó sonoro, de bico aberto apontando ao sobrado onde eu nasci num dia de tempestade. À noite nem força tinha para cantar. O sonante cócórocócó saia rouco, esganiçado e desafinado. Não havia resposta para tal transformação.

O meu avô tirou-se de cuidados e espreitou. Então não era que o esperto bicho se colocava debaixo da torneira da pipa e aparava, de bico aberto, o pingo que caía . Claro! À noite a bebedeira era no mínimo....... muito grande !!!!!!



Natércia Martins

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Dava tudo !!!!



Daquele nosso primeiro encontro

Eu guardo cada gesto, cada palavra.

Guardo o azul dos teus olhos.

E o vermelho dos teus lábios ...

Guardo ainda, a tua juventude

Que junto à minha velhice

Torna tudo mais doce !!

E relembro

E recordo

E penso

Como tudo se modificou !

Agora só me resta recordar-te.

Mas queria ver-te mais uma vez !

Só mais uma vez .....

E penso,

E recordo,

E relembro,

Cada uma das tuas frases !

E a minha velhice fica mais doce !

Queria ver-te mais uma vez.

Dava , da minha vida, uma hora,

Um dia,

Um mês,

Um ano .....

Só para estar contigo ....

Para te ver de novo,

E poder,

Relembrar,

Recordar

E pensar ...

Depois ..... Bem, depois ......

Posso morrer !


Natércia Martins

2005


sábado, 10 de fevereiro de 2007

Engano

Engano


Amar-te,eu sei, foi pecado sem perdão !

Não terás o prazer de me ver chorar !

Hoje sou pétala caída no chão

Sou a rua deserta, a vida esquecida, a noite sem luar !!


Foste coisa que passou e não volta.

Foste miragem que fugiu e se perdeu !

Amargura, traição, ódio e revolta

Uma calma triste. Tudo isto sou eu .


O que fizeste de mim ?Não sei dizer-te.

Sou outra. Não me reconhecerás. Não sou eu !

Foste amor que passou como os demais.


Um castelo de cartas que ruiu !

Sim .... Soam gargalhadas roucas de prazer ....

Porque, afinal, eu nunca gostei de ti !!!!!!


Natercia Martins

Sou feliz !!!!


Desço a encosta ao teu encontro.

As folhas secas desfazem-se sob os meus pés

Encontro-te mudado, pareces outro.

Eras muito diferente do que agora és .....


Os teus olhos, não são estrelas. São sinais ...

Essas duas rugas, eu não tas conhecia.

Vida, amor e tudo o mais,

Quero que seja como no primeiro dia !


Amor, alegra os teus olhos.

Sorri para os meus. É novo dia.

Tudo é alegria, sol e esperança !


Já não tenho lágrimas nem receios.

Já não tenho medo de te perder.

Agora, sim, amor Sou feliz !!!!



Natércia Martins



OVNIS (ou não )

Dizem que andam por aí. Como e onde, não sabemos. Há sempre quem veja um ou outro OVNI

Afirmam como de coisa real se tratasse.

Eu, infelizmente, nunca vi nenhum, mas afirmar que não há vida além do nosso planeta Terra, é coisa que não posso. Seria estupidez da minha pessoa fazer uma afirmação dessas. Deve haver vida inteligente lá noutras galáxias, e de vez em quando apetecendo-lhes dar uma voltinhas por estes lados, pegam seus veículos e aparecem por aí.

Como, se calhar, a nossa curiosidade é, de certa forma, grande, pomo-nos a olhar para o céu, de nariz no ar.

Há uns anos colocaram por iniciativa de um professor da Escola Preparatória da Carapinheira um sistema de observação de previsão do tempo. Alguns jovens interessaram-se por isso e faziam as observações utilizando o computador. Até lhes fizeram uma entrevista num jornal diário com direito a fotografia.

Estudaram com muito entusiasmo o céu, as estrelas, constelações e nebulosas. E como muito jovens que eram, fantasiavam empurrados por leituras que faziam. Também algumas vezes “ viram “ objectos estranhos nos céus. Mesmo, nós os mais velhos nos interessámos por tal estudo, acompanhando,por vezes as ditas observações.

Afinal foi um bom método para o estudo da geografia, começando assim um sistema bem diferente do ensino decorado do meu tempo.

O céu é um fascínio ! Aliás sempre foi.

Por essa época, apareceram nos jornais muitas noticias de pessoas que viram OVNIS.

Estes com técnicas muito avançadas traziam para a viagem espacial veículos de formas originais. Uns diziam serem do feitio de charuto. Outros afirmavam serem redondos e com luz verde..

Uma noite no Inverno, e vindos do ensaio do rancho folclórico, chegados a casa, deparámos com o meu marido, no quintal observando uns raios de luz, fortes, coloridos e que se movimentavam procurando algo no céu. Claro ! Um OVNI!

Eu e o meu filho Zé, o mais novo, chegámos e também vimos. Ele era um interessado nessas tais observações. Meio em pânico, ficámos olhando durante algum tempo. Foi aí que uma ideia se apoderou de nós. Telefonar para o jornal avisando da estranha presença. Ainda bem que não o fizemos.

Os vizinhos, mantinham-se em casa, alheios a tal fenómeno. Só nós os três faziamos conjecturas. Eles andavam por ali. Que quereriam eles ?

Mudámos de sítio percorrendo o quintal, mas de todo o lado se viam os mesmos raios luminosos e coloridos percorrendo o céu.

E se fossem mesmo extraterrestres ? Se no quintal aterrasse naquele momento a nave com gente esquisita de côr verde e olhos vermelhos ?

É que a nossa imaginação aliada ao medo já via alguém a sair e dirigir-se nos . Como nos iríamos entender ? Logo se veria Que aterrassem mesmo ali !!

E os raios luminosos quase tocavam as nossas cabeças parecendo cada vez mais baixos.

Viamos uma grande bola de luz lá em cima, tocando as pontas altas dos pinheiros.

Isto demorou até que madrugada alta chegou o meu filho mais velho, o Pedro, vindo também da rua. O barulho da velha motorizada tranquilizou-nos.

Chamámo-lo. Entrou, mãos nos bolsos e admirou-se de nos ver ainda levantados àquela hora tardia.

__ Aconteceu alguma coisa ?

__ Viste o que se passa na rua ? Não viste os raios luminosos ?

__ Vi, disse ele, já a sorrir.

Com uma gargalhada sonora, exclamou:

_ Vocês são mesmo doidos ! Aquilo que vocês estão a ver, é um sistema novo de publicidade a uma discoteca aqui perto.

Mistério desfeito !

Fomos para a cama sonhar e pensar nos OVNIS, que mais não eram que simples e inocente publicidade a um local de diversão.


Natércia Martins



2006

A Senhora que queria água

Nas aldeias, a cama dos animais sempre foi feita com mato. Há que o roçar, colocar em paveias e transportá-lo para casa. Trabalho duro, sem dúvida. Mas alguém tinha que o fazer quando ainda havia gado nas cortes. Hoje os tempos mudaram e poucos são os que ainda conservam animais e roçam mato.

Era, também, costume colocar o mato em valas fundas na rua a fim deste “ curtir” com a passagem dos animais e pessoas que além de o pisar, também deixavam os dejectos. Não era preciso adubo, que hoje se usa.

Os homens e mulheres iam para o pinhal, com enxadas e roçavam o mato, que picava e feria as mãos cheias de calos.

No degrau da minha porta, numa noite de lua cheia e depois de um dia em que o calor suou os corpos, ávidos de um pouco de fresco do pôr do sol, o meu vizinho Alfredo contou mais uma das histórias que todos conhecem mas gostam de recordar uma vez, outra e mais outra.

Andava o Ti Albano e o Ti Salvador calados na tarefa de roçar o mato que nascia rijo e forte no meio dos pinheiros. Só se ouvia o bater da enxada e uma ou outra palavra trocada entre ambos. O calor apertava e as cega-regas no seu canto monótono insensíveis e esquecidas de tanto calor .

Ouviram uns passos lentos e leves. Ao mesmo tempo olharam para trás Ao fundo, bem ao fundo, meia dúzia de casas encravadas na secura do pinhal e do mato seco.

A água sempre escasseou naqueles sítios. Olharam mais de perto. Era uma senhora, bem vestida e com ar cansado. Pediu água. Um púcaro de água. Os dois homens olharam para o cântaro e os dois pensaram em simultâneo que a que o cântaro tinha era pouca. Estava, a bem dizer, no fundo. Se ficassem sem essa .... teriam que ir buscar mais . E a fonte que ficava bem no fundo da ladeira ..... Longe ...... E ainda por cima carregada às costas ..... Não ! Não havia água para ninguém !! Responderam-lhe:

__ Há água, mas só para quem trabalha ! ....

A senhora olhou mais uma vez para os dois homens e desapareceu.

As enxadas continuaram a bater no chão duro, derrubando paveias de mato.

Olhando para trás a surpresa foi grande. O cântaro estava cheio de água e tão cheio que escorreu , molhando o chão antes seco, mas todo o mato roçado desapareceu empilhado bem no cimo de um monte de pedras, inacessível, escorregadio, sem possibilidade de o tirar de lá, ficando assim anos a fio, sem nunca ninguém entender como foi ali parar.

A história que os dois homens contavam, ficou na memória das pessoas, perdida até hoje e só relembrada de tempos a tempos por alguém que com uma pontinha de emoção a conta numa roda de gente que imagina como tudo isto terá acontecido.

Pensando bem, lenda é lenda ....acreditamos ou .... talvez não !!!!!


Natércia Martins




O meu tio do Brasil


Tenho um tio no Brasil

Que ontem me telefonou.

Entre notícias e anedotas

Muitas coisas perguntou.

Queria saber de tudo

O que por aqui se passa.

Recordar velhos tempos

Das lindas cachopas

Que hoje já não comem pipocas

Das saias plissadas

De blusas bordadas

A caminho da Romaria

__ O tio ainda se lembra ?

__ Quem diria !

Em tardes amenas

De sagrados ritos

Íamos todos

Ao Senhor dos Aflitos

À senhora do Circo

À Senhora das Dores

Iam em novenas, crentes e ateus

Lá para os lados de S. Mateus.

Por tudo o que ouvi

Promessas, cantigas e rezas,

Tanta pulga, tanta mosca

Davam ao santo com regalo

O meu tio foi levar

Os tomates de um galo.

O tio lá do Brasil

Gargalhava como um tolo

Lembrava-se dos Milagres

Para os lados de Cernache

Quando trazia o bolo

No andor e aos ombros

Com os outros rapazes

Piscava o olho às raparigas

Que com olhares fugazes

Se escondiam nas esquinas

Pensando no bailarico

Quando a noite,escura como bréu

Escondesse um ou outro beijo

E a lua suspensa de uma estrela no céu

Aproveitando muito bem o ensejo

De ver os rapazes Alguns forasteiros,

Por entre as mocinhas, sempre animadas,

Tinham mais brilho que mil candeeiros !


Ah ! E o piquenique ?

Comido à sombra das oliveiras.

Comíamos fruta madura,

Tão doce como alguns beijos,

Polvilhada com ternura.

No caminho, bebíamos água cristalina,

Em taças feitas de folhas de couve

Refeição assim tão fina

Decerto que nunca houve !

Ah ! Como é bom recordar

O piquenique no prado,

Hoje só quero sonhar

Mesmo estando acordado !


Meu tio lá no Brasil

Ainda falou com emoção:

Que do manto azul do céu

Fez alvos guardanapos

Para aqueles piqueniques.

E quando o Sol adormeceu

Tirou muitos retratos ....


Adeus, tio, até à próxima

Disse eu, quase a chorar.

__ Rapariga, deixa estar,

Que a vida só vale a pena

Se usarmos como lema

O que por nós foi recordado. !!


Natércia Martins

2006


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

O cabaz de cerejas

Quem vive na cidade nem dá pelo anoitecer, mas nós que vivemos na aldeia, o tempo contado de forma, não é bem assim.

O trabalho pesado, fazia - se de sol a sol e depois das trindades, pouco mais nada havia a fazer. A ceia comida quase sempre à luz do candeeiro de petróleo porque luz eléctrica, por aqueles lugares da serra só muitos anos depois.

Quanto a telefones .... o mesmo. Não havia. Um ou outro particular e só em casa de gente rica. A minha terra não tinha gente rica nem telefones particulares. O único telefone era em casa do meu pai. Era público com uma cabine de madeira, enorme dentro da sala que, por sua vez, também era grande. Foi cama do cão durante vinte anos. Quando alguém queria fazer ou receber uma chamada telefónica, o primeiro trabalho era sempre remover a cama do cão. Nunca ninguém se queixou do cheiro, ou pulga apanhada ali.

Não se pense que há cinquenta anos, telefonar era tão fácil como hoje. Nada disso! Havia que, primeiro, ligar à estação que por sua vez ligava à central, e só depois a menina dos telefones fazia a ligação por meio de um complicado sistema de cavilhas que, já gastas de tanto uso nem sempre se fazia em perfeitas condições.

Esperava-se horas, por vezes.

Naquele fim de tarde a campainha do telefone tocou, anunciando que alguém queria falar.

Esquecia-me de dizer, que, quando alguém queria um recado, lá íamos nós, de dia ou de noite, levar a missiva. Se havia nascimento a anunciar, era uma alegria e até chegávamos mais depressa com o recado. Mas se era um falecimento de familiar próximo nem se penso o que o caminho custava a percorrer. As pernas entorpeciam.

Como dizia, naquele dia havia um recado. Um recado de Lisboa. Apenas nos pediram que fossemos chamar o primo Amadeu, que morava no Barroco. O compadre de Lisboa precisava de lhe dar um recado.

Ainda pensámos em não ir chamar o homem Era quase noite mau caminho. Mas, aventou a minha mãe, podia ser coisa de importância.... O melhor era ir, mesmo.

E lá fomos nós A minha mãe, eu e a criada.

A noite foi caindo, caindo até que ficou noite fechada. Pé aqui, pé ali, pé num buraco, pé numa pedra, topetão aqui, topetão ali, e o lampião que não dava luz que se visse ! Lá chegámos.

Bateu-se à porta. O homem ficou sobressaltado. Já estava na cama. Quando assomou à janela ficou aflito. Mais aflito ficou quando soube que era de Lisboa.

A custo vestiu-se e pôs os pés ao caminho.

Pelo caminho, fizeram-se conjecturas das mais variadas. Podia ter morrido algum dos compadres, o filho estava no hospital, a comadre tivera outro bébé, etc, etc.

Chegados a casa, o homem sentou-se numa cadeira à espera do telefonema que tardava em chegar. E ele que estava tão bem, quentinho no meio dos cobertores junto da mulher Albertina. Esta ficou em aflições prevendo as notícias que aí vinham. E pior de tudo. Nós sem jantar. A criada foi connosco e não sobrou nada do almoço.

Enquanto isto, já noite adiante o trim trim do telefone fez-se ouvir.

O compadre Amadeu meio desajeitado, meio ensonado, foi atender. Com toda a calma dizia:

__ Não, compadre. Não lhe posso mandar o cabaz das cerejas. Não as posso apanhar. A cerejeira é muito alta e tenho medo de cair.

A cara da minha mãe mudou de cor: vermelho, amarelo, verde e até azul.

Tinhamos feito uma caminhada noite dentro, não Tinhamos jantar, tudo por causa de um cabaz de cerejas ....

De rompante, levantou-se da cadeira, dirigiu-se ao pobre homem e gritou:

__ Vai mandar o cabaz das cerejas, amanhã, porque se não mandar, sou eu mesma que o vou obrigar a subir à cerejeira !!! E mais !!!! Diz se obrigada, se faz favor e com licença, sinal de boa educação e eu gosto disso, coisa que não fez quando aqui entrou !!!!!

O homem entre a aflição e a raiva da minha mãe, nem deve ter entendido, nem pensar o porquê daquele arrazoado todo, dito assim de rajada ......



Natércia Martins

2007

Ti Herculano

Andava o Ti Herculano a aprender a arte de sapateiro, lá para os seus 13 ou 14 anos em Bruscos. Era preciso ter uma “ arte” pois sem isso seria impossível conseguir governar a vida mais tarde.

Sem uma “ arte” teria que trabalhar na terra, o que não convinha muito. Dava muito trabalho e o pai do rapaz queria fazer dele um homem.

Como dizia, vinha ele de Bruscos, já de noite, atravessando caminhos dentro do pinhal, desertos, embora aqui e ali bordados de terras cultivadas, roubadas ao pinhal.

Havia uma terra de milho, grande, das maiores por ali existentes.

O milho já maduro apontava espigas para o céu, como agradecendo a dádiva dos grãos já maduros.

O rapaz ouviu uma “restolhada”ao longe, dentro do pinhal. Um arrepio gelado, atravessou-lhe a espinha. Tremeu ! A lua cheia iluminava o mato, o caminho e o milho.. Lua cheia, linda !

Olhou para o lado, de onde vinha o barulho, quando um cão grande, preto, luzidio se lhe atravessou no caminho, correndo direito ao campo de milho que caia, estourava, derrubava as plantas a eito.

Correu , desaparecendo e deixando atraz de si um rasto de destruição, como o rapaz nunca vira.

Correu a esconder-se em casa.

No outro dia, com a luz do sol já a iluminar em todo o seu esplendor, viu com espanto que as plantas se conservavam direitinhas e as espigas continuavam apontadas ao céu esperando que a mão humana as colhesse e debulhasse, parecendo nada ter por ali acontecido.

Passados tantos anos, ainda recorda esta história do lobisomem feito cão que se atravessou no caminho.

Continuando as conversas de aldeia, cheias de histórias, de quem acredita em bruxas e almas “ do outro mundo “ há ainda uma outra que também não deixa de nos provocar um sorriso.

Vinha também da Bendafé o Ti Albano, habitante do Bom Velho.

Como era muito mais fácil atravessar pelo pinhal do que pela estrada, e havia pressa de chegar a casa, lá vinha o bom homem a passar numa encruzilhada, que ainda hoje lá está com plantas viçosas como alecrim e carrascos. As pedras saltavam, soltas debaixo dos pés. Já com algum “copito # bem bebido,noite alta. Atravessou e ouviu uns barulhos esquisitos. Olhou para o lado e viu um carneiro preto sentado a olhar para ele. Teve medo, claro ! O carneiro fugiu, mas, afoito o homem quis saber onde se escondera, entretanto.

Bateu” tudo em redor, ouvindo barulho mas sem encontrar nada. O que era .... “ rapou-se” sem mostrar mais por onde passara......

Uma outra, ainda, contada pela vizinha Maria Alice:

Ti Manel Bento, também era da Bendafé. Vinha para o Bom Velho de Cima quando já perto de chegar reparou num carneiro preto deixando-se, este, apanhar. O homem colocou-o às costas, disposto a, quando chegasse a casa, o matar e comer. Carne para uma boa chanfana feita à moda de Alcabideque ... Sem custar dinheiro. Um carneiro ! Boa !

Chegados perto da capela do Bom Velho de Cima, pertinho de casa, o carneiro começou a espernear. Esperneou tanto que já cansado o largou.

Falou o carneiro:

-- Deixa-me fugir ! Assado é que não quero ser, não !!!!!!

Desatou a correr, pinhal acima.

Histórias de outros tempos, com bruxas e lobisomens à mistura, onde se acreditava e guardava culto a coisas que hoje nos fazem sorrir e também acreditar, ou não nestas “coisas” sem explicação aparente.


Natércia Martins

Serões da minha Infância

Cheguei da rua já noite fechada. Chove e a luz dos candeeiros públicos iluminam a rua por aí além.

Sento-me no sofá no aconchego da minha casa alcatifada e com ar condicionado dando ao ambiente uma agradável sensação de bem estar.

Quase adormeço em frente ao televisor que transmite um filme. Os meus filhos tratam da vida, teclando no computador ou jogam Playstation. Enquanto o marido, por sua vez mergulha no jornal, ali estou eu, em frente a uma caixa negra com “ bonecos” que mexem.

Dei por mim a pensar que aquilo vai ser o meu serão. Esperar pela hora de ir para a cama.

Foram sempre assim os meus serões ? Nem pensar !!!!

E naquela meia sonolência dou por mim a vasculhar nas antigas memórias do meu tempo de criança, na minha aldeia encravada na serra, perdida entre pedras e pinheiros.

A casa da minha avó, onde passei a infância, era enorme, escura, sem luz eléctrica e sem casa de banho. E era aí que se desenrolavam serões que nunca vou esquecer . Cada serão era diferente do outro. Não só, porque , não eram sempre as mesmas pessoas , ou então porque a época do ano era diferente.

No Verão, época de colheita, os serões eram passados na eira, descamisando ou debulhando as espigas.

Vinham os vizinhos ajudar, assim como também eles seriam ajudados aquando da sua colheita.

Cada espiga que caia no cesto,com um som seco, nunca mais saiu dos meus ouvidos.

Ouço o som “ Pac – Pac” quando o fundo do cesto ainda se apresentava vazio ou mais adiante quando se ia enchendo e as espigas doiradas caiam em cima umas das outras. Cesto cheio! Cesto vazio ! E eu com o meu irmão sentados no cimo do monte das espigas ou dos casulos, quando este já debulhado.

Que engraçado ! Dava-nos a sensação que éramos maiores que os outros, sentados bem lá no cimo.

Aí se falava de tudo. Claro que os alvos eram os vizinhos ausentes. Ninguém se preocupava com a razão porque ali não se encontravam. Não ajudavam ....... “cortava-se na casaca” !!!!

Depois vinham as histórias que alguém contava. Quase sempre de bruxas ou lobisomens coxos que eram também corcundas.

Mas os serões que eu recordo com mais saudade são os de Inverno. Uma mesa – camilha, grande no meio da sala com uma braseira enorme por baixo e um candeeiro de petróleo a iluminar.

A braseira aquecia-nos as pernas, a alma e as faces. Conversava-se. Aparecia sempre a Senhora Maria do Leitão com as mãos enfiadas nos bolsos do avental. Depois, quando já quentinhas as colocava em cima da mesa. Faltava-lhe o dedo indicador da mão esquerda. Vim a saber que amputada por um leitão. Daí o alcunha.

Aparecia também a Senhora Guilhermina e a Senhora Matilde com a filha deficiente. Esta ficava ouvindo as histórias com os olhos esbugalhados, certamente sem entender grande coisa. Eu ficava junto delas e entre a minha avó e uma tia, no tempo solteira, ouvindo encantada. Das mãos habilidosas saiam rendas e bordador perfeitos. Jogava-se às cartas muito esporadicamente , ou faziamos paciências hoje designadas de “ puzles”, com cromos de jogadores que saiam nos rebuçados de meio tostão e que a minha avó pacientemente colava nuns cartões que se recortavam em triângulos.

Faziam-se vezes sem conta. Jogava-se o jogo da Glória com feijões, mas as histórias estavam sempre presentes E´há histórias que recordo com saudade. Pois é .... Hoje deu-me para isto ! Fecho os olhos e mais uma vez uma dessas histórias me vem à cabeça.

Enquanto o petróleo do candeeiro descia o nível no depósito de vidro, a torcida ardia com chama amarela e a chaminé ia ficando com o negro da fuligem colada ao vidro a Senhora Maria do Leitão lamentava-se com a carestia da vida e preocupada porque tinha deixado ao lume uma panela com uns “ossitos” para o seu Zé, o marido.

A preocupação prolongava-se por todo o serão, mas lá sair do quentinho da braseira ... “ Tá quieto “ ! Estava-se ali tão bem !

Todas as noites era a mesma coisa ! Sempre as mesmas pessoas a fazerem as mesmas coisas e as mesmas conversas As mesmas histórias !!! De entre todas ficou - me a do menino que vivia com a mãe numa terra perto do mar. O pai, pescador, saiu para a faina e naquela noite, o vento levantou-se mais que o costume. A mãe sentada na areia esperou, esperou toda a noite, mas o marido nunca regressou, para dar o beijinho antes do menino adormecer.

Já de manhã e não vendo o pai, o menino perguntou, porque não estava ali o pai. A mãe ainda sentada na areia, disse-lhe que o barco se perdera e passado além do horizonte, tapado por uma cortina azul, onde o mar se junta com o céu.

O rapazinho ficou a olhar a tal cortina e todos os dias se senta na areia, esperando que o pai atravesse mais uma vez, a cortina e regresse a casa.

Noite cerrada e com o calor da braseira a chegar ao fim, cada uma ia para sua casa, candeia de azeite na mão e no escuro da aldeia, desapareciam tal como tinham chegado.

E o meu serão ? O meu serão foi assim aconchegada no sofá, calada, a conversar com as minhas longínquas memórias .....

Natércia Martins


Santos na Terra

Gabava-se o compadre S. Pedro que nunca bebera água desde o seu nascimento há uns 60 ou 70 anos, tantos quantos deveria rondar na altura.

Claro que, S. Pedro era alcunha. Já o pai tinha o mesmo nome e o neto, que ainda é vivo também o herdou. Família, onde o gasto de água era mínimo, até porque carregá-la aos ombros ou à cabeça seria, na época e mesmo agora, tarefa penosa. Portanto, havia que poupar. O vinho ou aguardente, tinha um sabor bem mais agradável. Opiniões !!!

Há terras onde as pessoas são mais conhecidas pelo alcunha, do que pelo nome próprio. E não sei porquê, mas, na minha terra era comum os alcunhas serem nomes de santos. Também não, porque os personagens fossem mesmo santos ....

O que é certo é que o alcunha, em alguns deles assentavam “ como uma luva” e ficavam durante gerações.

Havia S Pedro, S Macário, S. Neutel e ainda outros da “ Corte Celeste” muito bem representada, naquela aldeia.

S Neutel era um Santo, cuja romaria, se fazia quase toda a pé. Sem transportes públicos com frequência e ainda onerosos para a bolsa das pessoas. Estes saiam de casa de madrugada e percorriam os quilómetros que separavam do cimo do monte, a pé.

A capela ainda lá está, embora hoje com romaria muito mais comercializada, com cheiro a frango assado e farturas. As pessoas já não levam o farnel feito com arroz de ervilhas, coelho frito e pão de ló amarelinho, feito com ovos da capoeira que as galinhas punham depois do papo cheio de milho, também, ele colhido no verão e seco na eira.

Como já disse, subia-se a Serra a pé. Dizem que S Neutel é protector dos porcos. E como os criavam também tinham que pedir protecção ao Santo. Não fossem eles morrer.

__ Se o meu porquinho não morrer, para o ano volto cá.

A promessa, para o próximo ano era feita logo ali, ainda antes de chegar ao cimo do monte e ainda não se tinha pago a promessa deste ano. Era uma festa ! As pessoas deslocavam-se em ranchos. Depois cantava-se. Cantigas inocentes, tão inocentes como as próprias pessoas que as cantavam.

Havia um homem, de alcunha Dom Carlos que prometeu levar ao Santo, um pão de ló, assente num braço, em ângulo recto. O bolo foi entregue, mas, segundo me contaram, ficou com o braço aleijado do esforço que fez e de muitas horas sem se mexer.

Já de volta ao local onde se comercializavam as loiças e barros, havia que comprar uma cântara ou caçoila. Romaria, sem recordação, não é romaria que se preze. Havia quem esperasse o ano inteiro para se abastecer de caçoilas, pratos e cântaras Depois de bem acondicionadas em cestos ou canastras faziam o trajecto a pé , de volta a casa. Não, raras as vezes, no caminho tropeçavam numa pedra e .......... lá se fazia tudo em cacos.

Chegados ao fundo da Serra, o bailarico. Ah ! O bailarico ! As mães vigiavam as filhas, sentadas num banco ou em pé junto da roda que a concertina animava.

As mãos das raparigas e rapazes entrelaçadas e ouvindo em surdina, juras de amor que nem sempre se concretizavam. O baile era o corolário da romaria. Lá já em desoras alguém se lembrava de “ armar” zaragata. A primeira paulada era no candeeiro que mesmo comfraca luz, dava para iluminar os rostos corados das pessoas Depois era a cofusão geral, com gritos, chamados das mães pelas filhas que, entretanto, fugiam da confusão.

Os S. Pedro eram figuras constantes dessas romarias e da paulada. Não faltavam a uma só. É festa, é festa ! E na festa bebe-se, e bem ! E se eles gostavam !

Pois bem. Como trabalhavam na terra, também trabalhavam lá em casa. Sol a Sol, cavavam,semeavam e colhiam. Logo de manhã, antes de iniciarem o trabalho rural, juntavam-se os homens a algumas mulheres, à porta da cozinha para o “ mata-bicho”, que consistia num copo cheio de aguardente, de alambique que eles algumas vezes também fabricavam em casa do meu pai.

A minha mãe era quem, quase sempre fazia esse serviço.

Um dia para arreliar o S. Pedro, trouxe, junto com a garrafa da dita aguardente, o copo mais pequeno que encontrou. O homem estendeu a mão, pegou no copo, virou-o de todos os lados, voltou a olhar e virando-se para a minha mãe perguntou:

__ Comadre, tem por aí um cordel ?

__ Tenho. Para quê ? Perguntou ela.

__ É para atar o copo. Tenho medo de o engolir !!!!!!



Natércia Martins