segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Sei lá...




Sei lá, porque gosto de ti !

Sei lá porque sonho contigo !

Nas noites negras de bréu

Perco-me nos teus braços.

Sei lá, porque sonho contigo !

E devagar entras nos meus sonhos

Vogando num mar de desejos.

Sei lá, porque me perco nos teus braços !

Si lá, porque nunca te esqueci !

Dentro dos silêncios da noite

Navego por montes e vales.

Sinto os teus braços

À volta da minha cintura.

Sei lá, porquê. Sei lá !

Sei lá porque desejo os teus beijos

E os meus lábios de tanto desejo

Ardem cada vez mais desejosos.

Sei lá porquê !

Sei lá, porque te envolveste,

Como dizias antes.

E me enquistaste no teu coração.

Sei lá porquê !

Tantos anos passaram ...

Sei lá porquê !

Só agora, como água do rio.

Voltaste a instalar-te cá dentro

E não sais da minha cabeça.

Sei lá ! Sei lá porquê !

Os nossos destinos não se juntaram

E cada um foi para seu lado.

Sei lá. Sei lá porquê !

Por um fortuito desejo

De um destino que não procurámos

E na roda da vida

Das voltas que a vida dá.

Sei lá !

Porque nunca te esqueci !


Natércia Martins

2009

Pedido


Sentado junto à lareira, com olhos fixos na chama, um menino de olhos esbugalhados, pensava no Natal.

Um dos irmãos ouviu na escola que o Pai Natal trazia presentes aos meninos que se portavam bem, que andava vestido de vermelho e um enorme saco às costas. As renas e o trenó paravam junto às chaminés e nunca se cansavam.

Então, ali ficou pensando que se tivesse sido bom menino, certamente teria o seu presente. Os irmãos brincavam e faziam barulho. A casa era pobre e tanto o Sol, no Verão, como o luar, em noite de lua cheia, entravam por entre as frestas das telhas.

E o menino olhava para as labaredas, no borralho, na esperança vã de um presente.

Na mesa não havia bolo-rei, rabanadas, filhós ou arroz doce. Isso era para os ricos !

A comida era sempre pouca, e uma sardinha partida ao meio já era bom manjar.

O naco de broa comia-se devagar a “ fazer render” porque não havia mais.

E o menino olhava, olhava, e o Pai Natal que não chegava.

__ Eu quero uma bola, dizia a irmão.

__ Eu quero uma boneca, como que a dizia a irmãzita.

__ E tu ? Perguntou-lhe um dos irmãos, mas nem esperou pela resposta, correndo, como que a fugir da resposta, que nem ouviu.

E o menino ficou sentado na lareira, pensativo.

De vez em quando, vencido pelo sono, a cabecita deslizava para a frente. Mas ele teimava em ficar ali sentado. Queria ver e talvez falar com o Pai Natal.

Imaginava um homem velho, de barbas brancas, vestido de vermelho que carregava um grande saco cheio de sonhos. Sonhos de meninos ricos e pobres. Mas ele era pobre. De certeza que passava pela sua casa e nem olhava. Passaria à frente ?

A casa tinha pouca coisa. Uma mesa, bancos e a lareira, que com a chama dava calor e também luz.Algum conforto.

O pai trabalhava na fábrica. Os irmãos mais velhos iam suportando conforme podiam a falta da mãe que, com grava doença, morrera há já algum tempo.

A avó aparecia lá por casa de vez em quando. Arrumava e deixava comida feita. Ele, homem duro, trabalhador de fábrica no sector das máquinas pesadas, acarinhava como sabia e o gene humana, lhe permitia, os filhos. Casar, de novo, estava fora dos seus planos. Havia de se “ desenrascar”. E lá ia fazendo a sua vida.

Como era noite de Natal, atiçou a lareira um pouco mais com gravetos que trouxe do pinhal, propositadamente para aquela noite, ficando assim a arder pela noite dentro.

Olhou o filho sentado ao lume.

Estranhou. O menino não costumava ficar assim tão quieto.

Pegou-lhe ao colo. Um beijo, enquanto o filho lhe enlaçou o pescoço com os bracitos frágeis. Dos olhos do homem rude rolaram duas grossas lágrimas que se alojaram nas faces rosadas do filho.

__ Filho, o que foi ?

__ Gostava de ver o Pai Natal.

__ O Pai Natal só passa lá pela noite dentro. Vou por-te na cama.

__ Mas eu não quero dormir ....

__ Os teus irmãos já dormem !!

__ Não quero. Tenho que pedir uma coisa ao Pai Natal.

__ Diz-me o que queres .

O menino ficou calado. Olhou a chaminé, depois a porta e disse:

__ Eu quero a minha mãe !!!!


Natércia Martins

2009


domingo, 8 de novembro de 2009

Missa do Galo


Era noite de Natal.

Sentados à mesa, na sala de jantar, jantávamos todos juntos, como sempre fazíamos nas ocasiões especiais.

Da cozinha, chegava o cheiro dos fritos, acabadinhos de fazer: filhós de abóbora, rabanadas e broínhas. Azáfama a que eu era alheia. Era muito pequena ainda, portanto dispensada de certas lides caseiras. Ajudava a partir nozes e pinhões. Não tinha ainda competência para mais.

Perto do final do jantar a minha mãe declarou:

-- A Igreja é perto. A noite está linda, vamos à missa do Galo.

Eu, nunca tinha ouvido falar na missa do Galo. Missa do Galo ? De quem seria o galo ? O nosso ? Aquele grande que de manhã nos acordava com um cocorocó afinadinho, potente? Era lindo o galo. De penas amarelas e a crista bem vermelha. Era o rei da capoeira ! As galinhas gravitavam à sua volta, esgravatando e debicando.

De vez em quando e em assomos de “ D. Juan” arrastava a asa pelo chão, e dava meia volta perto de uma galinha mais bonita.

A missa do galo tinha-me deixado a pensar.

Vestimo- nos e lá fomos a caminho da Igreja. No adro ardia um madeiro enorme que os rapazes da aldeia transportaram à tarde, no carro de bois, trazido do pinhal. A chama vermelha elevava-se ao céu em línguas de fogo e fagulhas que o vento gelado fazia saltar provocando nas pessoas que se juntavam em volta, uns risinhos e algumas exclamações, não fossem ficar com a roupa estragada com um buraco.

Olhei em volta, ainda preocupada com o galo. Não! O galo não estava ali.

Os cânticos dentro do templo e já aquecidos pela chama forte da fogueira entoavam alegres, convidativos.

Entrámos e acomodámo-nos num dos bancos lá à frente, perto do presépio.

O Menino Jesus deitado na manjedoura entre S. José e Nossa Senhora, dormia sorrindo, no aconchego do bafo da mula e da vaquinha de barro. Lá ao fundo, no campanário da igrejinha, colocada entre um ramo de azevinho e bagas vermelhas, estava um galito pequeno, pintado de cores vivas.

A missa ia continuando em ritmo normal. Eu é que curiosa, procurava insistentemente onde estaria escondido o galo.

O galo da minha avó, não era porque gritou o seu conhecido canto, como a dizer:

-- Estou aqui, estou aqui !

Olhei para baixo dos bancos. Quem o teria trazido ? Estaria escondido dentro do xaile preto das mulheres que assistiam à missa e de vez em quando o aconchegavam. Só podia ser !

Esperei a ver o que acontecia. No meio da cerimónia uma senhora levantou-se do banco e dirigiu-se ao altar. Estremeci. Levaria ela, o galo ? E para quê ? Certamente que fugiria pela coxia de pedra, aflito. Mas não ! A senhora, calmamente leu uma passagem da Biblia em voz alta e pausadamente para todos os fiéis ouvirem. Chegou, leu e foi sentar-se novamente. Espreitei para baixo do altar. Nada ! Já estava a ficar aniosa sem saber onde estaria o galo. A missa do Galo tinha que ter um Galo. Pois claro !

Em voz baixa perguntei ao meu irmão . Este respondeu-me com encolher de ombros. Também não sabia.

E o galo que não aparecia !

Final da missa. Depois da benção iniciou-se a cerimónia de beijar o Menino, que o Sr padre foi buscar ao presépio e que entretanto acordara.

Uma a uma as pessoas em fila, beijavam o pezinho sagrado, enrolado em toalha branca com renda em volta, na mão do sacerdote.

Chegou a minha vez. Olhei espantada para o Menino que me sorriu piscando o olhito maroto, como que a gozar comigo.

A mão da minha mãe, apertou a minha levando-me novamente para o banco.

Já fora da Igreja, a fogueira ardia com explendor , nunca se apagando mesmo durante a noite, dando também calor a quem por ali ficou.

Chegados a casa, claro, a pergunta impunha-se:

-- Ó mãe, afinal onde está o galo ? Até agora não vi nenhum ! Não é o nosso, pois não ? Porque é que fomos à missa de um galo que não vi ?

Gargalhada geral !

--A fogueira era para assar o galo ?

A gargalhada foi ainda maior.

Então a minha avó sentou-me nos seus joelhos e contou:

-- Diz uma velha lenda que Jesus nasceu pela meia noite do dia 24 para 25 de Dezembro. Por essa mesma hora, portanto, meia noite, todos os galos nos galinheiros, cantaram ao mesmo tempo, várias vezes. Daí se chamar a Missa do Galo !


Natércia Martins

2009


domingo, 18 de outubro de 2009

Minha Mãe

Descansa em paz, minha mãe.

Partiste. Espera por mim.

Colocaste a tua mão na minha mão

E com um suspiro, findaste.

Sono eterno. Sem regresso !

.

Partiste e deixaste – me só,

Sono eterno, sem fim.

Lá do lugar onde te encontras,

Vela por mim

Não me abandones.

Deste-me a vida.

Dos teus braços fizeste berço,

Embalaste os meus sonhos de criança.

Descansa em paz !

Agora que partiste,

Correm lágrimas de saudade.

.

E nas noites de bréu,

Assomo à janela aberta,

Olho um ponto brilhante no céu.

Eu sei ! És tu, minha mãe !!

Natércia Martins

2009

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Gralhas


A palavra “gralha” pode significar uma espécie de ave que faz imenso barulho mas não canta.

Chamamos “ gralha” a uma pessoa que fala muito, mas pouco se aproveita do que diz.

Pois bem, “ gralha” é o que as pessoas chamam a um erro que,por razões variadas, sai numa publicação e que passa a qualquer revisor, por mais atento que esteja.

Num dos Jornais “ Ecos do Mondego” saiu uma “ gralha”na receita da caldeirada à beira-rio, que alterou todo o sentido do texto. Dizia a receita que além do ruivo, safio, tomate,batatas, etc, etc, levava 12 Kg de berbigão ou ameijoa e 12 Kg de pão torrado. Convenhamos que seria demasiada quantidade em relação aos outros ingredientes.

Certo é que as pessoas comem bem quando em boa companhia ou local aprazível. Mas 12 Kg ........ seria demais .... Ao preço que as coisas estão ! ....

O que se escreveu era apenas 1,2 Kg de ameijoa e pão torrado.Quando da conversão de programas os computadores suprimiram as respectivas virgulas.

As novas tecnologias são assim. Muito boas, significam progresso, mas também erram. E foi o caso. Acontece....

Passou na revisão que se fez e como o primeiro tratamento gráfico é da minha responsabilidade, daqui peço desculpa pela dita “ gralha”.

Pessoa amiga de longa data, e a quem envio, pontualmente o jornal, encontrou-me na esplanada de um café, onde calmamente bebia uma “bica”, e falámos das cheias do Mondego, dos lamigueiros que se encontram em vias de extinção como muitas outras espécies, noutros locais do planeta.

Falámos dos “ Ecos do Mondego”, como não podia deixar de ser. E, claro, falámos da “ gralha” que alterou todo o sentido da receita, mas também chegámos à conclusão que facilmente se dava pelo erro.

Falámos durante muito tempo. Desfiámos recordações, como sempre fazemos quando nos encontramos. Então contou-me que, havendo uma festa na aldeia, foi assistir a um concerto dado por uma Banda Filarmónica.

O palco enfeitado com fitinhas de papel abanavam ao vento.Ouviam-se os acordes da referida Banda numa “ arruada” visitando os mordomos, convidando a população depois do jantar.

O recinto bem composto de gente que vendia farturas, algodão doce chupa-chupas. Havia lá ao fundo a barraquinha das rifas, vulgarmente conhecidas por quermesse, onde sai sempre prémio: canecas, vasos de flores, caixinhas de madeira, etc, etc.

Os músicos apresentavam-se impecavelmente vestidos. Lá bem no meio, estava um que dava nas vistas. Impertigado, na sua farda azul, camisa branca e boné a esconder o cabelo cheio de gel. Bem arrumados no palco. Sentados em cadeiras mais ou menos cómodas começou o concerto.

O mestre deu o sinal e todos afinados tocaram músicas bem conhecidas.

O público aplaudia. O rapaz impertigado e cabelo cheio de gel ia espreitando, a ver, se alguém dava pela sua presença. É que se aprumara mais que nos outros dias. Podemos dizer que estava vaidoso, muito vaidoso, do seu saxofone, negro e botões amarelos a luzir, ainda novinho em folha. A luzir.

Mais uma música. Tudo em ordem. Um abanar de ombros ajeitando a farda e o instrumento. Mais uns acordes. O mestre confiante nos seus músicos sorria. E é aqui que se ouve um som agudo, prolongado e enquanto todos iam no dó, o rapaz ainda tocava ré.

O mestre olhou, franziu o sobrolho, coçou a cabeça e a música lá seguiu, mas aquela “ fífia”.....

O rapaz corou. Olhou à volta, coçou um olho e seguiu, mas ficou a pensar. Ele que estudara tão bem a lição, que não desafinava nunca .....

Veio mais tarde a saber, o meu amigo, que o rapazinho do saxofone preto, de tão presunçoso, não levava para os concertos, as pautas sujas ou amachucadas.

Na véspera, quando mais uma vez ensaiou, viu que as pautas não estavam impecavelmente limpas e a seu gosto.

Foi ao quiosque e fotocopiou -as. Agora estavam limpinhas .....

O que ele não viu foi que, junto a uma seminima uma mosca tinha poisado e sem cerimónias colocou ali à frente da nota musical uma “ bolinha” redonda que a fotocopiadora copiou na íntegra aumentando assim o valor da nota musical provocando a tal “ fífia”

O músico, sem se aperceber tocava o “ cócó” da mosca julgando ser um ponto posto lá no lugar certo, desafinando a música, prolongando o som por mais algum tempo.

domingo, 13 de setembro de 2009

Postal ilustrado

Um Domingo à tarde em Buarcos.
Setembro chama pessoas que expõem os corpos ao sol, daí os inúmeros chapéus na areia.

sábado, 8 de agosto de 2009

A Minha Rua


A minha rua não é bonita nem é feia. É a minha rua !

Modesta rua de aldeia onde passam, em livre trânsito, cães, gatos e também pessoas, também.Não tem passeios. Não precisa. Ladeiam – na oliveiras, nogueiras e pinheiros. Automóveis só mesmo os de quem ali mora ou que siga para um “ choiso” lá para cima. Passam tractores e motos todo-o-terreno. Sabemos sempre de quem são. Conhecemo-los pelo trabalhar do motor. Distinguimo-los como distinguimos as vozes das pessoas. Cada um tem um” timbre diferente.

A minha rua não tem lojas, montras ou até uma taberna. Já teve, mas não sobreviveu !

Mas tem o rebate da minha porta onde ao Domingo, no Verão, nos sentamos a conversar e contar histórias antigas.

São poucos os que aqui moramos, por isso nos sentamos em frente uns aos outros. Quem não cabe na velha pedra, senta-se num banquinho que ainda usamos frente à lareira no Inverno, mas que no Verão “ emigra” para a rua.

Contam-se histórias quase sempre relacionadas com os moradores actuais ou familiares já desaparecidos.

Contam que o Ti Albano ia com os filhos arrancar pedra à pedreira no cimo do monte. Essa pedra calcária era mesmo dali transportada feita brita, que nos anos vinte serviu para fazer as calçadas de Coimbra. Rebentavam os veios com picaretas e guilhos e partiam as pedras com a mesma facilidade com que se parte pão ou uma peça de fruta.

As filhas, descalças, levavam o almoço, enquanto as pedras do caminho lhes pisavam as unhas já calejadas de tanta “ topada” de dias anteriores. A mulher, Ti Grabelinda, magrinha, pequenina, colhia ervas medicinais que vendia ao dono da ervanária, que em dias combinados por ali passava.

As mulheres levavam cestos cheios de estrume para os “ choisos” roubados ao pinhal, a fim de semear batatas, couves e outros legumes sazonais. As ovelhas e cabras, tinham honras de entrar pela porta da frente. Também não havia outra.

As coisa modificaram-se nestes últimos tempos Já não há animais a coabitar com pessoas. Os velhos morreram e os novos modernizaram-se.

Recordamos o antigamente, quando a única ilminação era a candeia de azeite ou petróleo. A electricidade só chegou lá pelos finais dos anos sessenta.

Algumas histórias têm cunho recâmbolesco. As casas muito pequenas com a cozinha fora, no páteo, que por sua vez, tinha como única iluminação a lua. Dizia-se que: “ Casa onde mal caibas, mas terra que nem saibas “... Sem água da rede pública, esta era carregda à cabeça desde a fonte, lá no fundo da ladeira, até casa no cântaro de barro ou lata, mais leve.

Por vezes, ainda, alguma roupa lavada na fonte e trazida no topo do cântaro.

Vida dura, esta !

À noite os pés eram lavados na bacia de lata. Primeiro o pai,depois os filhos e finalmente a mãe. Tudo na mesma água, que ainda servia para regar as plantas num vaso, penico ou alguidar velho. Em conversa, falou-se da Ti deolinda que tinha o hábito de escutar às portas. Fazia-o à vontade encoberta pela sombra de uma enorme nogueira plantada perto das casas.

Uma noite, viu um homem entrar na cozinha do Ti Albano e ........ foi ligeirinha escutar perto da parede, bem coladinha. A dona da casa sem se aperceber da sua presença, atirou a água, despejando a bacia de lavar os pés, sem avisar. Deu-lhe um valente banho, coisa que, certamente, não fazia com frequência. A água custava a carregar do fundo da ladeira, à cabeça !

Contavam, ainda, que as raparigas novas brincavam com os rapazes, despejando-lhes as rodas das bicicletas, único transporte para aquelas bandas. Depois ficavam a rir bem escondidas.

À tarde jogava-se à “ pela”, `malha ou anelinho. Brincadeiras inocentes de gente inocente.

Fico sozinha. São horas de cada um ir à sua vida. Horas de preparar a ceia. Ficámos na conversa toda a tarde . E é assim. Todos ou quase todos os Domingos, na minha aldeia. Na minha rua.

Lembro-me de quando iamos à escola. O prazer de ir à escola ! Saco de linhagem a tiracolo. O que, na verdade, nos dava prazer eram as brincadeiras que se faziam pelo caminho. Laranjas “ voavam “ para dentro das janelas abertas. O pisar o gelo formado por cima das poças de água, durante a noite.

Sentir a sola dos sapatos ou tamancos a ranger por cima do gelo. Bolas de lama que se atiravam e iam cair onde calhava e a pontaria pouco afinada permitia.

As bagas dos carrascos metidas no bolso a fingir moedas que não tinhamos. Eram os nossos tesouros.!

Agora, passamos por uma qualquer escola do País e lá estão os pais a ir buscar os filhos, de carro.

Eu penso que lhes estão a roubar o prazer de ir à escola. Roubam-lhes as brincadeiras que se podem fazer enquanto se não chega a casa. Chegados, sentam-se frente ao televisor ou consola e absorvem o jogo já sem margem para fazer trabalhar a imaginação. Está tudo feito para a criança não se dar ao trabalho de pensar, imaginar, como nós faziamos.

Onde está o prazer de imaginar castelos encantados, reis, bruxas, raínhas e salteadores, escondidos por entre os pinheiros ?

Tudo muda. O prazer de chegar a casa e “ aninhar-se” no cantinho da lareira. Mal de um povo que não evolui, eu sei !

Mas sei, também que há coisas que nunca esquecem e ficam de tal forma gravadas na memória, que o tempo nunca vai apagar.

E é assim a minha rua com as histórias contadas nos Domingos soalheiros, sentados no degrau da minha casa.!!!!

Agora, sim, é a minha vez de ir para dentro de casa e deixar cá fora, no degrau todas estas recordações e conversas.


Natércia Martins

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Passeando....

Tenho um amigo
Que no estranjeiro morou.
Farto de estar fora
Em Lisboa aterrou. !
Lá do alto viu a cidade
Linda, bela e colorida.
O aeroporto é confortável.
Tem louras e morenas
Nos guichets de atendimento.
Lisboa, que maravilha !
Que bom ali viver !
Mas o pior de tudo
Já em terra firme,
Depois de uma passeata,
Foi procurar o carro
No centro comercial.!
Para a direita,
Para a esquerda
Para cima e para baixo
E o “ maldito” carro preto
Parecia “ embruxado”!!!
Depois de muito andar,
O “ carrito” lá estava
Arrumado, claro, está !
A saída foi problemática.
A moeda não entrava !
A ranhura não era aquela
Trapalhada, mais uma vez !
A menina da “ janelita”
Morena, pequenina, jeitosinha,
Lá foi de papelinho na mão .
Meu Deus ! Tudo resolvido.
Afinal até foi fácil.
Mas Lisboa é uma confusão
Com carros, polícias e ladrões !
Vou-me embora, outra vez !
Vou p’ra casa descansar.
Que esta vida de passeio,
Não dá descanso a ningém !!!!!

Natércia Martins

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Desnorte

A palavra Saudades,

É difícil de dizer.

Por vezes fica a amizade

Como gostava de te ver !

É crime sem perdão.

Eu sei! Querer amar-te.

Agora que pouco resta

Da rosa vermelha que me deste

Guardo as pétalas dessa flor

Nas folhas velhas do meu missal.

E tudo rola, com o rolar do tempo !

Eu sei ! Foi pecado sem perdão !

Ideia fugaz do meu viver.

Amar-te, foi pecado sem perdão.

Como gostava de te ver !

Meus sonhos são doida fantasia !

Fugazes, misteriosos, irrealizáveis !

Vivo no meu mundo de poesia

Em redoma de vidros inquebráveis !

Sou rocha firme que não parte !

Sou rude como pedra da ribeira !

As tuas mãos, são pétalas macias

Que afagam minha face envelhecida.

Foste o sonho, a vida, a morte

De meus sonhos, de doidas fantasias

Fugaz sonho ou desnorte ?

Sonhei mais uma vez contigo !

Tenho saudades!

Gostava de voltar a ver-te!

Amei uma ilusão. Uma fantasia !

Amor, beijo a tua face.

Guardei os beijos que me deste

Na palma da minha mão,

Juntos com a fantasia do meu sonho.

Já pouco mais me resta

Da vida que se esvai pouco a pouco.

Mas sonhei contigo !

Eu sei !

Amar-te foi pecado sem perdão !

Natércia Martins

domingo, 5 de julho de 2009

Espertinho

Hoje já ninguém se lembra, mas no início do século passado, as ruas, a que hoje se chama “ a baixinha” de Coimbra, ficavam ao mesmo nivel do rio.

Depois, com as obras da Rua Navarro, ficaram a um nível inferior. E era aí, numa dessas ruas estreitas que a minha avó tinha uma taberna, onde se vendia chafana, ou mesmo só o molho, quando não havia dinheiro para pagar a carne.

Parece que tinha fama de saborosa.

O velho Basófias era navegável e as Barcas Serranas desciam o rio desde Penacova, carregadas de carqueja, azeite e carvão. As recoveiras aproveitavam o transporte e aviavam os recados, as lavadeiras traziam roupa para lavar, ali mesmo na margem e no extenso areal, que na época, o rio, apresentava, estendendo essa mesma roupa, nas grades que ainda hoje lá se encontram, ou no dito areal.

Quando as barcas subiam o rio, levavam de volta as lavadeiras com a roupa já seca.

Contava a minha mãe que a minha avó mandava a criada para a porta da taberna contar as velas das Barcas a fim de saber quantas caçoilas de chanfana tinha que preparar.

Numa tarde de vento e chuva forte, aliás numa tarde de tempestade, a minha mãe foi visitar a mãe dela, minha avó e .... nessa tarde eu nasci . Ao mesmo tempo desabava a chaminé da casa em cima de um tacho de arroz de chouriço, que cozinhava em cima do fogão.

Passados um ou dois dias, lá fomos as duas a caminho da aldeia, na serra, na camioneta da carreira.

E foi na casa da minha avó, numa rua esteita e pequena que eu nasci. Lá em baixo, na taberna, apesar do temporal, a vida continuou sem mais transtornos que o arroz de chouriço desfeito debaixo da chaminé caída.

Aos Domingos, havia música no Parque da Cidade. E era ver algumasvelhotas, rapazinhos e militares a correr para ficar bem à frente da grade do coreto. Não raras vezes a luta por um lugar melhor “ descambava” em zaragata. E apanhava, quem não podia fugir, ou porque as pernas não acompanhavam, ou porque o pânico se instalava , ou simplesmente, não havia tempo de fugir. Numa dessas zaragatas, a minha bisavó foi apanhada. Ela, não perdia uma boa tarde de música no coreto.

Na pressa da fuga perdeu uma chinela. Claro que a minha avó não gostou da “ coisa”. No outro dia foi à esquadra a fim de reaver a chinela. Só tinham encontrado umas asas de um qualquer anjinho de uma qualquer procissão. Foi motivo de risota entre os militares, pois, Coimbra, cidade pequena, na época, todos se conheciam.

As histórias e personagens vão-se entrelaçando entre si. As tristezas, as alegrias e até partidas eram como se de uma família só, se tratasse.

Ali mesmo ao lado da rua onde morava a minha avó havia o Largo doRomal.

Morava lá o “ Perneta”. Tinha uma perna de pau, daí o alcunha. Morava no 1º andar. Como companhia, uma gata amarela. Quando subia a escada de madeira só se ouvia o som cavo da perna de pau a bater nos degraus.

Um dia a gata morreu. O homem desfazia-se em lágrimas de pranto. Juntaram-se as vizinhas e decidiram consolar o pobre homem. Fizeram uma coroa com o material que tinham mais à mão: carqueja. Ficou danado e nem teve dificuldade em descer as escadas atrás delas com a muleta pronta a desabar na primeira que encontrasse.

Tinha a minha avó Catarina um galo lindo. De penas amarelas e pretas. Andava por entre as pernas dos fregueses, sentados em bancos corridos. Comiam chanfana e bebiam vinho.

Lá ao fundo alinhavam-se as pipas cheias do líquido cor de rubi. O meu avô pouco por ali parava. Não gostava ! Tinha outras ocupações. E o galo por ali andava sem incomodar ninguém e também ninguém o incomodava. Migalha aqui, migalha ali, já fazia parte da clientela. O meu avô embora, por vezes arredio, ia-o observando, parecendo prazenteiro e alegre durante o dia. Tudo se modificava à noite. Cambaleava e o rabo cheio de penas enormes, ficava retorcido . A crista vermelha, ficava ainda mais vermelha e tombada. Mau ! Estaria o galodoente ?

Os dias iam correndo. O galo, de vez em quando largava um cócórócó sonoro, de bico aberto apontando ao sobrado onde eu nasci num dia de tempestade. À noite nem força tinha para cantar. O sonante cócórócó saía rouco, esganiçado, desafinado. Não havia resposta para tal transformação.

O meu avô tirou-se de cuidados e espreitou. Então não era que o esperto bicho se colocava debaixo da torneira da pipa e aparava, de bico aberto, o pingo que caía. Claro! À noite a bebedeira era no mínimo .... muito grande.!!!!!!!!!

sábado, 4 de julho de 2009

Café com chocolate


Maria tocou a campaínha do Lar e entrou, depois de um rapaz negro, mas de porte físico bonito, com farda aprumada e limpa, lhe ter aberto a porta.

Entrou e dirigiu-se a um quarto, também limpo, espaçoso e arejado.

Em cima da cómoda, fotografias em molduras brilhantes e uma jarra grande com um ramo de rosas vermelhas.

Um cadeirão de couro preto com uma almofada onde João se acomodava sempre que podia, descansando de longas caminhadas diárias, a ler um livro, prazer do qual não abdicava.

Olhou a visita, que chegava, por entre as lentes grossas que deixavam ver uns olhos cansados, meigos, castanhos e ainda brilhantes. Ficavam mais brilhantes ainda, quando Maria o visitava.

Ela, visita frequente, mas não programada, trazia-lhe de presente alguns mimos, como ele lhes chamava: um frasquinho de doce, um chocolate ou uma caixinha de bombons. Ela sabia, por experiência própria, que os velhos são gulosos. Aquele não fugia à regra.

Como sempre fazia, sentou-se numa outra cadeira de frente à janela, onde um páteo grande deixava antever uma escadaria, cheia de vasos com flores viçosas e frescas cuidadas pelo Senhor José, o jardineiro, também utente daquele Lar. Mas ainda suficiente apto e saudável para poder ocupar-se daquuele trabalho. Fazia-o com o mesmo cuidado e carinho com que tinha tratado da sua horta e do pequeno quintal da sua casa.

Agora sozinho e sem família, recolhera-se ali, tendo como família os outros utentes do lar.

Não gostava de estar fechado, e, então com autorização superior, conseguiu , ali continuar a sua actividade.

Falava com as flores e plantas como em tempo conversava com os filhos e netos.

No patamar ao cimo da escadaria, alinhavam-se cadeiras de verga onde de vez em quando se sentava, imaginando-se acompanhado e conversava com pessoas que não existiam.

João levantou-se abrindo a porta do quarto, com um gesto simples e voz firme, convidou Maria para um pequeno passeio.

Ele sabia que ela gostava de se sentar naquele átrio, naquelas cadeiras de verga, numa conversa simples e bem disposta, olhando os vasos de flores, as plantas verdes e a figura franzina do jardineiro. Aquelas cadeiras convidavam a isso mesmo: conversa !

Quando Maria visitava o Lar, João ganhava outra postura. Raramente convivia com os outros utentes. Lia livros da Biblioteca. Devorava-os uns atrás dos outros. Lia, lia, lia.....

Prazer que nunca deixou. Mas a visita da velha Amiga, dava-lhe um prazer único.

Sentaram-se lado a lado. A mão de Maria pousou no braço do Amigo, escorregou até á mão dele, que levemente estremeceu. Sem que desse a perceber o coração de ambos, bateu com mais intensidade e uma lágrima de saudade escorregou “ marota” por detrás das lentes grossas dele.

Maria, apesar da idade, tinha uma voz doce e suave, como se a idade não tivesse avançado. Ainda conservava alguns traços de juventude longínqua: olhos negros, agora cansados, lábios carnudos e sensuais.

Como gostavam de se ouvir um ao outro !

Desfiavam histórias de factos antigos. Quase sempre os mesmos, repetidos até à exaustão.

Cada um com uma história de vida diferente, mas mesmo assim gostavam de recordar cada um por sua vez.

João, como jornalista, correu mundo atrás de notícias que lhe deram uma projecção de vida, uma experiência e vivênciaque ele nem se apercebeu na época. Agora recorda tudo com lucidez e alguma saudade.

Conheceu locais e com esses locais, mitas mulheres, que também com elas experimentou vivências e culturas extraordinárias, que não esquece. A maioria dessas mulheres, já nem se lembra do nome.

Ela, com vida mais estável nunca saiu da terra que a viu crescer. Casou. Teve filhos e tem netos que adora.

Uma tarde de Setembro, depois de um passeio, no caminho para casa, viu aquela figura que, depois de tantos anos, lhe pareceu conhecida.

Ambos, ao cruzarem-se, no caminho, por entre as árvores que ladeiam o rio, olharam-se e reconheceram-se.

Tantos anos tinham passado !! Seria possível ?

Um abraço enorme, sentido encurtou a distancia temporal entre ambos. E foi assim que se reencontraram naquela tarde de Setembro.

Agora Maria era visita do Lar onde João se acolheu na sua “ reclusão “ forçada.

Ainda sentados no átrio, nas cadeiras de verga, conversavam e recordavam coisas da juventude. Os bailes dançados ao som da música da época: tangos, valsas e mais tarde quando o tempo encurtou as saias das meninas e estas “ voavam” nos braços dos rapazes ao som do Rock. Ainda recordaram, com uma gargalhada sonora quando , bebiam café à noite, na pastelaria e lhe colocavam quadradinhos de chocolate. O chocolate que se derretia, depois na boca deixando um sabor quase de um beijo roubado numa qualquer esquina da rua.

Era já quase noite.

Levantaram-se e devagarinho, como que a fazer “ render o tempo” foram até ao quarto. Eram horas de regressar a casa.

João entrou primeiro e num gesto lento, a deliciar-se, como fazia depois de um café com chocolate, retirou da jarra uma rosa que colocou na mão de Maria.




Natércia Martins

Junho -- 2009

terça-feira, 14 de abril de 2009

Pensão Girassol


A Pensão Girassol ficava bem situada no meio da Avenida, perto da Rotunda que fizeram para os lados das ruas de baixo.

A Rotunda era nova. Plantaram árvores e colocaram bancos de jardim. No meio, a estátua de um homem que ninguém conheceu.

Dizia-se que tinha sido nobre e dado muitas (das) terras onde construíram a Avenida.

Grande benemérito. Foi por isso que lhe erigiram aquela estátua de bronze. Poiso de pássaros e de
fungos. O verdete do bronze escorregava por ele como que a pintar as rugas e pregas do fato

A Pensão Girassol abrigava toda a espécie de pessoas: viajantes, trabalhadores, pedreiros, e velhos.

A D. Emília cantava todo o dia a canção: “Ó tempo volta p'ra trás. Um canto lúgubre, como um lamento.

Não tinha família por perto. Um filho visitava-a uma ou duas vezes por ano. E ela cantava, cantava sempre, e de tanto cantar transformou a melodia original, a seu belo prazer. Afinal não interessava mesmo nada, que a música fosse igual a que o António Mourão cantava.

O Sr. Eusébio era um homem magro e meio curvado com o peso dos anos.

Hóspede há tantos anos que fazia parte da família, da mobília e também dos hóspedes.

Quando novo, fora para lá. A fábrica era perto e dava jeito. Não tinha despesas extras e para quem ganhava pouco, aquela pensão era o ideal.

Não constituiu família. Nunca teve tempo para pensar nisso e quando pensou já não valia a pena: era velho demais.

Sentava-se num cadeirão junto da janela e cismava. Gostava do pôr-do-sol no Outono e da chuva no Inverno.

Falava com o papagaio colocado na gaiola verde ao fundo do corredor.

Os outros hóspedes trabalhavam. Saíam de manhã, regressavam à noite e de tão cansados não davam por estas estranhas criaturas.

Na Pensão Girassol, “aterrava” por vezes uma senhora bastante idosa a quem todos chamavam Menina Júlia. Gente fina mas estranha. Dizia que se o velho falava com o papagaio, ela falava com os animais, os pássaros e até com as flores.

Quando passava na rua ou nos corredores da pensão olhavam-na e apontavam o dedo à cabeça: sinal de “tolinha ou maluquinha”.

Da janela do quarto, sempre o mesmo, da pensão, via a estátua, lá em baixo, na rotunda. Ficava horas a olhar.

De vez em quando ia até lá e sentava-se no banco bem de frente à estátua.

Falava sozinha, diziam. O que dizia? Não se sabe.

Quando a Menina Júlia e o velho se encontravam, engalfinhavam-se. Ela mandava-o falar com o papagaio e ele mandava-a falar com a estátua. Ela ficava a olhar e uma lágrima rebolava no rosto enrugado. Ninguém sabia o porquê.

Um dia, quando, numa tarde de sol, a Menina Júlia, sentada no banco da Rotunda, falava para si ou para a estátua, o velho Eusébio, seguiu-a devagarinho. Escondeu-se atrás do banco e ouviu:

__ Vês? Todos saíram de casa e seguiram as suas vidas. Um a um. Casaram, morreram ou foram morar para outras cidades. Fiquei eu e tu!

Eu, quando a saudade aperta venho para esta Pensão. Assim fico mais perto para te ver. Vou matando saudades, até ao dia em que te for fazer companhia. Lembras-te? Os teus braços no meu pescoço, na minha cintura. Um beijo ao adormecer e tu ainda entras nos meus sonhos. Sabes? Nos meus sonhos tu entras devagar, vogando num longo mar de desejos. E os teus braços apertam-me e eu perco-me neles.

No frio da noite, em cada solidão do silêncio que há à minha volta, de tanto pensar, dou por mim a perder-me, mais uma vez nos teus braços.

Ainda fazes parte dos sonhos da minha já longa vida.

O velho Eusébio, percebeu que o homem de bronze tinha sido o marido da Menina Júlia e era para conversar com ele que ela de vez em quando “aterrava” na Pensão Girassol.
Agora também ele tinha um segredo!

Natércia Martins

12-04-2009

Dia de Páscoa

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Um presente

O ano em que o meu irmão nasceu, foi farto em neve. Fizeram um enorme boneco de neve com uma cenoura a fazer de nariz e a boca de batata, ali à porta do lagar de azeite, mesmo juntinho ao curral da mula.
E eu, pequenita a brincar com os pedaços de neve. Foi coisa que nunca esqueci.
Quase um mês depois já era tempo de Natal. Chegou como um piscar de olhos. Apanhou-se musgo, loureiro e as velhas figuras de barro saíram do caixote de papelão. Todos os anos era preciso substituir figuras ou colar braços e pernas que mal acondicionados se partiam.
O lagar de azeite funcionava sem parar até a “ safra” terminar. Era um entrar e sair de empregados a levar a azeitona para que as pesadas mós a desfizessem, o transportar da massa para as ceiras, o caldar e finalmente o azeite amarelinho em fio a escorrer para dentro da “ fonte”.
Havia sempre quem passasse e não resistisse ao calor da fornalha. Entrava, sentava-se no tronco em frente àquele brasido e aquecia as mãos ou enxugava a roupa. Por vezes bebia uma caneca de café, que o havia sempre na fornalha dentro da cafeteira preta do fumo e da cinza. Mas aquele ano foi demais com aquela neve toda! Os lagareiros aproveitavam e assavam bacalhau que regavam com o azeite novo e acabadinho de fazer. Lembro-me bem Cheirava que era um regalo. Quantas vezes quem entrava para se aquecer comia junto. Depois ia à sua vida lá fora.
Hoje, passados tantos anos ainda recordo aquele ano. Foi um ano especial para mim. Primeiro pelo nascimento do meu irmão e depois por um facto que nunca mais me saiu da cabeça.
Era dia de Natal. A cozinha fervilhava de azáfama. Faziam-se filhós, pão de ló, belhós de abóbora e a canja de galinha que fervia no grande fogão de ferro. O cabrito rodeado de batatinhas pequenas dentro do forno, que a minha avó não ia lá em couves e bacalhau na consoada. O lagar nesse dia não trabalhava para que os empregados consoassem com os familiares.
O presépio feito a um canto da sala reluzia com umas pequenas velas que o meu pai lá colocou para o Menino não estar às escuras . É que naquele tempo a minha aldeia não tinha luz eléctrica.
A vida fazia-se na cozinha. Contavam-se histórias à espera que a comida ficasse pronta.
Já sentados à volta da mesa prontos para o jantar bateram à porta. Quem seria àquela hora ? O meu coração bateu com alvoroço. E se fossem as prendas ? Os meus pequenos sapatos junto ao presépio continuavam vazios.
À porta, com o chapéu sujo de neve, um capote preto que o cobria até aos pés, estava um homem de barba grisalha Os olhos piscos da luz que de repente se fez, devido à porta aberta.
Entrou. Sentou-se num banco junto ao fogão Comeu. Não disse quem era e de onde vinha naquela noite tão agreste. Passei por perto A curiosidade era muita. Então tirou do bolso uma pequena pedrinha rosa e redonda que colocou na minha mão. Foi o seu agradecimento. Como chegou, foi embora,. Em silêncio.
Entrei e saí várias vezes da sala até chegar a hora de deitar.
A minha imaginação fértil construiu uma série de pensamentos. Aquele homem de aspecto esquisito seria o Pai Natal ? Adormeci e sonhei com a cama cheia de embrulhos, carrinhos, bonecas, livros, uma mala para a escola,substituindo, assim, a velha de linhagem. Até o berço do meu irmãozinho estava cheio de presentes, mal se vendo o menino lá no meio.
De manhã levantei-me cedo e a primeira coisa que fiz foi correr para o presépio ver o meu sapatinho ali colocado no dia anterior. Um pequeno presente embrulhado em papel cor de rosa fazia lembrar a pedrinha que o velho me deu. Nunca mais me separei dela Ainda hoje a guardo religiosamente.
Fiquei a pensar quem seria aquele homem de há tantos anos.
Talvez o Pai Natal . Quem sabe ?




Natércia Martins
2008
Mnatercia@gmail.com