segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Um presente

O ano em que o meu irmão nasceu, foi farto em neve. Fizeram um enorme boneco de neve com uma cenoura a fazer de nariz e a boca de batata, ali à porta do lagar de azeite, mesmo juntinho ao curral da mula.
E eu, pequenita a brincar com os pedaços de neve. Foi coisa que nunca esqueci.
Quase um mês depois já era tempo de Natal. Chegou como um piscar de olhos. Apanhou-se musgo, loureiro e as velhas figuras de barro saíram do caixote de papelão. Todos os anos era preciso substituir figuras ou colar braços e pernas que mal acondicionados se partiam.
O lagar de azeite funcionava sem parar até a “ safra” terminar. Era um entrar e sair de empregados a levar a azeitona para que as pesadas mós a desfizessem, o transportar da massa para as ceiras, o caldar e finalmente o azeite amarelinho em fio a escorrer para dentro da “ fonte”.
Havia sempre quem passasse e não resistisse ao calor da fornalha. Entrava, sentava-se no tronco em frente àquele brasido e aquecia as mãos ou enxugava a roupa. Por vezes bebia uma caneca de café, que o havia sempre na fornalha dentro da cafeteira preta do fumo e da cinza. Mas aquele ano foi demais com aquela neve toda! Os lagareiros aproveitavam e assavam bacalhau que regavam com o azeite novo e acabadinho de fazer. Lembro-me bem Cheirava que era um regalo. Quantas vezes quem entrava para se aquecer comia junto. Depois ia à sua vida lá fora.
Hoje, passados tantos anos ainda recordo aquele ano. Foi um ano especial para mim. Primeiro pelo nascimento do meu irmão e depois por um facto que nunca mais me saiu da cabeça.
Era dia de Natal. A cozinha fervilhava de azáfama. Faziam-se filhós, pão de ló, belhós de abóbora e a canja de galinha que fervia no grande fogão de ferro. O cabrito rodeado de batatinhas pequenas dentro do forno, que a minha avó não ia lá em couves e bacalhau na consoada. O lagar nesse dia não trabalhava para que os empregados consoassem com os familiares.
O presépio feito a um canto da sala reluzia com umas pequenas velas que o meu pai lá colocou para o Menino não estar às escuras . É que naquele tempo a minha aldeia não tinha luz eléctrica.
A vida fazia-se na cozinha. Contavam-se histórias à espera que a comida ficasse pronta.
Já sentados à volta da mesa prontos para o jantar bateram à porta. Quem seria àquela hora ? O meu coração bateu com alvoroço. E se fossem as prendas ? Os meus pequenos sapatos junto ao presépio continuavam vazios.
À porta, com o chapéu sujo de neve, um capote preto que o cobria até aos pés, estava um homem de barba grisalha Os olhos piscos da luz que de repente se fez, devido à porta aberta.
Entrou. Sentou-se num banco junto ao fogão Comeu. Não disse quem era e de onde vinha naquela noite tão agreste. Passei por perto A curiosidade era muita. Então tirou do bolso uma pequena pedrinha rosa e redonda que colocou na minha mão. Foi o seu agradecimento. Como chegou, foi embora,. Em silêncio.
Entrei e saí várias vezes da sala até chegar a hora de deitar.
A minha imaginação fértil construiu uma série de pensamentos. Aquele homem de aspecto esquisito seria o Pai Natal ? Adormeci e sonhei com a cama cheia de embrulhos, carrinhos, bonecas, livros, uma mala para a escola,substituindo, assim, a velha de linhagem. Até o berço do meu irmãozinho estava cheio de presentes, mal se vendo o menino lá no meio.
De manhã levantei-me cedo e a primeira coisa que fiz foi correr para o presépio ver o meu sapatinho ali colocado no dia anterior. Um pequeno presente embrulhado em papel cor de rosa fazia lembrar a pedrinha que o velho me deu. Nunca mais me separei dela Ainda hoje a guardo religiosamente.
Fiquei a pensar quem seria aquele homem de há tantos anos.
Talvez o Pai Natal . Quem sabe ?




Natércia Martins
2008
Mnatercia@gmail.com

2 comentários:

tribunus disse...

Que bela história, à uma comovente e reconfortante.

Gostei muito do pormenor da pequena pedrinha guardada para sempre.

É um elo entre o passado e o presente.

Parabéns!

Augusto Lucas disse...

É significativo que as memórias de infância perdurem nítidas pelos anos fora, quando factos mais recentes e quiçá mais importantes, se desvanecem.
Gostei bastante e como dizia a canção: "recordar é viver"