sábado, 8 de agosto de 2009

A Minha Rua


A minha rua não é bonita nem é feia. É a minha rua !

Modesta rua de aldeia onde passam, em livre trânsito, cães, gatos e também pessoas, também.Não tem passeios. Não precisa. Ladeiam – na oliveiras, nogueiras e pinheiros. Automóveis só mesmo os de quem ali mora ou que siga para um “ choiso” lá para cima. Passam tractores e motos todo-o-terreno. Sabemos sempre de quem são. Conhecemo-los pelo trabalhar do motor. Distinguimo-los como distinguimos as vozes das pessoas. Cada um tem um” timbre diferente.

A minha rua não tem lojas, montras ou até uma taberna. Já teve, mas não sobreviveu !

Mas tem o rebate da minha porta onde ao Domingo, no Verão, nos sentamos a conversar e contar histórias antigas.

São poucos os que aqui moramos, por isso nos sentamos em frente uns aos outros. Quem não cabe na velha pedra, senta-se num banquinho que ainda usamos frente à lareira no Inverno, mas que no Verão “ emigra” para a rua.

Contam-se histórias quase sempre relacionadas com os moradores actuais ou familiares já desaparecidos.

Contam que o Ti Albano ia com os filhos arrancar pedra à pedreira no cimo do monte. Essa pedra calcária era mesmo dali transportada feita brita, que nos anos vinte serviu para fazer as calçadas de Coimbra. Rebentavam os veios com picaretas e guilhos e partiam as pedras com a mesma facilidade com que se parte pão ou uma peça de fruta.

As filhas, descalças, levavam o almoço, enquanto as pedras do caminho lhes pisavam as unhas já calejadas de tanta “ topada” de dias anteriores. A mulher, Ti Grabelinda, magrinha, pequenina, colhia ervas medicinais que vendia ao dono da ervanária, que em dias combinados por ali passava.

As mulheres levavam cestos cheios de estrume para os “ choisos” roubados ao pinhal, a fim de semear batatas, couves e outros legumes sazonais. As ovelhas e cabras, tinham honras de entrar pela porta da frente. Também não havia outra.

As coisa modificaram-se nestes últimos tempos Já não há animais a coabitar com pessoas. Os velhos morreram e os novos modernizaram-se.

Recordamos o antigamente, quando a única ilminação era a candeia de azeite ou petróleo. A electricidade só chegou lá pelos finais dos anos sessenta.

Algumas histórias têm cunho recâmbolesco. As casas muito pequenas com a cozinha fora, no páteo, que por sua vez, tinha como única iluminação a lua. Dizia-se que: “ Casa onde mal caibas, mas terra que nem saibas “... Sem água da rede pública, esta era carregda à cabeça desde a fonte, lá no fundo da ladeira, até casa no cântaro de barro ou lata, mais leve.

Por vezes, ainda, alguma roupa lavada na fonte e trazida no topo do cântaro.

Vida dura, esta !

À noite os pés eram lavados na bacia de lata. Primeiro o pai,depois os filhos e finalmente a mãe. Tudo na mesma água, que ainda servia para regar as plantas num vaso, penico ou alguidar velho. Em conversa, falou-se da Ti deolinda que tinha o hábito de escutar às portas. Fazia-o à vontade encoberta pela sombra de uma enorme nogueira plantada perto das casas.

Uma noite, viu um homem entrar na cozinha do Ti Albano e ........ foi ligeirinha escutar perto da parede, bem coladinha. A dona da casa sem se aperceber da sua presença, atirou a água, despejando a bacia de lavar os pés, sem avisar. Deu-lhe um valente banho, coisa que, certamente, não fazia com frequência. A água custava a carregar do fundo da ladeira, à cabeça !

Contavam, ainda, que as raparigas novas brincavam com os rapazes, despejando-lhes as rodas das bicicletas, único transporte para aquelas bandas. Depois ficavam a rir bem escondidas.

À tarde jogava-se à “ pela”, `malha ou anelinho. Brincadeiras inocentes de gente inocente.

Fico sozinha. São horas de cada um ir à sua vida. Horas de preparar a ceia. Ficámos na conversa toda a tarde . E é assim. Todos ou quase todos os Domingos, na minha aldeia. Na minha rua.

Lembro-me de quando iamos à escola. O prazer de ir à escola ! Saco de linhagem a tiracolo. O que, na verdade, nos dava prazer eram as brincadeiras que se faziam pelo caminho. Laranjas “ voavam “ para dentro das janelas abertas. O pisar o gelo formado por cima das poças de água, durante a noite.

Sentir a sola dos sapatos ou tamancos a ranger por cima do gelo. Bolas de lama que se atiravam e iam cair onde calhava e a pontaria pouco afinada permitia.

As bagas dos carrascos metidas no bolso a fingir moedas que não tinhamos. Eram os nossos tesouros.!

Agora, passamos por uma qualquer escola do País e lá estão os pais a ir buscar os filhos, de carro.

Eu penso que lhes estão a roubar o prazer de ir à escola. Roubam-lhes as brincadeiras que se podem fazer enquanto se não chega a casa. Chegados, sentam-se frente ao televisor ou consola e absorvem o jogo já sem margem para fazer trabalhar a imaginação. Está tudo feito para a criança não se dar ao trabalho de pensar, imaginar, como nós faziamos.

Onde está o prazer de imaginar castelos encantados, reis, bruxas, raínhas e salteadores, escondidos por entre os pinheiros ?

Tudo muda. O prazer de chegar a casa e “ aninhar-se” no cantinho da lareira. Mal de um povo que não evolui, eu sei !

Mas sei, também que há coisas que nunca esquecem e ficam de tal forma gravadas na memória, que o tempo nunca vai apagar.

E é assim a minha rua com as histórias contadas nos Domingos soalheiros, sentados no degrau da minha casa.!!!!

Agora, sim, é a minha vez de ir para dentro de casa e deixar cá fora, no degrau todas estas recordações e conversas.


Natércia Martins

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