domingo, 22 de dezembro de 2019

Menino Jesus







Em casa da minha avó não se fazia presépio. A árvore de natal, muito menos. Nem se sabia que era possível levar um pinheiro para casa e enfeitar. Os enfeites viriam a ser comercializados muitos anos depois da minha meninice.
Havia, sim, um presépio na igreja que admirava sempre que lá íamos. O menino Jesus era levado pelas mãos do Padre António, com carinho embrulhado em rendas, e todos os fiéis, na missa do galo, iam beijá-lo. Cerimónia simples, mas que, eu, pequena, via com enlevo. Cerimónia repetida todos os anos, mas que para mim era sempre a primeira vez.
Os rapazes transportavam um enorme madeiro que ardia no adro todo o tempo das festas natalícias. As mulheres iam lá com uma pá e levavam as brasas acesas para os ferros de engomar. Lá em casa iam buscar, também, para pôr na braseira que à noite nos aquecia os pés.
Aquele enorme braseiro no adro da igreja sempre me fez alguma confusão. Até julgava que seria para assar o galo já que se tratava da missa do galo. E quem dava o galo?  
A minha tia Laura, ainda solteira morava com a mãe, minha avó, é que me explicou que a fogueira tinha a finalidade de aquecer os pobres desprotegidos que ali passavam já que a noite era muito fria.
Mas a figura do Menino Jesus inquietava-me. Então aquele menino só vestia um paninho de renda e não tinha frio? É que a figurinha de barro aos meus olhos de criança era um menino de carne osso.
Tinham-me dito que o Menino Jesus trazia as prendas. Então eu e o meu irmão mais pequeno, íamos colocar o sapato na chaminé do fogão já apagado. No outro dia de manhã lá estavam os presentes que se resumiam a uma caneca de barro, uma mala para a escola ou um casaco.
Ora se as prendas eram trazidas pelo menino Jesus que descia pela chaminé eu tinha de o encontrar. E se o visse? O que lhe iria pedir? Onde trazia as prendas? Eu podia escolher?
Perguntas que todos os anos ficavam sem resposta pois ele mais lesto, ia lá pôr tudo às escondidas. Deixava que todos adormecessem lá em casa e eu, para o encontrar ia pé ante pé, no corredor, para falar com ele. Pois sim! Quando lá chegava já ele tinha passado.
Cheguei a pensar que era maroto e não gostava de mim. Mas se me dava prendas ….. então não lhe era indiferente.
Passaram-se alguns anos e, claro, cresci, obedecendo às leis da natureza. O meu maior desgosto foi quando soube que afinal o Menino Jesus das prendas no sapatinho era a minha tia que lá ia pôr.
Passou muito tempo. Agora fazemos, em minha casa o presépio e a árvore de Natal, enfeitada com festão de cores. Até há um Pai Natal a subir nas escadas.
O Menino Jesus é o que me prende sempre a atenção. Este, que tenho, é lindo. Deram-mo. Tenho-o no meu quarto juntamente com S. José e Maria. Quando, nas noites sem sono, me levanto e olho, imagino - o no presépio na minha terra rodeado de palhinhas. Converso com ele. Conto-lhe porque estou mais triste. Ele sorri. Depois quando me deito e durmo, sonho com a minha avó sentada na mesa redonda com a braseira a aquecer os pés, a minha tia Laura belíssima contadora de histórias que nos fazia “ver” tudo o que contava.
Eram assim os natais na minha terra onde não havia luz elétrica nem água a jorrar das torneiras. O tempo corre, sem sermos capazes de o agarrar. Hoje é um lugar igual a tantos outros que existem por aí.

Natércia Martins



terça-feira, 17 de dezembro de 2019

A menina dança ?




Era quase sempre assim que uma moda se começava a dançar num ritmo calmo com os corpos bem juntinhos e os rostos quase unidos. As mãos seguravam sonhos e fantasias, muitas vezes só na cabeça do rapaz ou da rapariga.
Os bailes dos anos sessenta ou mesmo de setenta eram calmos bem ritmados por uma balada e o cadenciado dos passos no chão da sala.
Fui a muitos desses bailes.
Teria os meus quinze anos quando fomos a um baile de carnaval ao salão do Clube. Teria “bom pé” porque nunca mais parei. Lembro-me tão bem! O rapaz, cujo nome nunca esqueci, também dançava muito bem.
Eramos sempre acompanhadas pelas mães ou irmão. As mães sempre vigilantes não fosse o rapaz atrevido e roubasse um beijinho ao seu par. Era assim nesse tempo.
Havia muitas espécies de bailes. Eu gostava de todos desde que se dançasse.
Na eira do Ti Chico também se faziam. O som da concertina mais ou menos afinada com alguma “fífias” pelo meio, tocava as modas da época. O convívio e a folia reinavam e também havia namoricos que começavam naqueles bailes.
Os rapazes das aldeias vizinhas apresentavam-se para dançar, o que não era bem visto pelos da aldeia e quantas vezes o baile acabava à paulada. Sim porque o rapaz desse tempo fazia-se acompanhar de um cajado que deixava no lado de fora do local do baile.
O meu pai chamava – lhes baile de coça barriga.
Também, na época, se usava o buffet que na maioria das vezes não era mais que uma mesa e copos onde se vendia cerveja e vinho.
Os rapazes bebiam pouco mas juntavam-se ali por perto na conversa. Quando a música começava lá iam eles à procura do par. Muitas vezes o par já era certo e não se dançava com mais ninguém.
Os “pés de chumbo” é que eram uma chatice. Não sabiam dançar e pisavam os pés da rapariga. Uma vez, que me lembre, apanhei um desses pés de chumbo e deixei-o no meio do baile. Chorei muito pois eu gostava dele mas não conseguia dançar.
Não raras vezes as raparigas olhavam como que a escolher o rapaz. Eles também já sabiam e faziam sinal como a marcar o lugar. Os que não viam e vinham à frente levavam “tampa”. Era assim que se dizia.
A rapariga que não dançava ou porque não conseguia par ou mais envergonhada ficava sentada. Chamava- se a isso um “banho de cadeira”.
Alguns bailes que se faziam tinham nome: baile da primavera, baile de carnaval, baile da pinha ou mesmo só baile. Tudo servia para se dançar.
O baile que se fazia à tarde era chamado de chá dançante. Acabava à hora de jantar.
À noite, acabava de manhã quase sempre com marchas onde se faziam comboios com toda a gente a divertir-se. Era sinal que naquele dia, ou noite não havia mais. Hora de rumar a casa.
A rainha do baile era escolhida entre as raparigas mais bonitas. Colocavam uma faixa quase sempre cor-de-rosa.
Também se faziam ao som do gira – discos com discos de vinil. Havia um habilidoso que comandava o som e tinha que colocar a agulha no sítio certo e na pista certa, na música que queria.
Mais tarde já eram abrilhantados por conjuntos com as guitarras elétricas e cabelos à Beatles.
Apareceram os Delfins, Gatos Negros e outras bandas cujo nome já não me lembra.
Mudam-se os tempos e as vontades.
Mas como alguém dizia: o sonho não envelhece.
Hoje fazem-se bailes para gerações mais velhas até mesmo em discotecas. As pessoas mais velhas têm o direito de se divertir, conversar e recordar os seus tempos de juventude.
Quantas dessas pessoas não tiveram a oportunidade e só agora a conseguiram. A cabeça e principalmente as pernas ajudam. E fazem muito bem!
Será que ainda se usa: a menina dança? E porque não?

Natércia Martins



terça-feira, 19 de novembro de 2019

Bocejo


Fome, sono ou …… manha do dono?
O bocejo ou abrir a boca e deixar sair toda a preguiça que se instalou sem pedir licença.
Abrir a boca muitas vezes seguidas pode significar que estamos cansados.
Mas a sabedoria ou cultura popular imprime-lhe outro significado. Claro que o céu ou inferno estão associados. Aliás como em quase tudo o que diz respeito a estes fenómenos, se é que podemos chamar-lhes assim.
Quando eu ou o meu irmão ou mesmo outra pessoa que estivesse por perto da minha mãe e abríssemos a boca muitas vezes era certo e sabido:
__ Estás cheiinha de quebranto!
E lá ia ela com uma jarrinha cheia de água, um pratinho branco e a almotolia de azeite. Então, sem permitir perguntas deixava cair no pratinho que entretanto enchia da água da jarrinha. Deitava três pingos de azeite, ao mesmo tempo que dizia uma oração meio impercetível. Se os pingos do azeite desapareciam repetia-se a operação até os pingos do azeite ficarem redondinhos dentro da água do pratinho branco.  
Pronto! Quebranto tirado.
Antes da minha mãe havia a minha avó Amélia que, em conversa me explicou como “ cortar” o mau olhado ou quebranto Se tínhamos quebranto, isto é, se bocejávamos mais que o normal também nos fazia sentar num banquinho e com a faca do pão, porque tinha o cabo de madeira, passava por cima da nossa cabeça com ela. Dizia o nosso nome e lá vinha a oração, dita em surdina: se tens quebranto, mal de inveja ou soberba, eu te tiro com a faca do pão, com o poder de Deus e da Virgem Maria. Pai Nosso e Avé Maria.
Se a pessoa não estava presente ela fazia cruzes por cima de uma foto dessa pessoa, com a tal faca do pão. E fazia isto cerca de nove vezes. A pessoa que faz, como a “ doente”, se abrem muitas vezes a boca é sinal que o mal está a sair. Se isto acontecer não se preocupe.
A faca com o cabo de madeira simboliza uma adaga. Corta o mal simbolicamente.
As pessoas antigas e muitas vezes analfabetas pensavam que tudo na vida das pessoas era conectado com a religião ou o cosmos. Era a fé que se tinha ou ainda tem que explica (ou não) estas coisas.
Bocejar? Todos bocejamos desde os primórdios do mundo.
Bocejar não é mau nem bom apenas significa um ajuste de energias.
O bocejo indica que temos sono, estamos cansados ou mesmo depois de uma noite bem dormida. É um movimento muscular que se produz tanto nas pessoas como nos animais. Uma vez iniciado é impossível interromper. A pessoa pode fechar a boca mas os músculos estão a ser acionados pelo reflexo.
Pode ser no quentinho da lareira, no inverno, depois de uma sesta no verão, nos dias quentes, com as cegarregas a cantar nos pinheiros. Talvez numa conferência e quando a “ coisa” não nos interessa nada. E quando rezamos? Claro que bocejamos. Involuntariamente mas não deixa de ser um ou uns bocejos.
Talvez não saiba mas os fetos também bocejam dentro do ventre materno.
O bocejo é contagioso? É contagioso mas não como doença. Se uma pessoa começa a bocejar involuntariamente todos bocejam, os que se encontram à sua volta.
E ainda: antigamente pensava – se que se bocejássemos sem pôr a mão na frente da boca, que os diabos entravam no corpo.
Sempre a luta entre anjos e demónios. Como a nossa gente sabe destas cosas. Estas tradições transmitem-se sempre por via oral. De mães para filhas ou avós para as netas. Também quase sempre são as mulheres a via de transmissão.
Mas ainda se ouve ao abrimos a boca: fome, sono ou manha do dono.
Afinal é verdadeiro: se temos fome, bocejamos. Se temos sono bocejamos. Se não temos nada, apenas entediados, bocejamos.

Natércia Martins


sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Aquela máquina




O meu pai chegou a casa, colocou os livros em cima da mesa e disse:
--Comprei aquela máquina!
A minha mãe levantou os olhos da costura que tinha nas mãos, olhou o meu pai, mas não disse nada.
De certeza, coisa boa não seria. Ela era pouco dada a novidades, principalmente vindas do marido.
Ele voltou a dizer: -- trouxe aquela máquina!
Então, mais para fazer a vontade, levantou-se e foi ver.
Era um automóvel. Morris, pequeno e preto. Por azar, ou não, tinha a matrícula AC. Logo lhe chamaram: Antes de Cristo.
Ainda meio desconfiada mirou de todos os lados, abriu uma porta, depois a outra, franziu a testa, coçou o alto da cabeça e sem dizer mais nada declarou:
-- Parece-me bem! Já não precisamos ir a pé como fazíamos.
Sim. Naquele tempo íamos a pé até ao autocarro. Ainda era algum caminho. Levávamos cerca de meia hora.
Mas aquela máquina foi uma boa aquisição. Levou-nos numa primeira viagem a Fátima. Eu teria uns doze ou treze anos. O meu irmão mais novo encaixava-se em qualquer lado. A Fátima, fomos como “sardinha em lata”. Então foi assim: Ia a minha avó Amélia, a minha tia Laura, eu, o meu irmão, a minha mãe e o meu pai. Não se desconfiava que iríamos ter cintos de segurança uns anos mais tarde. Mas o carrinho depois de muito andar, envelheceu!
O meu pai, professor no colégio, não se atrapalhava às primeiras. Quando o motor não queria “pegar” os alunos empurravam até ao cimo da ladeira comigo e ele lá dentro. Depois vinham mais ou menos pendurados até ao fundo da ladeira numa verdadeira galhofa. Para eles era divertido. Eu encolhida lá dentro não lhe achava grande graça. Ah! Para eles era uma verdadeira festa.
Mas os anos passaram. Cresci. O meu irmão também. Cada um de nós rumou às suas vidas noutras instituições de ensino. O meu pai continuava a dar as suas aulas no colégio.
Outos automóveis passaram pelas suas mãos, mas mais nenhum foi “aquela máquina”.
Quando, passados uns anos, tirei a carta de condução passei a conduzir eu os carritos do progenitor.
Até que um dia ….. estacionada à porta da cozinha, estava a verdadeira máquina! Ora se foi !
Um Dois Cavalos! Cinzento, lindo! Carinhosamente batizámos de Latinhas. Aquilo era mesmo só lata!
O que ele aguentou! Conduzido por mim ….. no início de ter carta de condução! A primeira vez que o levei para a escola foi uma verdadeira aventura.
Tinha mudanças. Só tinha três e marcha atrás, alavanca no volante. Capota de lona. Sem blindagem por baixo. Se firmássemos a vista, víamos o alcatrão da estrada. Um tapete colocado no chão era o único luxo.
Uma vez vinha com o meu pai e num dia de calor medonho, uma cobra estendia-se a receber todos os raios solares. Passei por cima. Olhei pelo retrovisor e não vi a cobra, que pensava ter atropelado. Qual quê? O meu pai sem muito alarido, disse-me para olhar para baixo. Parei e a cabeça da cobra já se avistava junto ao acelerador, ou nos travões, ou na embraiagem. Não sei. Saí a correr, mas o trauma da cobra nunca me passou. Nunca mais atropelei nenhuma.
Numa outra vez ia eu na estrada e a minha mãe disse que não queria ir pela principal. Iríamos pela secundária ali ao lado. Sem olhar bem, guinei para onde queria ir. Resultado: Saltei uma barreira com a minha mãe a gritar que nos íamos matar. Mas não matei ninguém e outras aventuras se seguiram E que aventuras!
Aquela máquina, uma verdadeira máquina que morreu de forma inglória de encontro á parede de um vizinho e comigo lá dentro.     
Natércia Martins.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Vizinhos




Moro na aldeia. Pensando bem sempre morei na aldeia. Não esta onde agora estou mas outra ou outras.
Não são todas iguais. Mas todas têm vizinhos.
Os vizinhos também não são todos iguais. Sempre me dei bem com todos fossem de uma aldeia ou de outra. Mas isto também não é fácil e não é para todos. Há que manter uma filosofia de vida que, penso, tenha necessidade do equilíbrio.
A vizinha que nos vem, já de noite, pedir uma perninha de salsa. Outra que espreita por detrás da cortina como se estivesse invisível. Há as que, porque o menino deu uma volta de bicicleta, tirou o vaso das flores do lugar. Há as que ralham por tudo e por nada.
É a aldeia onde tudo se sabe.
O galo canta de manhã cedo quando o padeiro deixa pendurado num prego na porta, o pão do dia. As ovelhas que saem da corte para o pasto com o pastor de cajado na mão. Elas seguem já com o caminho sabido de tanto calcorrear. O pastor leva-as com um palavrão deitado ao ar como se elas o entendessem. O cão é o companheiro da jornada tanto do pastor como das ovelhas. Lá andam pelo mato a tasquinhar as pontas das ervas verdes. No fundo do saco de linhagem vai o almoço dos dois: pastor e cão. Broa, um naco de chouriço, uma garrafa de vinho.
Quando cai a noite, as ovelhas e pastor regressam a casa, fartas e de barriga cheia.
A vizinha aproveita e com o ouvido alerta, escuta o que se passa em casa da outra vizinha. Interessada em saber se o homem da casa já chegou ou se vinha com um copo a mais.
Na cidade ou na vila estas situações ou não se passam ou também ninguém dá conta delas.
Na aldeia não é assim. Quase todos pertencem à mesma família mesmo os que não são, passaram a considerarem-se como tal.
São primos ou compadres.
Na aldeia as raparigas ou os rapazes casam e ficam a viver perto dos pais. É um hábito antigo, que se vai perdendo com o tempo.
Semeia-se o grão e este germina até à colheita. Sempre em vigilância permanente dos donos. Na colheita quase todos colaboram. Lembro-me das descamisadas do milho feitas na eira. Toda a gente ajudava. Quando a espiga vermelha aparecia era um abraço, de quem a encontrava, a todos os presentes. Um rapaz, ou até a rapariga, espertos, levavam uma dessas espigas no bolso para ir dar o abraço da “praxe”.
As debulhas também eram uma festa semelhante. Todos os vizinhos se reuniam em constante ajuda. No fim e para “rematar” as colheitas fazia-se o bailarico. A eira que serviu para a descamisada ou debulha era transformada em sala de baile. As saias rodopiavam enquanto elas se perdiam nos braços do rapaz, namorado ou não. Tudo isto supervisionado pelas mães atentas, ou não, na conversa com a comadre.
Era ali que numa conversa dita inocente entre elas que saiam as novidades. Tudo era, ou ainda é, esmiuçado até à medula.
Os homens entretinham-se na taberna improvisada numa mesa com toalha de plástico, “manhosa” dos pingos de vinho caídos dos copos cheios, atravessados aqui e ali pelo palavrão dito para se afirmar de entre os outros homens.
Conversa de comadres é outra.
__ Sabias que a Joaquina namora com o Fernando?
__ Eu não! Fingia- se admirada, quando já estava fartinha de saber.
A outra sem querer ficar sem uma novidadezinha ripostava:
__ A Francelina apareceu de “ barriga”. Sabes quem é o pai? Ela nem namora!
__ Não sei, não!
A aldeia é mesmo assim. Podem mudar as pessoas, adquirir outros hábitos mas no fundo, nada muda.

Natércia Martins






quarta-feira, 13 de novembro de 2019

A senhora do Testinho


Não imaginam como eram os serões em casa da minha avó, no Portugal profundo, encravado na serra. Sem eletricidade. A fogueira ao canto da sala. O lume iluminava mais do que a luz trémula do candeeiro de petróleo.
A meio da tarde entrava a comadre Guilhermina que a pretexto de perguntar à minha avó de como fazia as empadas. No dia seguinte iria para casa dela o sapateiro. Precisava de aprender como se cozinhavam. Ela até sabia, mas assim tinha conversa e, algumas vezes, nem a receita saía. A minha avó cheia de paciência repetia pela milésima vez, ou mais, que primeira se fazia a massa com farinha, azeite, ovos, etc tec. Já a comadre fechava os olhos encostando a cabeça à parede, confortada com o calor do lume.
O sapateiro e a costureira iam a casa dos fregueses, fazer o seu trabalho. Então nesse dia fazia-se uma comida melhor.
Mais tarde entrava a comadre Maria do Leitão. Alcunha que lhe assentava na perfeição. É que em nova colocou um dedo junto à rede no curral de porco que lho decepou. Daí o alcunha.
Essa chegava apressada pois tinha deixado a ferver no “ borralho” uns ossinhos para o caldo do seu Zé. Ficava, ficava e ficava até ser noite fechada agachada num banquinho também junto da lareira. É que ela gostava de ouvir as histórias que a minha avó contava. Não havia muito mais com que nos entreter contava – nos o que, também ela, ouvira contar à luz triste do candeeiro de petróleo.
Uma noite contou que ali por aqueles lados apareceu um cavaleiro que pediu abrigo na hospedaria mais próxima. Ia para a cidade, mas como entretanto se fez noite, deu água e comida ao cavalo Depois de um repasto na cozinha da hospedaria.
Ao terminar a ceia olhou para um açucareiro pousado em cima da mesa. A tampa tinha a encimar uma imagem de Nossa Senhora ladeada de anjos. Como gostou dela e sem que a dona da hospedaria se apercebesse agarrou-a e meteu-a no bolso.
 Dormiu e sonhou com lutas guerras, donzelas e campos em flor. Toda a noite cavalgou.
De manhã, colocou as rédeas, a sela, as esporas e fez-se aos montes na serra juncada de mato e tojos.
À medida que ia cavalgando, o seu cavalo transformava-se em javali. Já quase sem se equilibrar, agarrava a crina do javali. Tudo o que pertencia a arreios do cavalo tinha desaparecido. Ele cavalgava, cavalgava direito ao infinito, tendo apenas à sua frente os cornos esticados de um diabo feito javali.
De súbito levou a mão ao bolso. Encontrou a tampa do açucareiro e a imagem nela estampada e a plenos pulmões gritou: -- Valha-me a Senhora do testinho que tenho aqui no bolso.
O javali estacou. E tal como se transformou em diabo voltou a ser cavalo com arreios e estribos.
Respirou fundo, o cavaleiro. Era de novo o cavaleiro de antes.
Eram estas as histórias que nós ouvíamos enquanto a comadre Guilhermina acordava e a Comadre Maria do Leitão ia para casa acabar o caldo.
Nós íamos para a cama sonhar com todas estas histórias fantásticas contadas ao serão no Portugal profundo que já não existe.



Desenhos animados


Sempre que tenho os netos em casa levo com uma overdose de desenhos animados. De todas as espécies. Coloridos, a preto e branco, com orelhas grandes, corninhos, dentuças grandes, óculos etc etc.
Há desenhos para todos os gostos conforme o público. Se os espetadores forem mais pequenos os bonecos são muito básicos e com falas tão fáceis que eles percebem tudo. O cenário é no jardim onde as árvores ganham vida, olhos e falam, também. Há Arvores que ganhando pernas mudam de sítio e são dos maus ou dos bons, como eles lhes chamam. Há príncipes e princesas, um dragão com escamas reluzentes e, claro, a espada que lança labaredas.
Os maus são castigados com espadas de fogo. Os bons têm olhos grandes, óculos e as meninas cabelos loiros e compridos quase até aos pés. Os bons são recompensados quase sempre com uma canção e o episódio termina.
Admiro quem desenha, faz a produção e quem “dobra” para que as falas coincidam com a boca da personagem.
Há guerras e choros assim com risos e cantigas.
De vez em quando, com a casa em silêncio, há uma gargalhada que surge de um sofá onde uma das crianças se afundou.
Até eu gosto de ver os desenhos animados. Entro com os meus netos dentro da televisão e também faço parte da brincadeira.
É engraçado ser criança. Para eles aquilo faz parte da génese e também eles entram de cabeça dentro da televisão. Se preciso ficam ali uma tarde inteira.
Não ouvem o que os rodeia. Falamos e é como se falássemos para a parede.
No meu tempo de criança era tudo muito diferente. Em primeiro lugar não havia televisão. Brincávamos na rua também com castelos, príncipes e princesas forjados em cada árvore, pedras ou mesmo a própria rua. Jogos de futebol onde as balizas eram os chinelos meio enterrados na terra. Sem jogadores certos e sem tempo também. Acabava quando chamavam para jantar. Sem ganhadores ou perdedores e sem árbitro. Nem treinador.
No meu tempo de criança já havia umas publicações com desenhos e figuras que ganhavam vida nas nossas cabeças fazendo nós mesmo o filme conforme a nossa imaginação. Nem era mau. Havia uma que colecionámos, eu e o meu irmão, quase todos os episódios. Era o Cavaleiro Andante. Quem não conhece? Muita gente, colecionou. As figuras desenhadas ganhavam vida. Corriam quase sempre a cavalo. Um cavalo branco e as crinas ao vento. E cada quadradinho era uma fonte para a nossa imaginação.
Mas o que teve mais longevidade foi sem dúvida o Tio Patinhas que ainda hoje faz as delícias de miúdos e graúdos.
O Tio Patinhas assim chamado pelo sobrinho Pato Donald.
Personagem americana é uma série criada em histórias aos quadradinhos. É o pato mais rico do Mundo e tem uma fortuna que faz dele o dono de um vasto Império. Os Irmãos Metralha, quem se lembra? São uma quadrilha de ladrões, sempre atrapalhados e também sempre metidos em apuros. Eles tentam roubar a caixa forte do Tio Patinhas. É que, sendo ele assim tão rico faz a cobiça dos Metralha e não só. Ele também tem medo da Bruxa Patólica, sempre à espreita de ficarem com a fortuna guardada numa caixa forte dentro de uma banheira onde o tio toma banho ou anda de barco.
Quem é o Tio Patinhas?
Do que me lembro, começou, a trabalhar como engraxador e ganhou a sua primeira moeda. A nº 1, ou seja: a sua moeda da sorte que guarda religiosamente.
Conta e limpa as moedas todos os dias.
Estes desenhos animados foram inicialmente feitos em histórias aos quadradinhos nuns almanaques e com o correr do tempo foram sendo adaptados tanto ao cinema como à televisão.
O autor criou, ainda, alguns familiares como a Vóvó Donalda,os sobrinhos Huguinho, Zezinho e Luisinho. O Professor Pardal, Gastão,e o irritante vizinho Donald, sempre à espreita.
Não me posso esquecer do Mikey.
Aventuras de um pato ou um rato que ficaram para a História.
O Capitão América, Asterix, o Homem Aranha e Batman. Diferentes no estilo mas que fazem as delícias da criançada e não só.

Natércia Martins