Não imaginam como eram os
serões em casa da minha avó, no Portugal profundo, encravado na serra. Sem eletricidade.
A fogueira ao canto da sala. O lume iluminava mais do que a luz trémula do
candeeiro de petróleo.
A meio da tarde entrava a comadre
Guilhermina que a pretexto de perguntar à minha avó de como fazia as empadas.
No dia seguinte iria para casa dela o sapateiro. Precisava de aprender como se
cozinhavam. Ela até sabia, mas assim tinha conversa e, algumas vezes, nem a
receita saía. A minha avó cheia de paciência repetia pela milésima vez, ou
mais, que primeira se fazia a massa com farinha, azeite, ovos, etc tec. Já a comadre
fechava os olhos encostando a cabeça à parede, confortada com o calor do lume.
O sapateiro e a costureira iam
a casa dos fregueses, fazer o seu trabalho. Então nesse dia fazia-se uma comida
melhor.
Mais tarde entrava a comadre
Maria do Leitão. Alcunha que lhe assentava na perfeição. É que em nova colocou
um dedo junto à rede no curral de porco que lho decepou. Daí o alcunha.
Essa chegava apressada pois
tinha deixado a ferver no “ borralho” uns ossinhos para o caldo do seu Zé. Ficava,
ficava e ficava até ser noite fechada agachada num banquinho também junto da
lareira. É que ela gostava de ouvir as histórias que a minha avó contava. Não
havia muito mais com que nos entreter contava – nos o que, também ela, ouvira
contar à luz triste do candeeiro de petróleo.
Uma noite contou que ali por
aqueles lados apareceu um cavaleiro que pediu abrigo na hospedaria mais
próxima. Ia para a cidade, mas como entretanto se fez noite, deu água e comida
ao cavalo Depois de um repasto na cozinha da hospedaria.
Ao terminar a ceia olhou para
um açucareiro pousado em cima da mesa. A tampa tinha a encimar uma imagem de
Nossa Senhora ladeada de anjos. Como gostou dela e sem que a dona da hospedaria
se apercebesse agarrou-a e meteu-a no bolso.
Dormiu e sonhou com lutas guerras, donzelas e
campos em flor. Toda a noite cavalgou.
De manhã, colocou as rédeas, a
sela, as esporas e fez-se aos montes na serra juncada de mato e tojos.
À medida que ia cavalgando, o
seu cavalo transformava-se em javali. Já quase sem se equilibrar, agarrava a
crina do javali. Tudo o que pertencia a arreios do cavalo tinha desaparecido.
Ele cavalgava, cavalgava direito ao infinito, tendo apenas à sua frente os
cornos esticados de um diabo feito javali.
De súbito levou a mão ao
bolso. Encontrou a tampa do açucareiro e a imagem nela estampada e a plenos
pulmões gritou: -- Valha-me a Senhora do testinho que tenho aqui no bolso.
O javali estacou. E tal como
se transformou em diabo voltou a ser cavalo com arreios e estribos.
Respirou fundo, o cavaleiro.
Era de novo o cavaleiro de antes.
Eram estas as histórias que
nós ouvíamos enquanto a comadre Guilhermina acordava e a Comadre Maria do
Leitão ia para casa acabar o caldo.
Nós íamos para a cama sonhar
com todas estas histórias fantásticas contadas ao serão no Portugal profundo
que já não existe.
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