quarta-feira, 13 de novembro de 2019

A senhora do Testinho


Não imaginam como eram os serões em casa da minha avó, no Portugal profundo, encravado na serra. Sem eletricidade. A fogueira ao canto da sala. O lume iluminava mais do que a luz trémula do candeeiro de petróleo.
A meio da tarde entrava a comadre Guilhermina que a pretexto de perguntar à minha avó de como fazia as empadas. No dia seguinte iria para casa dela o sapateiro. Precisava de aprender como se cozinhavam. Ela até sabia, mas assim tinha conversa e, algumas vezes, nem a receita saía. A minha avó cheia de paciência repetia pela milésima vez, ou mais, que primeira se fazia a massa com farinha, azeite, ovos, etc tec. Já a comadre fechava os olhos encostando a cabeça à parede, confortada com o calor do lume.
O sapateiro e a costureira iam a casa dos fregueses, fazer o seu trabalho. Então nesse dia fazia-se uma comida melhor.
Mais tarde entrava a comadre Maria do Leitão. Alcunha que lhe assentava na perfeição. É que em nova colocou um dedo junto à rede no curral de porco que lho decepou. Daí o alcunha.
Essa chegava apressada pois tinha deixado a ferver no “ borralho” uns ossinhos para o caldo do seu Zé. Ficava, ficava e ficava até ser noite fechada agachada num banquinho também junto da lareira. É que ela gostava de ouvir as histórias que a minha avó contava. Não havia muito mais com que nos entreter contava – nos o que, também ela, ouvira contar à luz triste do candeeiro de petróleo.
Uma noite contou que ali por aqueles lados apareceu um cavaleiro que pediu abrigo na hospedaria mais próxima. Ia para a cidade, mas como entretanto se fez noite, deu água e comida ao cavalo Depois de um repasto na cozinha da hospedaria.
Ao terminar a ceia olhou para um açucareiro pousado em cima da mesa. A tampa tinha a encimar uma imagem de Nossa Senhora ladeada de anjos. Como gostou dela e sem que a dona da hospedaria se apercebesse agarrou-a e meteu-a no bolso.
 Dormiu e sonhou com lutas guerras, donzelas e campos em flor. Toda a noite cavalgou.
De manhã, colocou as rédeas, a sela, as esporas e fez-se aos montes na serra juncada de mato e tojos.
À medida que ia cavalgando, o seu cavalo transformava-se em javali. Já quase sem se equilibrar, agarrava a crina do javali. Tudo o que pertencia a arreios do cavalo tinha desaparecido. Ele cavalgava, cavalgava direito ao infinito, tendo apenas à sua frente os cornos esticados de um diabo feito javali.
De súbito levou a mão ao bolso. Encontrou a tampa do açucareiro e a imagem nela estampada e a plenos pulmões gritou: -- Valha-me a Senhora do testinho que tenho aqui no bolso.
O javali estacou. E tal como se transformou em diabo voltou a ser cavalo com arreios e estribos.
Respirou fundo, o cavaleiro. Era de novo o cavaleiro de antes.
Eram estas as histórias que nós ouvíamos enquanto a comadre Guilhermina acordava e a Comadre Maria do Leitão ia para casa acabar o caldo.
Nós íamos para a cama sonhar com todas estas histórias fantásticas contadas ao serão no Portugal profundo que já não existe.



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