O meu pai chegou a casa,
colocou os livros em cima da mesa e disse:
--Comprei aquela máquina!
A minha mãe levantou os olhos
da costura que tinha nas mãos, olhou o meu pai, mas não disse nada.
De certeza, coisa boa não
seria. Ela era pouco dada a novidades, principalmente vindas do marido.
Ele voltou a dizer: -- trouxe
aquela máquina!
Então, mais para fazer a
vontade, levantou-se e foi ver.
Era um automóvel. Morris,
pequeno e preto. Por azar, ou não, tinha a matrícula AC. Logo lhe chamaram:
Antes de Cristo.
Ainda meio desconfiada mirou
de todos os lados, abriu uma porta, depois a outra, franziu a testa, coçou o
alto da cabeça e sem dizer mais nada declarou:
-- Parece-me bem! Já não
precisamos ir a pé como fazíamos.
Sim. Naquele tempo íamos a pé
até ao autocarro. Ainda era algum caminho. Levávamos cerca de meia hora.
Mas aquela máquina foi uma boa
aquisição. Levou-nos numa primeira viagem a Fátima. Eu teria uns doze ou treze
anos. O meu irmão mais novo encaixava-se em qualquer lado. A Fátima, fomos como
“sardinha em lata”. Então foi assim: Ia a minha avó Amélia, a minha tia Laura,
eu, o meu irmão, a minha mãe e o meu pai. Não se desconfiava que iríamos ter
cintos de segurança uns anos mais tarde. Mas o carrinho depois de muito andar,
envelheceu!
O meu pai, professor no
colégio, não se atrapalhava às primeiras. Quando o motor não queria “pegar” os
alunos empurravam até ao cimo da ladeira comigo e ele lá dentro. Depois vinham
mais ou menos pendurados até ao fundo da ladeira numa verdadeira galhofa. Para
eles era divertido. Eu encolhida lá dentro não lhe achava grande graça. Ah!
Para eles era uma verdadeira festa.
Mas os anos passaram. Cresci.
O meu irmão também. Cada um de nós rumou às suas vidas noutras instituições de
ensino. O meu pai continuava a dar as suas aulas no colégio.
Outos automóveis passaram
pelas suas mãos, mas mais nenhum foi “aquela máquina”.
Quando, passados uns anos,
tirei a carta de condução passei a conduzir eu os carritos do progenitor.
Até que um dia ….. estacionada
à porta da cozinha, estava a verdadeira máquina! Ora se foi !
Um Dois Cavalos! Cinzento,
lindo! Carinhosamente batizámos de Latinhas. Aquilo era mesmo só lata!
O que ele aguentou! Conduzido
por mim ….. no início de ter carta de condução! A primeira vez que o levei para
a escola foi uma verdadeira aventura.
Tinha mudanças. Só tinha três
e marcha atrás, alavanca no volante. Capota de lona. Sem blindagem por baixo.
Se firmássemos a vista, víamos o alcatrão da estrada. Um tapete colocado no
chão era o único luxo.
Uma vez vinha com o meu pai e
num dia de calor medonho, uma cobra estendia-se a receber todos os raios
solares. Passei por cima. Olhei pelo retrovisor e não vi a cobra, que pensava
ter atropelado. Qual quê? O meu pai sem muito alarido, disse-me para olhar para
baixo. Parei e a cabeça da cobra já se avistava junto ao acelerador, ou nos
travões, ou na embraiagem. Não sei. Saí a correr, mas o trauma da cobra nunca
me passou. Nunca mais atropelei nenhuma.
Numa outra vez ia eu na
estrada e a minha mãe disse que não queria ir pela principal. Iríamos pela
secundária ali ao lado. Sem olhar bem, guinei para onde queria ir. Resultado:
Saltei uma barreira com a minha mãe a gritar que nos íamos matar. Mas não matei
ninguém e outras aventuras se seguiram E que aventuras!
Aquela máquina, uma verdadeira máquina que morreu de
forma inglória de encontro á parede de um vizinho e comigo lá dentro.
Natércia Martins.
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