domingo, 23 de fevereiro de 2020

Sopa, sopas e papas


Segundo a opinião dos gastrónomos a sopa é uma mistura pastosa de água e alguns ingredientes tão variados quanto a nossa imaginação.
Alimento milenar que, segundo algumas opiniões apareceu pouco depois de ter sido descoberto o fogo.
O curioso da questão é que quando ainda não havia utensílios de barro ou metal, coziam uma espécie de sopa em buracos existentes nas pedras entretanto aquecidas.
Há sopas feitas somente com pão e água, outras com cereais e ainda outras com hortaliça que são as mais comuns.
Há, ainda, outras opiniões que colocam a sopa como alimento da pré-história, portanto muito antes do aparecimento do fogo.
A sopa tem como base a cozedura em água de hortícolas, leguminosas ou tubérculos aos quais se associa azeite e sal.
A sopa é o alimento ideal para o bom funcionamento do organismo principalmente os intestinos, devido à presença de fibras, água e também pela temperatura a que é servida.
Se comermos um prato de sopa o apetite fica mais reduzido para o prato que se segue. Em suma: a sopa prepara o estômago para o prato seguinte.
Costuma-se dizer, a grosso modo, que a sopa é a tranca da barriga. E é por isto que a sopa deve ser comida no início da refeição devido à sua condição de saciante.
A maior parte das sopas são feitas com ingredientes cozidos, portanto, quentes.
A sopa de pedra onde entra a história do frade comilão, mas engenhoso que foi pedindo os ingredientes para uma sopinha já tendo uma fogueirita e uma panela a ferver com uma pedra lá dentro. Foi-lhe sendo facultado tudo o que pedia e havia na casa onde se abeirou e comodamente se sentou num degrau: as couves, o pedaço de chouriça os feijões, a cenoura, o sal e o azeite.  Os donos da casa queriam ver o que saía dali, tal era a curiosidade. Era apenas uma saborosa sopa. O frade comeu e saboreou. A pedra? Bem, a pedra ficaria para a próxima sopa.
Parafraseando o inteligente frade, dizia-se na minha aldeia que: havendo água até com uma pedra se faz sopa.
Ainda, voltando uns anos atrás, na história humana, o homem caçador por natureza e também por necessidade, se deu conta que havia carnes duras e ficavam macias e saborosas quando cozinhadas em água e ervas.
Conta-se que na idade média a sopa consistia num pedaço de pão sobre o qual se vertia um caldo de carne, legumes ou vinho a ferver, diretamente para a travessas fundas de barro ou estanho.
A partir do séc. XVI a cozinha foi ficando mais sofisticada e começou a introduzir-se massa, tomilho ou frango.
As sopas podem ser feitas de qualquer coisa, sendo alimento acessível a todas as bolsas, possui a vantagem de reter no seu caldo os nutrientes dos respetivos ingredientes.
Para famílias de fracos recursos a sopa era, em tempos, o único prato da refeição.
Há sopas frias como o gaspacho ou as célebres sopas de cavalo cansado.
No interior do país ainda se usa fazer sopas de café para o pequeno almoço. Consiste em colocar pão velho no fundo da tigela, açúcar e finalmente o café.
As sopas de cavalo cansado como pequeno almoço era considerado um tonificante para pessoas com pouco físico. As crianças também comiam e gostavam. Era a forma que os pais encontravam de obter melhor rendimento no trabalho. Seria?
O que são as sopas de cavalo cansado? Tão simples como colocar, numa tigela, pedaços de pão velho embebido em vinho tinto, açúcar, canela e para ficarem mais nutritivas um ovo crú.
As papas laberças nasceram a partir das sobras da sopa de nabos. Com o resto da sopa que sobrou coloca – se água, sal e azeite. A farinha de milho deve deitar-se em chuva para não ter


grumos desagradáveis. Fica uma papa mole que se come com sardinha assada por cima ou toucinho frito ou ainda com bacalhau assado.
Papas de carolo, muito utilizadas no interior do país. São feitas com água, um fio de azeite e farinha de milho, numa “ moedura” que os moleiros na época não gostavam de fazer. Tinham que subir a pedra da mó. Comiam-se com mel por cima ou açúcar amarelo. Penso que terá caído em desuso. Hoje faz-se uma papa semelhante com leite e polvilhadas com canela.
Papas de sarrabulho. São oriundas do Minho e confecionadas com o sangue do porco, carne de galinha, salpicão e presunto. O pão velho é mais uma vez o ingrediente principal assim como a farinha de milho e especiarias.
Papas de abóbora. Muito apreciadas, as papas de abóbora, são feitas com abóbora cozida e triturada, azeite, farinha e condimentos.
Finalmente as papas de entrudo que se comiam na Beira Baixa. Feitas de pão velho, ensopadas em água de cozer as carnes do cozido, limão,ovos e hortelã.
As confrarias, e há muitas, são associações que têm por objetivo a investigação e divulgação do património, tradições e receitas das regiões.
As confrarias tentam manter o legado histórico valorizando o território e têm a finalidade de não deixar desaparecer os usos e costumes do povo português.

Natércia Martins

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Domingo à tarde



Domingo de um agosto com sol descoberto há algumas horas já.
Sentei – me na cadeira de praia que tenho na varanda.
Àquela hora, manhã cedo e já os barulhos característicos da mata se faziam ouvir ali tão perto.
Gosto particularmente do canto das cegarregas, que só se calam no inverno. Elas conversam umas com as outras e talvez com quem mora ali perto. Há quem as sabe entender. Gosto. Pronto!
Olhei, mais uma vez o relógio, cujos ponteiros teimam em não se mover. Lentos, lentinhos para o meu gosto.
Avizinhava-se uma tarde de domingo chata, sem nada que fazer. Pelo menos não me apetecia fazer nada.
Ler um livro? Não! Escrever? Também não! Bem puxava a “ponta do fio” que teimava em não aparecer. Quando o fio aparece as palavras saem em catadupa. Não era o caso. Nada!
Peguei na chávena vazia do café que bebi e que me soube tão bem. Ao menos isso.
Já que ideias não havia nada.
A chávena deu uma série de voltas na minha mão. Vá lá não caiu! Mas ideias …… Nada!
Do fundo da rua alguém chamou.
__ Bolas! Num domingo de manhã, com tanto calor e já me chamam.
Não me apetecia ler, não me apetecia escrever e não me apetecia falar. Os ponteiros do relógio continuavam a não querer andar.
Tornaram a chamar. Respondi quase só para saberem que estava ali já acordada.
Do fundo da rua perguntaram:
__ Quer vir? Vamos fazer uma caldeirada à beira rio.
Respondo e vi que algumas pessoas me esperavam ao fundo da escada.
Levavam uma panela, uma trempe para a fogueira, e a parafernália de instrumentos de cozinha.
Também levavam cebolas, batatas, pimentos, alhos. Enfim! Tudo o que era preciso para a dita caldeirada.
A fome ia connosco. Vi que levavam uma bola e muita conversa. Isso era bom.
Chegados à beira rio, apanharam uns gravetos que por ali havia e fizeram uma fogueira acautelada por pedras, não fosse o fogo “fugir”.
A Senhora Adelina tomou conta da situação. Vagarosa, sem pressas colocou a panela no fogo, cebola às rodelinhas, as batatas, o tomate, a salsa, o pimento, etc etc.
O peixe entrou cuidadosamente. Primeiro o mais firme. Depois o mais delicado
A panela fervia num fogo lento. Ali não havia pressas. Afinal tínhamos a tarde de domingo por nossa conta.
O cheiro da panela aumentava a nossa vontade de almoçar também. E a caldeirada não havia jeitos de sair.
A cozinheira abriu a panela. Que rico cheirinho.  A panela fervia agora mais lento ainda. A apurar!
Jogámos à bola, à corda, ao pião e finalmente a bendita caldeirada.
Estava boa. Muito boa! Eu que gosto pouco de tal prato.
Já noite fechada votámos para casa. Passei uma tarde de domingo sem me lembrar que, quando saí da cama não me apetecia fazer nada.
Belíssima aquela tarde.
Quando voltamos?

Natércia Martins

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Estrelas e planetas




Estrelas e Planetas

Fez um percurso normal na escola, denotando já preocupação e vontade de estudar a Natureza. José foi um bom aluno, apesar de não ser estudante muito acima da média. Já, nesse tempo se preocupava com a observação das plantas e animais. Era alegre e parecia estar sempre a gozar com o professor.
Respostas rápidas e sempre a tempo.
Ainda em criança e depois adolescente gostava de fazer campismo e junto com os pais e irmãos correu muito do país. Assim, em contacto com a Natureza, viu que o ar é mais leve e a noite mais atractiva que a ruas iluminadas da cidade.
Sentava-se junto da tenda e ouvia o silêncio do parque. Tudo sossegado e as estrelas lá em cima como pontinhos brilhantes que bordavam o céu.
Na verdade, cada pontinho brilhante faz parte de um grupo com formas geométricas. Descobriu a Ursa Maior, Ursa Menor, Cassiopeia e Orion e muitas mais constelações.
Mais tarde, com dinheiro que foi amealhando, comprou uns binóculos. Passou a observar a lua, redondinha, cheia, cravada no céu. A lua sorria-lhe e ele sorria para ela.
Convidou o amigo Luis para passar um fim-de-semana no campismo. Este só conhecia a noite na sua rua. Perto de casa. Admirou-se, porque as paredes da tenda eram de pano e a cama no chão. Mesmo assim, gostou de observar o céu como nunca o vira. Era lindo!
E o gosto foi-se avolumando.
José ouviu a notícia que, numa noite de lua nova, ia acontecer uma grandiosa chuva de estrelas. Mais uma vez pesquisou no computador. A chuva de estrelas não é mais que meteoritos que ao entrar na atmosfera se desintegram em pequenos fragmentos incandescentes, dando a ilusão de estrelas a mudar de sítio. Muita gente ainda pensa que são estrelas cadentes e é costume pedir um desejo, enquanto deixa atras de si um rasto de fogo. E ele também pediu um desejo, muitos desejos, perdidos na sua cabecita de adolescente.
Tantos desejos como estrelas cadentes que viu naquela noite. E foram muitas.
O tempo foi passando e o gosto pela observação agudizou-se. Pesquisou e comprou revistas.
Como todos sabemos a aldeia é cheia de lendas em que bruxas e lobisomens são os principais actores.
O meu vizinho, sentado sentado na soleira da minha porta, numa noite quente de Agosto contava histórias. É um bom contador de histórias.
Contou, numa dessas noites, que no cruzamento ao fundo da ladeira as bruxas se juntavam em grandes farras em noites de lua cheia. E contava, também, que o patrão delas, cornudo e pés de cabra as acompanhava nas danças à volta de uma grande fogueira.
Dizia conhecer um homem da aldeia, que sentado à lareira, via passar todas as noites, à sua frente, uma galinha pedrêz. Uma noite, já farto, arrumou-lhe com a tenaz do lume. A galinha desapareceu, mas a mãe dele, de manhã, estava de cama com uma perna partida. Concluiu que a galinha que lhe passava em frente todas as noites era a mãe transformada em bruxa e também dançava todas as noites, ao fundo da ladeira, com o tal cornudo com pés de cabra.
Com estas e outras histórias semelhantes se faziam os serões, no verão, à porta da rua.
Numa noite escura de breu, o José convidou o vizinho Luis para mais uma observação observação lá em cima, no barreiro, perto do pinhal. Dizem que andam por lá almas penadas (estas andam por todo o lado), bruxas e labisomens.
Montaram o tripé, os binóculos e um pequeno telescópio. O canto dos grilos e o piar de um mocho, cortou o escuro. De resto, o silêncio.
Sem se fazer ouvir um outro vizinho cuscuvilheiro, foi, de mansinho, ver por onde andavam os rapazes. Aproximou-se. O luis, brincalhão, escondeu-se.
O homem quis ver pelos binóculos. Sentiu uma ponta do casaco a ser puxada devagarinho. Soltou um suspiro. Arrepiou-se. Era verdade! Duvidou. Outro puxão no casaco. As bruxas!
Desatou a correr e só parou quando os rapazes desataram a rir às gargalhadas.


domingo, 22 de dezembro de 2019

Menino Jesus







Em casa da minha avó não se fazia presépio. A árvore de natal, muito menos. Nem se sabia que era possível levar um pinheiro para casa e enfeitar. Os enfeites viriam a ser comercializados muitos anos depois da minha meninice.
Havia, sim, um presépio na igreja que admirava sempre que lá íamos. O menino Jesus era levado pelas mãos do Padre António, com carinho embrulhado em rendas, e todos os fiéis, na missa do galo, iam beijá-lo. Cerimónia simples, mas que, eu, pequena, via com enlevo. Cerimónia repetida todos os anos, mas que para mim era sempre a primeira vez.
Os rapazes transportavam um enorme madeiro que ardia no adro todo o tempo das festas natalícias. As mulheres iam lá com uma pá e levavam as brasas acesas para os ferros de engomar. Lá em casa iam buscar, também, para pôr na braseira que à noite nos aquecia os pés.
Aquele enorme braseiro no adro da igreja sempre me fez alguma confusão. Até julgava que seria para assar o galo já que se tratava da missa do galo. E quem dava o galo?  
A minha tia Laura, ainda solteira morava com a mãe, minha avó, é que me explicou que a fogueira tinha a finalidade de aquecer os pobres desprotegidos que ali passavam já que a noite era muito fria.
Mas a figura do Menino Jesus inquietava-me. Então aquele menino só vestia um paninho de renda e não tinha frio? É que a figurinha de barro aos meus olhos de criança era um menino de carne osso.
Tinham-me dito que o Menino Jesus trazia as prendas. Então eu e o meu irmão mais pequeno, íamos colocar o sapato na chaminé do fogão já apagado. No outro dia de manhã lá estavam os presentes que se resumiam a uma caneca de barro, uma mala para a escola ou um casaco.
Ora se as prendas eram trazidas pelo menino Jesus que descia pela chaminé eu tinha de o encontrar. E se o visse? O que lhe iria pedir? Onde trazia as prendas? Eu podia escolher?
Perguntas que todos os anos ficavam sem resposta pois ele mais lesto, ia lá pôr tudo às escondidas. Deixava que todos adormecessem lá em casa e eu, para o encontrar ia pé ante pé, no corredor, para falar com ele. Pois sim! Quando lá chegava já ele tinha passado.
Cheguei a pensar que era maroto e não gostava de mim. Mas se me dava prendas ….. então não lhe era indiferente.
Passaram-se alguns anos e, claro, cresci, obedecendo às leis da natureza. O meu maior desgosto foi quando soube que afinal o Menino Jesus das prendas no sapatinho era a minha tia que lá ia pôr.
Passou muito tempo. Agora fazemos, em minha casa o presépio e a árvore de Natal, enfeitada com festão de cores. Até há um Pai Natal a subir nas escadas.
O Menino Jesus é o que me prende sempre a atenção. Este, que tenho, é lindo. Deram-mo. Tenho-o no meu quarto juntamente com S. José e Maria. Quando, nas noites sem sono, me levanto e olho, imagino - o no presépio na minha terra rodeado de palhinhas. Converso com ele. Conto-lhe porque estou mais triste. Ele sorri. Depois quando me deito e durmo, sonho com a minha avó sentada na mesa redonda com a braseira a aquecer os pés, a minha tia Laura belíssima contadora de histórias que nos fazia “ver” tudo o que contava.
Eram assim os natais na minha terra onde não havia luz elétrica nem água a jorrar das torneiras. O tempo corre, sem sermos capazes de o agarrar. Hoje é um lugar igual a tantos outros que existem por aí.

Natércia Martins



terça-feira, 17 de dezembro de 2019

A menina dança ?




Era quase sempre assim que uma moda se começava a dançar num ritmo calmo com os corpos bem juntinhos e os rostos quase unidos. As mãos seguravam sonhos e fantasias, muitas vezes só na cabeça do rapaz ou da rapariga.
Os bailes dos anos sessenta ou mesmo de setenta eram calmos bem ritmados por uma balada e o cadenciado dos passos no chão da sala.
Fui a muitos desses bailes.
Teria os meus quinze anos quando fomos a um baile de carnaval ao salão do Clube. Teria “bom pé” porque nunca mais parei. Lembro-me tão bem! O rapaz, cujo nome nunca esqueci, também dançava muito bem.
Eramos sempre acompanhadas pelas mães ou irmão. As mães sempre vigilantes não fosse o rapaz atrevido e roubasse um beijinho ao seu par. Era assim nesse tempo.
Havia muitas espécies de bailes. Eu gostava de todos desde que se dançasse.
Na eira do Ti Chico também se faziam. O som da concertina mais ou menos afinada com alguma “fífias” pelo meio, tocava as modas da época. O convívio e a folia reinavam e também havia namoricos que começavam naqueles bailes.
Os rapazes das aldeias vizinhas apresentavam-se para dançar, o que não era bem visto pelos da aldeia e quantas vezes o baile acabava à paulada. Sim porque o rapaz desse tempo fazia-se acompanhar de um cajado que deixava no lado de fora do local do baile.
O meu pai chamava – lhes baile de coça barriga.
Também, na época, se usava o buffet que na maioria das vezes não era mais que uma mesa e copos onde se vendia cerveja e vinho.
Os rapazes bebiam pouco mas juntavam-se ali por perto na conversa. Quando a música começava lá iam eles à procura do par. Muitas vezes o par já era certo e não se dançava com mais ninguém.
Os “pés de chumbo” é que eram uma chatice. Não sabiam dançar e pisavam os pés da rapariga. Uma vez, que me lembre, apanhei um desses pés de chumbo e deixei-o no meio do baile. Chorei muito pois eu gostava dele mas não conseguia dançar.
Não raras vezes as raparigas olhavam como que a escolher o rapaz. Eles também já sabiam e faziam sinal como a marcar o lugar. Os que não viam e vinham à frente levavam “tampa”. Era assim que se dizia.
A rapariga que não dançava ou porque não conseguia par ou mais envergonhada ficava sentada. Chamava- se a isso um “banho de cadeira”.
Alguns bailes que se faziam tinham nome: baile da primavera, baile de carnaval, baile da pinha ou mesmo só baile. Tudo servia para se dançar.
O baile que se fazia à tarde era chamado de chá dançante. Acabava à hora de jantar.
À noite, acabava de manhã quase sempre com marchas onde se faziam comboios com toda a gente a divertir-se. Era sinal que naquele dia, ou noite não havia mais. Hora de rumar a casa.
A rainha do baile era escolhida entre as raparigas mais bonitas. Colocavam uma faixa quase sempre cor-de-rosa.
Também se faziam ao som do gira – discos com discos de vinil. Havia um habilidoso que comandava o som e tinha que colocar a agulha no sítio certo e na pista certa, na música que queria.
Mais tarde já eram abrilhantados por conjuntos com as guitarras elétricas e cabelos à Beatles.
Apareceram os Delfins, Gatos Negros e outras bandas cujo nome já não me lembra.
Mudam-se os tempos e as vontades.
Mas como alguém dizia: o sonho não envelhece.
Hoje fazem-se bailes para gerações mais velhas até mesmo em discotecas. As pessoas mais velhas têm o direito de se divertir, conversar e recordar os seus tempos de juventude.
Quantas dessas pessoas não tiveram a oportunidade e só agora a conseguiram. A cabeça e principalmente as pernas ajudam. E fazem muito bem!
Será que ainda se usa: a menina dança? E porque não?

Natércia Martins



terça-feira, 19 de novembro de 2019

Bocejo


Fome, sono ou …… manha do dono?
O bocejo ou abrir a boca e deixar sair toda a preguiça que se instalou sem pedir licença.
Abrir a boca muitas vezes seguidas pode significar que estamos cansados.
Mas a sabedoria ou cultura popular imprime-lhe outro significado. Claro que o céu ou inferno estão associados. Aliás como em quase tudo o que diz respeito a estes fenómenos, se é que podemos chamar-lhes assim.
Quando eu ou o meu irmão ou mesmo outra pessoa que estivesse por perto da minha mãe e abríssemos a boca muitas vezes era certo e sabido:
__ Estás cheiinha de quebranto!
E lá ia ela com uma jarrinha cheia de água, um pratinho branco e a almotolia de azeite. Então, sem permitir perguntas deixava cair no pratinho que entretanto enchia da água da jarrinha. Deitava três pingos de azeite, ao mesmo tempo que dizia uma oração meio impercetível. Se os pingos do azeite desapareciam repetia-se a operação até os pingos do azeite ficarem redondinhos dentro da água do pratinho branco.  
Pronto! Quebranto tirado.
Antes da minha mãe havia a minha avó Amélia que, em conversa me explicou como “ cortar” o mau olhado ou quebranto Se tínhamos quebranto, isto é, se bocejávamos mais que o normal também nos fazia sentar num banquinho e com a faca do pão, porque tinha o cabo de madeira, passava por cima da nossa cabeça com ela. Dizia o nosso nome e lá vinha a oração, dita em surdina: se tens quebranto, mal de inveja ou soberba, eu te tiro com a faca do pão, com o poder de Deus e da Virgem Maria. Pai Nosso e Avé Maria.
Se a pessoa não estava presente ela fazia cruzes por cima de uma foto dessa pessoa, com a tal faca do pão. E fazia isto cerca de nove vezes. A pessoa que faz, como a “ doente”, se abrem muitas vezes a boca é sinal que o mal está a sair. Se isto acontecer não se preocupe.
A faca com o cabo de madeira simboliza uma adaga. Corta o mal simbolicamente.
As pessoas antigas e muitas vezes analfabetas pensavam que tudo na vida das pessoas era conectado com a religião ou o cosmos. Era a fé que se tinha ou ainda tem que explica (ou não) estas coisas.
Bocejar? Todos bocejamos desde os primórdios do mundo.
Bocejar não é mau nem bom apenas significa um ajuste de energias.
O bocejo indica que temos sono, estamos cansados ou mesmo depois de uma noite bem dormida. É um movimento muscular que se produz tanto nas pessoas como nos animais. Uma vez iniciado é impossível interromper. A pessoa pode fechar a boca mas os músculos estão a ser acionados pelo reflexo.
Pode ser no quentinho da lareira, no inverno, depois de uma sesta no verão, nos dias quentes, com as cegarregas a cantar nos pinheiros. Talvez numa conferência e quando a “ coisa” não nos interessa nada. E quando rezamos? Claro que bocejamos. Involuntariamente mas não deixa de ser um ou uns bocejos.
Talvez não saiba mas os fetos também bocejam dentro do ventre materno.
O bocejo é contagioso? É contagioso mas não como doença. Se uma pessoa começa a bocejar involuntariamente todos bocejam, os que se encontram à sua volta.
E ainda: antigamente pensava – se que se bocejássemos sem pôr a mão na frente da boca, que os diabos entravam no corpo.
Sempre a luta entre anjos e demónios. Como a nossa gente sabe destas cosas. Estas tradições transmitem-se sempre por via oral. De mães para filhas ou avós para as netas. Também quase sempre são as mulheres a via de transmissão.
Mas ainda se ouve ao abrimos a boca: fome, sono ou manha do dono.
Afinal é verdadeiro: se temos fome, bocejamos. Se temos sono bocejamos. Se não temos nada, apenas entediados, bocejamos.

Natércia Martins


sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Aquela máquina




O meu pai chegou a casa, colocou os livros em cima da mesa e disse:
--Comprei aquela máquina!
A minha mãe levantou os olhos da costura que tinha nas mãos, olhou o meu pai, mas não disse nada.
De certeza, coisa boa não seria. Ela era pouco dada a novidades, principalmente vindas do marido.
Ele voltou a dizer: -- trouxe aquela máquina!
Então, mais para fazer a vontade, levantou-se e foi ver.
Era um automóvel. Morris, pequeno e preto. Por azar, ou não, tinha a matrícula AC. Logo lhe chamaram: Antes de Cristo.
Ainda meio desconfiada mirou de todos os lados, abriu uma porta, depois a outra, franziu a testa, coçou o alto da cabeça e sem dizer mais nada declarou:
-- Parece-me bem! Já não precisamos ir a pé como fazíamos.
Sim. Naquele tempo íamos a pé até ao autocarro. Ainda era algum caminho. Levávamos cerca de meia hora.
Mas aquela máquina foi uma boa aquisição. Levou-nos numa primeira viagem a Fátima. Eu teria uns doze ou treze anos. O meu irmão mais novo encaixava-se em qualquer lado. A Fátima, fomos como “sardinha em lata”. Então foi assim: Ia a minha avó Amélia, a minha tia Laura, eu, o meu irmão, a minha mãe e o meu pai. Não se desconfiava que iríamos ter cintos de segurança uns anos mais tarde. Mas o carrinho depois de muito andar, envelheceu!
O meu pai, professor no colégio, não se atrapalhava às primeiras. Quando o motor não queria “pegar” os alunos empurravam até ao cimo da ladeira comigo e ele lá dentro. Depois vinham mais ou menos pendurados até ao fundo da ladeira numa verdadeira galhofa. Para eles era divertido. Eu encolhida lá dentro não lhe achava grande graça. Ah! Para eles era uma verdadeira festa.
Mas os anos passaram. Cresci. O meu irmão também. Cada um de nós rumou às suas vidas noutras instituições de ensino. O meu pai continuava a dar as suas aulas no colégio.
Outos automóveis passaram pelas suas mãos, mas mais nenhum foi “aquela máquina”.
Quando, passados uns anos, tirei a carta de condução passei a conduzir eu os carritos do progenitor.
Até que um dia ….. estacionada à porta da cozinha, estava a verdadeira máquina! Ora se foi !
Um Dois Cavalos! Cinzento, lindo! Carinhosamente batizámos de Latinhas. Aquilo era mesmo só lata!
O que ele aguentou! Conduzido por mim ….. no início de ter carta de condução! A primeira vez que o levei para a escola foi uma verdadeira aventura.
Tinha mudanças. Só tinha três e marcha atrás, alavanca no volante. Capota de lona. Sem blindagem por baixo. Se firmássemos a vista, víamos o alcatrão da estrada. Um tapete colocado no chão era o único luxo.
Uma vez vinha com o meu pai e num dia de calor medonho, uma cobra estendia-se a receber todos os raios solares. Passei por cima. Olhei pelo retrovisor e não vi a cobra, que pensava ter atropelado. Qual quê? O meu pai sem muito alarido, disse-me para olhar para baixo. Parei e a cabeça da cobra já se avistava junto ao acelerador, ou nos travões, ou na embraiagem. Não sei. Saí a correr, mas o trauma da cobra nunca me passou. Nunca mais atropelei nenhuma.
Numa outra vez ia eu na estrada e a minha mãe disse que não queria ir pela principal. Iríamos pela secundária ali ao lado. Sem olhar bem, guinei para onde queria ir. Resultado: Saltei uma barreira com a minha mãe a gritar que nos íamos matar. Mas não matei ninguém e outras aventuras se seguiram E que aventuras!
Aquela máquina, uma verdadeira máquina que morreu de forma inglória de encontro á parede de um vizinho e comigo lá dentro.     
Natércia Martins.