Mala de cartão
Era dia de Reis. Cheguei com
uma mala cheia de roupa e objectos pessoais. Muito pouca coisa. O Carvalho
Araújo atracava no cais no Funchal. Nunca eu pensava que um dia iria para uma
ilha dar aulas. Mas fui. O mar imenso era muito maior que alguma vez poderia
pensar. Eu, que sempre vivi na aldeia, no interior de Portugal nunca tinha
visto um marinheiro. A farda, branca, impecável, tornava os jovens marinheiros
muito mais elegantes e bonitos. Eles eram bonitos. Seriam? Sei lá! Aos olhos de
uma mulher de vinte e poucos anos, eles eram ainda mais bonitos.
O Cais do Funchal, na época,
era o único elo que o ligava ao Continente. O Aeroporto seria inaugurado ainda
comigo por lá. Não havia dinheiro para pagar outro transporte que não fosse o
velho Carvalho Araújo.
Quando desembarquei, já perto
da noite, só vi luzes em fila e mar. Só mar!
Como saio dali? Não fazia a
menor ideia. Apenas se vislumbrava uma ideia. Como nunca gostei de dar “ parte
de fraca” apanhei ali um táxi que me levou a uma pensão cujo nome li, por acaso
num jornal, ainda no barco.
No dia seguinte dirigi-me à
Direcção Escolar para me ser distribuída uma escola. Os professores foram
sempre considerados os parentes pobres do sistema. Já naquela época. Fiquei
contente porque tinha trabalho. Fui no autocarro até um lugar onde me
informaram que teria de sair. Era ali? Claro que não!
À beira da estrada à espera do
autocarro estava uma senhora que pegou as malas do correio.
Fui com ela. Esperava-me uma
vereda de várias horas. Lá ao fundo o mar e o casario. No meio da vereda cavada
na rocha olhei lá para baixo. O mar Sempre o mar! Era eu a nova professora.
A sala de aulas era quase a
minha casa. Não era uma escola tradicional. Instalada num salão de um palácio
semi-abandonado apenas dispunha de um minúsculo quartinho com a cama de ferro e
uma cadeira. Sem água e luz era apenas um
candeeiro de petróleo e um fogareiro lento, velho e ferrugento a mobília
da cozinha. Os pais dos alunos disponibilizaram uma panelita e um prato. Os
talheres comprarei na única venda da aldeia. A venda cuja proprietária era a
Dulcinea tinha tudo. Batatas, feijões, couves, redes de pesca, sabão, azeite e
o correio. O correio era a cópia fiel do livro de Júlio Diniz. A senhora
transformou-se em Bento Portunhas. Abria a mala do correio. Pegava nas cartas
atadas com um cordel. Revirava de um e outro lado. Os olhos das pessoas que
entretanto iam chegando na pressa ou na esperança de notícias de um marido o
filho entretanto emigrado na Venezuela ou Canadá.
Depois desatava as cartas, lia
em silêncio, só para si, cada uma e só depois olhando para a assistência
estendia a mão dando a tão esperada carta. E eu ali, também, esperando carta de
casa. Quando chegava ao fim do maço das cartas as pessoas desanimadas rumavam a
casa cabisbaixos. Talvez amanhã!
Não tinha carros. Não podiam
ir para lá. Havia uma ou duas pessoas que nunca tinham visto um automóvel.
Agora, depois de cinquenta
anos, penso no que podia ter saboreado e me passou ao lado. Saborear o cheiro
do mar que eu via da janela da escola. O mar à noite era medonho, mas lindo. Os
barquinhos de pesca pareciam que se perfilavam lá ao fundo na cortina onde o
céu se une ao mar. As luzes a piscar davam ideia de estradas e os candeeiros a
iluminar a berma. Nas noites de trovoada as faíscas caiam na água dando a ideia
que tudo ia pegar fogo. Quando me convidavam a ir ao “ calhau” á maré das
lapas, caramujos ou caranguejos era uma festa.
Cozidos ali mesmo numa panela
enorme comiam-se ali à mão.
De dia e enquanto dava aulas
as mulheres sentavam-se num banquinho à porta de casa e bordavam. Toalhas
lindas que saiam das suas mãos. Aprendi muito com elas.
Podia ter saboreado as cores
que bordavam o céu ao entardecer. As cores misturam-se como na paleta de
artista. Amarelo, vermelho, azul e roxo. Tudo ali no céu.
O Director podia ter-me dado
uma escola melhor. Pois podia. Mas não deu. Ali fiquei até ao fim do ano com
algumas peripécias pelo meio.
Hoje, com as vivências que
tenho e a idade também, talvez tivesse saboreado de outra forma.
E eu a dormir naquele
quartinho minúsculo enquanto o resto do palácio se encontrava vazio. Um dia
depois das aulas deu-me a curiosidade e abri uma porta que se encontrava no meu
quarto. Os móveis com algum pó e cobertos de lençóis brancos, estilo muito antiquado,
esquecidos no sobrado velho e carunchoso. Os donos viviam na cidade. Desci as
escadas interiores e deparei com a capela. No altar a Pietá de mármore com o
Cristo ao colo, morto, era de uma realidade incrível. Que maravilha! Mas o
arcaz dos paramentos chamou-me a atenção. Com cuidado levantei o tampo para ver
melhor. Os ditos paramentos tinham rendas e bordados feitos certamente pelas
senhoras que moraram ali. Agora, o palácio deserto, apenas cuidado pelo Senhor
Gerónimo, homem já grisalho, que gostava de conversar. Quantas tardes ficámos
ali no pátio do solar a ouvir histórias de baleias e tubarões que, se calhar,
nunca deram à costa.
O Sr. Gerónimo era bom
contador de histórias e ainda me aguçou mais a curiosidade de ver o que havia
dentro do solar e daquele arcaz.
Com o maior cuidado levantei a
tampa de uma caixa que estava no meio dos paramentos. Lá bem no fundo, ainda na
capela. Uma criança mumificada. Quantos anos teriam? Muito, muito antigo! Era
hábito nas ilhas, quando o morgado do solar falecia à nascença, ou pouco mais
tarde, tratavam de forma a mumificar o corpo na capela.
Fugi escada acima com medo.
Nunca mais desci as escadas e muito menos alguém soube que “ visitei” o solar.
Passados quase cinquenta anos
voltei lá. Já fui de automóvel. A senhora Dora já não leva as malas do correio.
O solar sofreu obras. Há um passeio pedonal junto ao “ calhau” onde coziam os
caranguejos, os caramujos e as lapas. Hoje é praia de surfistas.
A escola é num edifício
próprio. Perdeu a magia dos meus vinte e tantos anos ? Não! Apenas evoluiu!!!!
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