O moinho
O meu vizinho, pedreiro de ofício, homem de uma
imaginação fértil, conta histórias de bruxas, lobisomens e pessoas, tão antigas
como o tempo em que se lembra de viver.
O degrau da minha porta
continua a ser uma espécie de esplanada à noite, quando depois de jantar
ficamos na conversa. Hábito já velho. Mas são giras as suas histórias e eu
gosto de o ouvir.
Natural de uma povoação
vizinha é de lá que traz as memórias mais antigas. Depois de sair da escola, o
que naquele tempo era recorrente, começou por ser moleiro como o pai.
Com um macho e a carroça percorria
os campos de Montemor, Arzila, Figueiró do Campo.
Franzino, de pouca idade,ia
fazendo as entregas como podia e sabia.
O moínho, pertença do pai moía
o milho trazido nos sacos e taleigas para serem tranformados em farinha.
Em casa havia broa. Havendo milho, havia broa.
O moínho nunca parava girando
pela força da água que caía em levada pela rampa do rodízio.
A terra é farta de água mas
faltam-lhe já os moínhos que, um a um, se foram calando, pela idade dos
moleiros, que, também, um a um nos foram deixando.
O meu vizinho já não é
moleiro, mas as histórias ainda lhe povoam a cabeça.
Conta que ainda ouve os
rodízios que fazem girar as mós. Sonha com o pai a deitar o milho dentro da
moega e o chamadouro ( ou tangedor) a obrigar o grão a escorregar na quelha até
cair na mó, que mói, transformando o cereal em farinha.
E lá no fundo do moínho, por
entre sacos de farinha e grão espreitava um rato ou vários ratos, porque todos
sabemos que onde há farinha ou grão, há infalivelmente ratos, que matreiros escapam
ao olhar e ouvido apurado dos gatos agachados, mudos, quase mortos de tanta
quietude, prontos a saltar por cima da presa.
As mós rolavam, numa cadência bruta
a moer o milho trazido nas taleigas amontoadas na carroça da mula à espera do
carreto do dia seguinte.
O senhor Augusto, pai do meu
vizinho, foi moleiro desde sempre. Nasceu entre sacos de farinha, de grão e de
mós.
Homem de grande estatura. Com
quase dois metros de altura. Cento e vinte quilos. Broa e sardinha assada no
braseiro da lareira. A acompanhar a sardinha a pingar em cima da fatia grossa
da broa, nos dedos negros, sujos do picão, pois a mó precisava, de vez em
quando, de ser picada De tanto moer, gastava-se.
Mas o meu vizinho, de boa
memória, contou que num dia de Outono, já o campo pedia lavoura, as cegarregas
já se calaram no seu torpor de começar a hibernar. Sentado num saco de milho a
obsrevar o moínho, a mó e a moega, que sem se cansar continuavam no seu labor,
enquanto à frente dentro da gamela de madeira gasta por anos e anos de uso, caía
a farinha numa cadência certa, branca em chuva, pintando tudo em volta da mesma
côr.
Então o Senhor Augusto chamou
a mulher e disse-lhe que no dia seguinte precisava de almoço para ele e quatro
homens que iriam cavar um campo a fim de preparar a terra para semear milho.
Muito bem.
A mulher de estatura franzina,
contrastando com o marido, cozinhava bem e para aqueles dias de gente “de fora” fazia uns petiscos de comer e chorar
por mais.
Ainda de madrugada o bom do Sr
Augusto levantou-se, pegou na enxada ao ombro. Os outros homens levariam as
deles. A terra era grande. Levava o dia inteiro com ele e os quatro homens a
cavar.
Chegou, pegou na enxada e foi
adiantando o trabalho. Em casa o galo cortado em bocados, lourinhos da assadura
no forno, arroz branco, chouriço, pão assim como o vinho no garrafão.
Tudo na cesta grande ao fundo
da terra esperava pela hora de almoço.
Quem transportou tudo isto foi
a “ Ti Maria Fresca” mulher do Sr. Augusto, mãe do meu vizinho.
Enquanto ia pelo caminho,
passou por uma figueira com figos, pingo de mel. Poisou a cesta. Foi aos figos.
Tinha dentes postiços. Como se sabe os figos são inimigos de quem usa este tipo
de dentadura. As bolinhas metem-se nos dentes, por baixo, pelas fendas. A
mulher para se deliciar, tirou a dentadura e deixou-a em cima de umas folhas de
couve. Quando já tinha a barriga cheia de figos, bem procurou os dentes, mas
estes desapareceram, provavelmente levada pelos gatos. Nunca mais teve dentes.
O Sr Augusto cavava, cavava e
os homens que não chegavam ao trabalho. Aliás nunca chegaram. O homem cavou
tudo sozinho. As bagas de suor escorriam-he na nuca, mas ele não parava. Queria
tudo cavado. No fim do dia olhou para a terra toda cavada, com as leiras
direitinhas, sentou-se numa pedra e se tinha cavado tudo sozinho também tinha
direito a comer. Foi o galo, o arroz, o pão, o chouriço e o vinho. Não sobrou
nada do que era para todos.
Deitou-se e dormiu. Amanhã
seria outro dia. O moinho continuaria a moer o milho e a farinha iria cair,
como sempre, na gamela de mdeira em chuva, pintando de branco tudo ao redor,
como sempre. O macho, no pátio, esperava por mais um carreto. Sempre o mesmo
todos os dias.
Natércia Martins
2014