Papa figos
A quinta da minha avó era um
paraíso. Foi lá passada toda a minha infância e adolescência. Com o meu irmão,
mais novo cinco anos, experimentámos tudo o que a natureza nos proporcionou: o
cheiro das maçãs, da erva molhada, do milho acabado de colher, da broa a sair
do forno e partida à mão, com sardinha salgada assada na cinza. O sabor da
fruta fresca ainda pendurada nos galhos verdes das árvores. Os sons do canto
dos pássaros, das ovelhas a pedir agasalho no curral.O sino com o repique
depois do casamento dos meus vizinhos, ou o toque lúgrube do funeral. Não
esqueço o som do sino que ao começar ou findar do dia tocava as três badaladas
das trindades convidando à oração breve.
Viver na aldeia é isto tudo:
Viver os cheiros, os sons e os sabores. Vivi isto tudo na minha infância.
Primeiro com a minha avó. Depois da sua morte os meus pais mudaram-se para a
quinta. Eu por lá fiquei com eles e o meu irmão que sempre me acompanhou até as
nossas vidas se modificarem.
No inverno e a azeitona
espreitava no cimo das oliveiras, davamos uma volta e apanhávamos cogumelos
grandes, castanhos que por lá se chamam gasalhos. O pés das oliveiras eram um
sítio húmido e com algum musgo. Era aí que eles estavam. Nós sabiamos.
A minha mãe, em casa,
fritava-os com ovos. Que petisco!
A minha cabeça é formada por uma amálgama de
cheiros e sons desses tempos. Até o som do silêncio se instalou.
Entre as muitas árvores que
havia na quinta destacavam-se as figueiras. Havia muitas e de várias
qualidades.
Nas férias havia visitas.
Penso que iam para a quinta para fugir do bulício da cidade, dos automóveis e
saborear aquele lugar calmo e rural. Ali não havia mais nada.
Havia, também, as histórias
fantásticas contadas nas noites de inverno, à volta da camilha e uma braseira
no estrado redondo. Hoje a mesa é minha
e quando me sento lá recordo com saudade tanta gente que por ali passou. Meu
Deus! Tanta gente!
Quem gostava de passar uns
tempos na quinta, vindo de Lisboa, era um tio da minha mãe. O tio Augusto. Juiz
desembargador, muito alto e com uma barriga grande e disforme que os meus
primos tinham medo que um dia desse um estoiro. Nunca deu.
Gostava de se sentar na
espreguiçadeira à porta da cozinha. Lá passava tardes inteiras, ora cochilando
em pequenas sestas, ou mesmo preguiçosamente escutando os barulhos próprios da
quinta e dos afazeres dos empregados.
Um dia no meio de um cochilo
passou um criado com uma cesta de figos, lindos, frescos e luzidios. Chamou-o:
__ Anda cá. Dá-me um figo.
O rapaz respondeu pronto,
enquanto pousava a cesta no chão:
__ Sr. Marques. Pode comer à
vontade. É que são para os porcos.
Deu uma gargalhada o meu tio e
comeu mesmo à vontade.
Na quinta havia três figueiras
tão juntas que os ramos se entrelaçavam. Uma dava figos pretos, outra figos “
pingo de mel” e uma outra de qualidade indefenida.
A “ pingo de mel” era a mais
procurada. Cada figo, no fundo, tinha uma lágrima a cair, tão doce que parecia
mel. Daí o nome.
Paraíso dos papa-figos.
Os papa-figos são uma pequena
ave de corpo amareo vivo, asas e cauda preta. Lindos! De canto aflautado,
confundem-se com o estorninho. Também os lá havia.
Os papa-figos pousavam ao de
leve nos ramos verdes da figueira aí pelos finais de Abril ou início de Maio.
Também ficam quando a comida abunda, e enquanto comem os figos a cair de
maduros fazem coros e até concertos com o seu canto. Quando de papo cheio e
godinhos partem em migração para terras de África onde nidificam. No ano
seguinte cá estão de novo.
Mas, como dizia, os papa-figos
pousavam nos ramos da figueira e o meu pai ou o meu irmão, rapaz ainda, pegavam na espingarda de pressão de ar,
sentavam-se à janela da casa velha que servia de palheiro e apontavam ao “
passaroco”. Com um cordão atado ao trinco da porta, abriam –na e a cadela Tany,
corria a trazer –lhes o papa-figos já morto.
Que ricas merendas a minha mãe
fazia depois de depenados e fritos.
E era assim a vida na aldeia
recôndita no meio da serra onde não havia muito mais para fazer.
Nunca consegui fritar um “
gasalho”ou qualquer papa-figo com o
sabor que a minha mãe lhe dava. Porquê ? Não sei. Também já ninguém caça
papa-figos nem a pequena caçadeira é minha A cadela Tany morreu há muitos anos.
A quinta já não é nossa. As figueiras de tão velhas morreram e no seu lugar há
uma vivenda. Já pensei que as mãos das mães dão à comida um sabor especial. Vi,
vezes sem conta a frigideira, no fogão de lenha a borbulhar e os pedaços de
gasalho a ficarem dourados com os ovos trazidos da capoeira, a fervilhar com
bocadinhos de presunto, também trazido da salgadeira do porco morto em Janeiro.
Mais cheiros, sabores e sons
num turbilhão dentro da minha cabeça.
Natércia Martins
2014
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