domingo, 5 de outubro de 2014

Gaitas de capador
A tradição tansformou-se em rotina ou a rotina é que se transformou em tradição.
Lá pela manhã bem cedo os homens juntavam-se na porta da cozinha onde a empregada ou a minha mãe trazia um copo e a garrafa da aguardente, guardada e sempre cheia, no armário da cozinha.
A aguardente feita pelo tempo das vindimas, quando o meu pai, de calças arregaçadas carregava o caldeirão do alambique de cobre com os restos que saiam dos pipos. Não confiava a tarefa da aguardente a ninguém.
A bica feita com uma pequenina peça de pau de oliveira, entalada no cano apenas pingava, e o vapor da borra se transformava em deliciosa aguardente de vinho. Tantas vezes eu ou o meu irmão ficámos de guarda à fogueira que alimentava o alambique.
Lembro-me que pelos meus 17 ou 18 anos tinhamos combinado um bailarico numa aldeia vizinha O tempo não passava e a bica, pingo, pingo. Vai de deitar lenha na fogueira. Fez-se num abrir e fechar de olhos.
Pois! O pior foi a graduação. Fraquinha !
O meu pai não se preocupou muito. Deitou tudo lá para dentro de novo. Agora fazem como deve ser. Lá se foi a festa.
 Seria por isso que os homens gostavam de começar o dia de trabalho na quinta com um copinho cheio? Talvez|
A minha mãe destinou o dia para a matança do porco. Este era tratado e engordado lá em casa com produtos da quinta. Sempre gordos.Muito gordos! O porco era trazido até à eira onde o aguardava o banco próprio, os alguidares para o sangue, a gamela para as tripas e todo o interior. Tudo se aproveitava.
Seguia-se o trabalho inerente à sessão. Porco morto, copo de tinto bebido por cada pessoa que ali estava. As mulheres incluídas.
Depois, já nas lages da eira, chamuscava-se com tojo recolhido na mata uns dias antes. Mais um copo. O que se seguia: lavar, raspar o courato, limpar, tirar as unhas ( a que chamavam castanholas e as raparigas solteiras mandavam, por graça aos rapazes, por alturas do Carnaval, a gozar com eles), fazia-se sempre da mesma forma. Tarefas inerentes às mulheres.
O porco pendurado no chambaril, na trave da adega. Mais um copo. O pipo estava ali mesmo à mão. Pronto! Até ao dia seguinte não havia muito mais a fazer. O meu pai não gostava quando da matança do porco e este já pendurado, a minha mãe, de mansinho, abria a porta e de faquinha na mão retirava bocadinhos, dizia ela, que não faziam falta, mas fritava para o jantar.
No outro dia era o desmanchar, fazer morcelas ( que na minha terra levam canela) cortar a carne e temperar os chouriços, salgar os presuntos. Enfim ! uma data de coisas que na sua maioria já nem me lembro.
A minha mãe andava sempre por perto, pois cada pedaço tinha a sua finalidade. Outrora havia o costume de levar aos vizinhos de mais perto a “ assadura”. Esta consistia em pôr num prato uma morcela, um pedaço de lombo, um rim ( conforme se sabia que a pessoa gostava ou não), figado, entretinho e sangue cozido. Coberto com um paninho, levava-se ao vizinho próximo ou à pessoa importante da aldeia. Dava uma dose de sarrabulho.
O animal já retalhado e cortado para os chouriços Estes ficavam em tempero os dias precisos, De seguida iam para o fumeiro.
Já a minha mãe, sempre ela, tinha rapado, bem rapadinho as costelas, ou entrecosto, que partia em bocadinhos. Infalivelmente havia arroz de entrcosto. Infalivelmente, por alguns anos, o meu pai fartinho de saber como ela deixava os ossos chamava o meu avô, ainda vivo, na altura:
Sr. Guilhermino ! Venha jantar. Temos gaitas de capador!
Ainda hoje, ao entrecosto chamamos gaitas de capador. Já lá vão tantos anos! Já não matamos porco, mas as gaitas de capador, não tão rapadas, em minha casa, subsistem.
E a cabeça do porco ? Tinha a sua função na matança. Um cozido: batatas, couves, nabos, cenouras e a cabeça do porco, faziam as delícias. Dizia-se ir comer a cachola.
Do bucho ainda se faz um cozinhado saboroso. Depois de bem lavado e tratado enche-se com bocadinhos de carne, chouriço, galinha e outras carnes. Cozinha-se e põe-se arroz, sumo de limão e ovos batidos. Vai ao forno a alourar. Acreditem que é um petisco !
Era um regalo chegar ao borralho e ao olhar o fumeiro, os chouriços, as farinheiras ou os paios, enfileirados lá em cima. Certinhos nas varas até ficarem bons para mergulhar em grandes potes de barro cheios de azeite, vindo do lagar, ainda a cheirar a novo. O velho que saía desses mesmos potes e já não servia, era utilizado na “lavagem” para engordar outros porcos.
O mesmo ritual. As mesmas pessoas. Os mesmos utensílios. Tudo igual ano após ano.
No presente nada disto se faz. Até o costume de levar a “ assadura” ao vizinho se perdeu. Mudam se os tempos ! 
Também se mudam os vizinhos !
Costume antigo de aldeia perdida na serra.
Costumes de outros tempos.

Natércia Martins
2014


Sem comentários: