Gaitas de capador
A tradição tansformou-se em
rotina ou a rotina é que se transformou em tradição.
Lá pela manhã bem cedo os
homens juntavam-se na porta da cozinha onde a empregada ou a minha mãe trazia
um copo e a garrafa da aguardente, guardada e sempre cheia, no armário da
cozinha.
A aguardente feita pelo tempo
das vindimas, quando o meu pai, de calças arregaçadas carregava o caldeirão do
alambique de cobre com os restos que saiam dos pipos. Não confiava a tarefa da
aguardente a ninguém.
A bica feita com uma pequenina
peça de pau de oliveira, entalada no cano apenas pingava, e o vapor da borra se
transformava em deliciosa aguardente de vinho. Tantas vezes eu ou o meu irmão
ficámos de guarda à fogueira que alimentava o alambique.
Lembro-me que pelos meus 17 ou
18 anos tinhamos combinado um bailarico numa aldeia vizinha O tempo não passava
e a bica, pingo, pingo. Vai de deitar lenha na fogueira. Fez-se num abrir e
fechar de olhos.
Pois! O pior foi a graduação.
Fraquinha !
O meu pai não se preocupou
muito. Deitou tudo lá para dentro de novo. Agora fazem como deve ser. Lá se foi
a festa.
Seria por isso que os homens gostavam de
começar o dia de trabalho na quinta com um copinho cheio? Talvez|
A minha mãe destinou o dia
para a matança do porco. Este era tratado e engordado lá em casa com produtos
da quinta. Sempre gordos.Muito gordos! O porco era trazido até à eira onde o
aguardava o banco próprio, os alguidares para o sangue, a gamela para as tripas
e todo o interior. Tudo se aproveitava.
Seguia-se o trabalho inerente
à sessão. Porco morto, copo de tinto bebido por cada pessoa que ali estava. As
mulheres incluídas.
Depois, já nas lages da eira,
chamuscava-se com tojo recolhido na mata uns dias antes. Mais um copo. O que se
seguia: lavar, raspar o courato, limpar, tirar as unhas ( a que chamavam
castanholas e as raparigas solteiras mandavam, por graça aos rapazes, por
alturas do Carnaval, a gozar com eles), fazia-se sempre da mesma forma. Tarefas
inerentes às mulheres.
O porco pendurado no chambaril,
na trave da adega. Mais um copo. O pipo estava ali mesmo à mão. Pronto! Até ao
dia seguinte não havia muito mais a fazer. O meu pai não gostava quando da
matança do porco e este já pendurado, a minha mãe, de mansinho, abria a porta e
de faquinha na mão retirava bocadinhos, dizia ela, que não faziam falta, mas
fritava para o jantar.
No outro dia era o desmanchar,
fazer morcelas ( que na minha terra levam canela) cortar a carne e temperar os
chouriços, salgar os presuntos. Enfim ! uma data de coisas que na sua maioria
já nem me lembro.
A minha mãe andava sempre por
perto, pois cada pedaço tinha a sua finalidade. Outrora havia o costume de
levar aos vizinhos de mais perto a “ assadura”. Esta consistia em pôr num prato
uma morcela, um pedaço de lombo, um rim ( conforme se sabia que a pessoa
gostava ou não), figado, entretinho e sangue cozido. Coberto com um paninho,
levava-se ao vizinho próximo ou à pessoa importante da aldeia. Dava uma dose de
sarrabulho.
O animal já retalhado e
cortado para os chouriços Estes ficavam em tempero os dias precisos, De seguida
iam para o fumeiro.
Já a minha mãe, sempre ela,
tinha rapado, bem rapadinho as costelas, ou entrecosto, que partia em
bocadinhos. Infalivelmente havia arroz de entrcosto. Infalivelmente, por alguns
anos, o meu pai fartinho de saber como ela deixava os ossos chamava o meu avô,
ainda vivo, na altura:
Sr. Guilhermino ! Venha
jantar. Temos gaitas de capador!
Ainda hoje, ao entrecosto
chamamos gaitas de capador. Já lá vão tantos anos! Já não matamos porco, mas as
gaitas de capador, não tão rapadas, em minha casa, subsistem.
E a cabeça do porco ? Tinha a
sua função na matança. Um cozido: batatas, couves, nabos, cenouras e a cabeça
do porco, faziam as delícias. Dizia-se ir comer a cachola.
Do bucho ainda se faz um
cozinhado saboroso. Depois de bem lavado e tratado enche-se com bocadinhos de
carne, chouriço, galinha e outras carnes. Cozinha-se e põe-se arroz, sumo de
limão e ovos batidos. Vai ao forno a alourar. Acreditem que é um petisco !
Era um regalo chegar ao
borralho e ao olhar o fumeiro, os chouriços, as farinheiras ou os paios,
enfileirados lá em cima. Certinhos nas varas até ficarem bons para mergulhar em
grandes potes de barro cheios de azeite, vindo do lagar, ainda a cheirar a
novo. O velho que saía desses mesmos potes e já não servia, era utilizado na
“lavagem” para engordar outros porcos.
O mesmo ritual. As mesmas
pessoas. Os mesmos utensílios. Tudo igual ano após ano.
No presente nada disto se faz.
Até o costume de levar a “ assadura” ao vizinho se perdeu. Mudam se os tempos !
Também se mudam os vizinhos !
Costume antigo de aldeia
perdida na serra.
Costumes de outros tempos.
Natércia Martins
2014
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