terça-feira, 26 de outubro de 2010

Era isso !

Como fazia frequentemente, Marta saiu de casa e dirigiu-se ao rio. Gostava de dar um passeio manhãzinha, cedo, ver os raios de sol a entranharem – se por entre os pinheiros . Quando o sol nasce o ar tem um cheiro diferente do resto do dia. O ar é límpido e os sons despertam os nossos sentidos.

As sapatilhas faziam no carreiro de pedras soltas e miúdas “ chap- chap” . Um gafanhoto saltou, despertando Marta dos seus pensamentos.

Lá bem ao fundo no meio do jardim destacava-se a casa de Isabel. Ao passar em frente do grande portão de ferro Marta teve um arrepio como se fosse um choque eléctrico.

Isabel era amiga desde a escola primária. Partilhavama mesma carteira, as mesmas brincadeiras e o lanche era repartido pelas duas, a maior parte das vezes.

Onde estava Marta, estava Isabel.

Amizade sólida. Durante o liceu a amizade nunca arrefeceu. Nos primeiros anos as duas continuavam a brincar e a partilhar os livros,o lanche e as conversas, tanto no recreio como no café.

Os primeiros namorados trouxeram algum distanciamento, uma vez que tanto uma como a outra se quedavam na conversa com os rapazes. No entanto , não passava um dia que as duas raparigas não se encontrassem

Um dia Isabel confidenciou à amiga que o seu namorado lhe dera um beijo. Coisa do outro mundo ! Marta encolheu os ombros com desdém. O namorado dela não passava de uma mão pelo ombro e uma carícia na face. Mas ela queria mais e ele não correspondia à chama que a consumia por dentro. Pensou em o atrair ao rio e aí ela matava o desejo. No entanto ele ia recusando o convite. E ela revoltava-se.

A amiga já não lhe dispensava tanto tempo entretida com o namorado que agora a absorvia.

Marta não gostava. Uma onda de ciúme corroía-a por dentro. Ela não gostava de ver a amiga de mão dada com o namorado e muito menos quando eles se beijavam. Não conseguia explicar o porquê de tanta revolta. No quarto, de noite chorava. Via a amiga nos braços do rapaz. Deixou de estudar e as notas baixaram. Chumbou nos exames. Foi chamada à atenção muitas vezes, tantas como teve que explicar que não tinha nada, mas que os programas eram difíceis e não conseguia saber tudo.

Isabel entrava sempre nos seus sonhos e aí era feliz.

Nos intervalos das aulas procurava saber onde estava Isabel. Tornou-se obsessão. Não via mais ninguém, apenas Isabel, Isabel, só Isabel.

Junto ao rio sentou-se. O marulhar das águas fazia um ruído agradável. Uma rã saltou, como fizera o gafanhoto e Marta sobressaltou-se de novo.

Uma voz interrompeu a quietude das águas.

__ Marta ! Passaste junto a minha casa e não me chamaste !

__ Não. Estavas com o teu namoradinho. Já não me ligas !

Marta sabia que não era bem assim Isabel nunca dexara de a procurar para um café ou contar as suas últimas aventuras. Franziu o sobrolho e riu-se.

__ Não sejas tonta. Vem comigo até minha casa. Ao pegar-lhe na mão estremeceram ambas e um calor abrasador invadiu –lhes os rostos . Era isso !

Entraram na casa vazia de Isabel.

Entrelaçaram as mãos, entraram no quarto e os lábios de ambas tocaram-se ao de leve. Com a ponta do pé Isabel deu um empurrão na porta que se fechou com estrondo ..................

Natércia Martins

2010

sábado, 7 de agosto de 2010

Um acidente



Saí da escola e como de costume, antes de entrar em casa sentei-me no muro do vizinho.

O muro é baixo. A minha casa fica do outro lado Tem uma espécie de banco onde me sento, antes de atravessar a estrada, abrir a porta e entrar num outro mundo, onde me esperam os fillhos, que por sua vez também iam chegando da escola.

Vinha cansada. O dia não tinha corrido muito bem. Sentei-me e uma brisa, passou, ao de leve e desarrumou os meus cabelos, pintalgados já com fios brancos.

Passei a mão a fim de ajeitar os cabelos desalinhados e um arrepio percorreu-me todo o corpo.

Olhei em volta. Tudo calmo, com o calor do início de Verão a fazer cantar as cegarregas nos troncos das árvores, dentro da mata.

A terra fresca e o laguinho com peixes vermelhos que nadavam lá no fundo entre a areia grossa e dourada, saltando em alegres brincadeiras como que a querer sair de dentro de água.

Mais uma brisa desarrumou os meus cabelos.E mais uma vez um arrepio me fez tremer o corpo.

Pelo carreiro que levava à porta de casa, os agapantos, as azáleas, os goivos e as roseiras, regadas de fresco bordavam o caminho.

Como sempre faço, atravessei a rua. Os meus pensamentos voavam e a retropectiva do dia também. As aulas. Os problemas de cada aluno, como se fossem meus.

Sem que me apercebesse, um carro chiou atrás de mim numa travagem a fundo. Um choque brutal atirou-me para a valeta.

Uma escuridão enorme! Vozes que ouvia no meio de muita confusão. Não as conseguia distinguir.

Uma tremenda paz e muitas dores aturdiam-me Não conseguia pensar. Uma ténue luz e uma sensação de bem estar. Nada mais !

Olhei em volta. Deitada na mesa de operações, rodeada de médicos o meu corpo jazia anestesiado.

Olhei. Olhei mais uma vez. Tanta gente que eu conhecia ! Gente que já “ partira” há alguns anos. Outros mais recentemente. Riam e falavam entre eles. Meu Deus, que oportunidade !

Enquanto isto, os médicos operavam e cosiam o que o automóvel esfacelara. Como tinha sido grande o acidente.!

Um dos médicos disse:

__ O coração parou !

Mas eu, sou teimosa não queria ficar por ali.Tinha que acabar de criar os meus filhos e ver os netos nascer.

Uma luz tão brilhante como o sol aproximou-se, transformando-se numa figura imponente. Era velho que me fez recordar o meu pai. Estava acompanhado. Reconheci todos, sorridentes, olhando-me felizes.

Estendeu-me as mãos muito brancas, deu-me um beijo e disse:

__ É hora de regressares. Eu estou sempre ao teu lado. Nunca te abandono. Velo por ti, nas boas e más ocasiões. Pensa sempre que os teus amigos, foram amigos na vida, mas também não te abandonam, mesmo sem dares por isso. Nós estamos sempre presentes.

Regressa à vida !

O médico olhou em volta e exclamou:

__ O coração voltou a bater !

Os médicos acabaram a operação enquanto, lentamente acordava da anestesia. Dores,muitas dores.

A maca atravessou os corredores em direcção à enfermaria. A mesma brisa que sentira antes do acidente passou e fez-me uma leve carícia no rosto.

Apesar das dores, sorri. Que bom. A vida esperava, de novo por mim.

Natércia Martins

2010

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Faz de conta”


Encontrei- me com ele na mesa do café.

Cabelo grisalho e barba de 4 ou 5 dias. Fica-lhe bem aquele aspecto, de um homem de meia idade. Quase bonito. Olhos expressivos e mãos que falam quase tanto como a boca.

Conversava com uma amiga comum. Sentei-me. Com uma gargalhada cumpimentou-me e fez um comentário ao qual nem dei muita importância.

Mãos calejadas, magras e brancas, chamaram-me a atenção. Chamam sempre porque gosto daquelas mãos.

Olhei-o bem de frente, sem ele dar por isso. A minha amiga prendia-lhe a atenção, numa conversa da qual eu não fazia parte. Assuntos deles!

Foi como se o tempo tivesse recuado e vi uma criana magra, franzina, dos seus 9 ou 10 anos, sentado num caixote a comer um pão que tirou do bolso das calças.

A sua história não é a de uma criança que tivesse brincado ao pião, à bola, ao berlinde ou se tivesse deliciado com histórias de livros onde as aventuras fantásticas o esperavam e tivessem feito parte da sua infância.

Pois. ! É que em vez disso, e feito o exame da quarta classe, foi trabalhar numa velha tipografia, onde mal chegava às máquinas.

E o vai-vem da máquina que imprimia, imprimia, imprimia, papel atrás de papel, com ritmo cadênciado. Sempre a mesma cadência ..... E com fome de papel .....

As mãos pequenos do garoto passavam por entre os rolos de ferro, a dar de comer à máquina Sempre a mesma cadência ....

Naquele tempo o oficina parecia enorme e o barulho ensurdecedor. Só papel e tinta preta. Sempre o mesmo. Dia após dia .

De noite enquanto dormia, o matraquear da máquina continuava dentro dos seus ouvidos como se nunca parasse.

O outro dia era igual ao de ontem, de anteontem e será igual ao de amanhã. A fome da máquina, o papel que saía como que vomitado de entre os rolos de ferro.

E as pernas frágeis, por vezes empoleiradas em cima de um caixote, tremiam com o tremer da máquina. Sempre o diabo da máquina a comer e a vomitar papel !!

__ Rapaz, vai buscar papel.

E o rapaz corria, nas suas pernitas frágeis a trazer resmas de papel. E a máquina sempre com fome !

__ Rapaz, vai pôr tinta na máquina !

E o rapaz trazia a tinta preta como carvão em baldes quase do seu tamanho.

__ Rapaz vê se já acabou de imprimir !

Rapaz ! Rapaz ! Rapaz ! Sempre o rapaz !!

Um dia olhou a parede à sua frente e descobriu um calendário . Nunca tinha tido tempo de olhar. O gatinho de olhos azuis sorria-lhe sempre que por lá passava. Sim . O gatinho do calendário. Tinha ali um amigo que lhe sorria. E a máquina com fome de papel e tinta.!!

O dono da tipografia, o Sr Teixeira, sujeito simpático, mas entre atender os clientes e compôr um cartaz, não dava muita atenção, ao pequeno trabalhador.

No entanto quando à tarde a fome se fazia sentir e tirava o pão do bolso, o tal Sr Teixeira, patrão, aí, sim, reparava nele e dizia-lhe:

__ Rapaz, não comas em pé. Senta-te nesse caixote.

Então o menino, espreitava a ver o que a mãe lhe colocara dentro do pãozinho. E nesses curtos momentos sonhava com as figuras que saiam da máquina. Sonhava que saltavam do papel e vinham sentar-se ali junto dele. Faziam-lhe companhia.

Tanto sonhou com os bonecos que via impressos que quis, também ele, fazer parte dessas figuras. Pessoas que fingem situações. Pessoas que “ são “ outras pessoas.

Despem a sua pele para vestir a pele de outra personagem. Vidas de “ faz de conta” Tornou-se actor. E na sua vida de “ faz de conta” transmite aos outros personagens de “ faz de conta”, emoções, raivas, amores, traições, escondendo-se, também ele, nessas mesmas personagens de “faz de conta”.


Natércia Martins

2010

Tromba d’ Eiró

Entrei, de mão dada com a minha tia Laura. Sentei-me lá ao fundo numa cadeira velha. Os pés pendurados porque não chegavam ao chão. As cadeiras eram todas velhas, assim como a barbearia e o seu dono: O tromba d’Eiró.

Nós íamos cortar o cabelo num dos barbeiros da terra. Cabeleireiras, só alguns anos mais tarde. Muito mais tarde...

O tromba d’Eiró, além de velho, era também manco.

A tesoura estalava por cima do pente na cabeça dos clientes.

Dava tesouradas no ar, onde não havia cabelo. Nunca entendi porque razão fazia aquilo. Seria moda ?

A alcunha não sei quem o inventou. Toda a gente o chamava Tromba d’Eiró. Cabeça pequena, no alto do pescoço semelhante a um galo de “ pescoço pelado”, cabelos brancos e muito magro.

Já naqueles tempos, quando eu era pequena, seria nos tempos de agora, uma barbearia unisexo, uma vez que cortava cabelos a homens e mulheres.

A minha tia também se sentou e enquanto lia uma revista, a “ matar” o tempo, o barbeiro ia puxando conversa:

-- Tem chovido muito ! O tempo está mau !

A minha tia ia acenando com a cabeça sem vontade de responder. Eu não tinha voto na matéria. Encolhida na cadeira esperava pacientemente a minha vez.

A barbearia tinha um calendário sujo e com um gatinho deitado num tapete azul. Sim. A barbearia não tinha calendários com mulheres nuas. Era de respeito !

E o Tromba d’Eiró ia tesourando ora no cabelo do cliente, ora no ar.

Eu olhava, admirada com a “ mestria” do artista.

A barbearia ficava situada na rua principal, perto do mercado. Na rua, os passantes, iam olhando e um ou outro, juntamente com um comprimento, também paravam e faziam um comentário. Mas o barbeiro, entretido no corte do cabelo, não dava muita importância.

É que, enquanto nós, cachopos pequenos, não contávamos para o tempo de espera, nem para o lugar que ocupávamos, a menina Laurinha, não ! Essa era fina e havia que lhe prestar mais atenção. Já não seria muito jovem, mas era uma senhora algo bonita e com formas físicas ainda bem proporcionadas. E era a minha tia!

O barbeiro, embora velho e manco, tinha gosto apurado , em relação às suas clientes. O homem tinha bom gosto e a mulher sabia-o. Não saía da barbearia. Mas ele, esperto, mandava-a aos recados. Mandava-a à farmácia ou a qualquer sítio longe.

Enquanto ela ia e vinha com o recado cumprido, ele ia enchendo os olhos com quem lhe aparecia pela loja.

A menina Laurinha era dessas clientes que, quando precisava de cortar o cabelo, dava pretexto para a mulher do Tromba d’Eiró ter de fazer um recado bem longe.

O espelho com as bordas carcomidas pelo tempo, servia, também para reflectir a imagem dos clientes sentados junto à parede.

O balcão onde pousava a navalha, o púcaro da água, o pincel e o sabão “ pinta azul” eramos únicos utensílios usados pelo barbeiro. A tesoura continuava a dar tesouradas ora no cabelo, ora no ar. O pente também girava de um lado para o outro, ligeirinho por entre os dedos do mestre e o cabelo do freguês.

E o Tromba d’Eiró, olhando de soslaio a Laurinha, sentada na cadeira, sem lhe dar grande importância, coisa que o arreliava grandemente.

A barbearia era pequena. O espelho dava a panorâmica de um canto ao outro. O freguês finalmente acabou de ser atendido e uma nuvem de pó de talco inundou-lhe o pescoço. É que o barbeiro entusiasmado apertou com mais força a pequena bomba cheia de pó cheiroso, pensando que poucos minutos depois estaria com a menina Laurinha sob a sua tesoura.

Este pagou e foi embora. Entrei eu. Claro! Uma data de tesouradas e o cabelo lá ficou com umas pontas cortadas e outras mais ou menos. Agora vai-te embora !

Mas a menina Laurinha ! Essa, sim, era já a seguir ! Mas aí tinha que ter mais cuidado.

Colocou a toalha em volta do pescoço, devagarinho, acompanhada de uma data de salamaleques. Afinal não era todos os dias que tinha uma freguesa daquelas.

Penteou, penteou, cortou, penteou, cortou ....

Mais um jeitinho daqui, mais uma tesourada dali e o Tromba d’Eiró foi-se entusiasmando e cortando, cortando. Estava nas nuvens com a cabeça da Laurinha nas suas mãos.

Finalizado o serviço e olhando o espelho, ela soltou um grito de susto.

É que no meio do entusiasmo quase ficou sem cabelo.

Abriu muito os olhos e perguntou aflita:

-- Cortou tão curto ? E agora ?

Ao que o Tromba d’Eiró respondeu sem perder a calma:

-- Agora ? Não se preocupe. É bem de raíz, com o tempo volta a crescer !!

Natércia Martins

2010


Ser criança


Nasci de um minúsculo espermatozóide que se jntou a um óvolo. Fui mais rápido. Mas para isso tive que me esforçar e nadar, nadar. Ser o primeiroa lá chegar.

Depois, no quentinho de um ovo fui crescendo, no escuro da barriga de uma mulher que, sem saber ainda que eu lá estava, já gostava de mim.

É que eu fui desejado e planeado.

Ouvia vozes na rua. A voz da mulher era suave e quente.

Fui crescendo e a barriga avolumando.

De vez em quando ouvia as vozes, sempre vozes meigas fazerem a pergunta:

-- Será menino ou menina ?

E eu, lá dentro da barriga, quentinho, enroladinho, preso pelo cordão umbilical, ao útero da minha mãe.

Que bom ! Não vou sair daqui, nunca ! Pensava eu !

Mas o dia e a hora chegou. Mais uma vez tive que fazer força, muita força para sair por um túnel muito estreito e escuro.

Finalmente, cá fora, levei logo duas palmadas para chorar e assim os meus frágeis pulmões abrirem e eu puder respirar sozinho.

Comecei a outra aventura da minha vida a chorar. Ouvi o meu pai e a minha mãe a rir de felicidade.

Lavaram-me, vestiram-me e deitaram-me junto da minha mãe. Meu Deus, como eu tinha fome e o leite corria quentinho, aconchegando o meu pequeno estômago vazio.

Depois dormi. Dormi muito.

Uns dias mais tarde fui para casa dentro de uma alcofa onde me esperava um quarto cheio de bonecos e uma cama bem cheirosa.

Chorei, ri, estive doente, tive sarampo, tive os dentes a nascer um a um e gatinhei.

Um dia de manhã, descobri que em cima das mesas e armários havia objectos a que eu podia chegar. Que giro ! Olhar por cima da mesa e ver tudo. Os pratos, os copos, o pão .......

Os dias resumiam-se a comer, dormir e brincar.

Finalmente mais outra etapa da minha vida: A escola !

Lá fui, agarrado à mão forte da minha mãe.

Esperava-me a professora. Uma senhora muito maior que eu. De bata branca e óculos no nariz. Trocou algumas palavras com a minha mãe e ainda ouvi: -- Depois venho buscá-lo.

Uma sala enorme me esperava. As mesas e cadeiras, tudo em fila. E um quadro preto, enorme com letras que eu não entendia.

Aquilo não me agradava nada, mesmo nada !

Olhei desconfiado em volta. Afinal não era só eu. Havia mais meninos e meninas. Outra fase da minha vida que se iniciava ali.

Joguei ao berlinde, à bola, rasguei as calças, subi às árvores.

E os dias foram correndo devagar.

Afinal aquilo até era engraçado. Aprender a ler e escrever. Letra a letra, número a número.

Agora sou capaz de ler as aventuras dos livros e tornar-me participante nessas mesmas aventuras.

Esperam-me outras aventuras pela vida fora até crescer, deixar de ser criança e tornar-me numa pessoa realizada e feliz.

Ser criança é o melhor do mundo, mas ser criança não é nada fácil .....


Natercia Martins

2010


Abril



Abril de águas mil

Amanheceu na esperança

De trazer a Primavera

A solidariedade

O perfume dos malmequeres

As gaivotas no ar

E a liberdade


Abril de águas mil

Amanheceu na esperança

Que as fardas trouxessem

Paz

Igualdade

Coragem

Alegria


Abril de águas mil

Trouxe as árvores em flor

O arco-iris da esperança

Apareceu com os cravos vermelhos

Que floriram nos canos das espingardas


Abril de águas mil

Trouxe foguetes

Onde a multidão se juntou

Para aprender o que é democracia

E em cada aniversário

Abril vai nascendo

Um ano, outro ano e mais outro

E em cada ano

Abril de águas mil se renova

Se transforma

Mas Abril será sempre Abril !


Natércia Martins

O locutor de uma rádio de lisboa teve a coragem de transmitir a canção de Paulo de Carvalho: E Depois do adeus.Era essa a senha combinada para que os soldados saissem à rua na esperança que o país se tornasse melhor

O nascimento da democracia era, assim festejado, com foguetes. Chegou a altura de aprender que igualdade entre os cidadãos e a solidariedade, era até ali ignorada por muita gente.

E hoje, passando mais um aniversário, de uma revolução feita de malmequeres, cravos nos canos das espinardas, em vez de balas, fardas de soldados entre a multidão antecipando a Primavera onde o arco-iris pinta as ruas de colorido e alegria.

Quem dera que a gaivota que voava, voava, asas de vento, coração de mar, como a cantiga e o vermelho das papiolas se misturem de novo e tragam o perfume de acalmia a esta terra, e que Abril de águas mil, não tenha sido só uma revolução.



Natercia Martins

2009

domingo, 4 de abril de 2010

Confissão


Luisa chegou e sentou-se no banco comprido, ao fundo da igreja. No local mais escuro, junto ao altar de Santo António.

Virou a cabeça e olhou o Santo. Ele sorriu-lhe com um olhar maroto na face rosada.

Pensou: É hoje. Vou confessar-me.

Uma mulher velha entrou, ajoelhou-se e sem notar na rapariga, puxou o terço de dentro do bolso do avental, desfiando avé-marias e padre-nossos, quase mecânicamente.

Mais uma ou duas velhotas vestidas de luto, velhas “ ratas de sacristia” entraram também.

A rapariga encolheu-se dentro do casaco de malha que ela própria tricotou.

Estava decidida ! Ia mesmo confessar-se.

O coração sobressaltou-se. Bateu como a querer saltar do peito.

O padre entrou, alheio às mulheres que rezavam absorvidas nas orações. Muito menos reparou no vulto sentado perto da imagem do santo.

Depois de uma breve oração abriu a porta do confessionário e entrou.

A primeira mulher levantou-se e ajoelhou na parte de fora do confessionário.

Cochichou alguns pecados e saiu com a penitência do costume. Uma data de avé marias e já estava perdoada.

A segunda, a terceira, outra e mais outra que entretanto também vieram à confissão.

O padre deu um suspiro de saturação Eram sempre os mesmos pecados e as mesmas mulheres. Aquilo era uma chatice !!!

A rapariga lá ao fundo da Igreja, sentada no banco, no escuro ficou sozinha.. A medo levantou-se e dirigiu-se ao confessionário.

Pelos buracos viu um padre jovem e bonito.

Encostou a cara para poder falar à vontade. O padre, habituado aos pecadilhos das velhas não ligou muito. Só levantou a cabeça quando uma voz jovem lhe sussurrou:

__ Padre, perdoe os meus pecados ....

Olhou e viu a rapariga que conhecia vagamente da missa dominical.

Afiou!” a vista e chegou a cara mais perto da parede quase transparente do confessionário. Um olhos negros e pestanas longas, ali mesmo, pertinho.

Perturbou-se. Chegou ainda mais perto. Afinal era um homem igual a tantos outros. Aos outros todos. A sua condição de padre proibia-o de qualquer emoção mais forte.

Quis desviar o olhar, mas não conseguiu.

Olhou mais uma vez. E outra. E ainda mais outra vez.

Não ouviu nada tal foi a emoção que sentiu. Estava ali um anjo, não tinha dúvidas.

Desconfiado olhou em volta para os altares. Algum querubim podia ter-se desprendido e ser ele que ali estava. Mas não !

Aproximou ainda mais a cara da parede cheia de furinhos. Agora ouviam a respiração um do outro. Ofegante.

Quanto tempo ficaram assim ? Nem um nem o outro tiveram consciência disso. Sem nada dizer ela levantou-se do degrau do confessionário e saiu, apenas com uma pequena oração rezada à pressa.

Ele ficou dentro quietinho e mudo à espera que ela saisse da Igreja.

Passou algum tempo sem se voltarem a encontrar.

Um dia, no café, na mesa lá ao fundo, junto à parede de costas, lá estava ela.

Sentou-se na mesma mesa. Pediu um café.

Foi quando reparou que os olhos dele eram verdes-esmeralda. Lindos, lindos, lindos.

A conversa foi banal. Apenas palavras de circunstância e pouco mais.

Os encontros começaram mais frequentes.

No altar, na missa, ele parecia um Deus.

Lá de cima ele olhava-a sempre que precisava de enfrentar a assembleia. Os olhares cruzavam-se. Faiscavam.

Uma tarde quente de Verão, depois de um café, foram andando, lado a lado.As mãos tocaram-se ao de leve. Um arrepiozinho, frio como se uma navalha percorrece toda a coluna vertebral tanto de um como do outro ..... Sentaram-se no banco do jardim. Atraídos deram o primeiro beijo. Queimava !. Mas acharam que era pouco ! Afinal ele era padre, mas tão homem como qualquer outro . ...

A noite era de lua cheia. Iluminava o jardim, as portas e janelas da vila. Entraram na casa dela, quase sem dar por isso.

Quando abriram os olhos, deram-se conta que estavam nus em cima da cama.

Sonho ou realidade ? António estendeu a mão de forma a que o mamilo dela se encaixou entre os dedos. Luisa nem se mexeu. Sonhava ainda.

Já com outras experiências sexuais, aquela foi uma primeira vez especial. Um prazer muito diferente encheu o seu todo. Tinham feito amor os dois. Para ele foi ainda mais diferente. Era a sua “ primeira vez”. Sentiu que os sentidos estavam todos lá. Mais uma vez com todos os sentidos à flor da pele, mas de uma forma agradável, boa, confortante.

Meigo e inteligente, sabia que o facto de estar ali, deitado com as mãos entrelaçadas agora no cabelo dela, seria no mínimo, pecado. Calados, absorvidos, cada um nos seus sentimentos.

Ele nunca tinha visto uma mulher nua. Mas não se intimidou.

A mão voltou a percorrer os seios dela, escorregou pela barriga e veio quedar-se no local próprio cheio de sensualidade. Bonito. Agradável !

Ao tocá-la o coração bateu mais forte, ainda.

Mais uma vez as bocas se uniram num beijo doce e longo. Mais uma vez a sensualidade daqueles corpos unidos, suados e cheios de energia palpitavam de desejo. Mais uma vez fizeram amor, rebelde e sem regras.

Exaustos, quedaram-se.

Foi então, que ele falou:

__ Casa comigo. Fica comigo.

__ Não posso. Esqueceste-te que és padre ? Os teus votos ?

__ Não importa. Eu saio da igreja e procuro emprego.

A conversa ficou por ali.

Já noite alta, ele saiu e foi para casa.

Mais dias, tardes e noites se seguiram sempre com a mesma sofreguidão de amor, luxúria e desejo.

Verão quente ! O Verão é assim Despe as raparigas. E ele olhava para para os ombros nus dela durante a missa, como se ela fizesse parte da própria igreja.

Luisa, lá do fundo olhava os seus olhos verdes e não aguentou mais.

Encheu-se de coragem meteu toda aquela vida dentro de uma caixa e rumou a uma outra cidade. Longe, muito longe. Nunca mais se encontraram. Ficou a recordação que hoje ainda mora no peito de ambos.




Natércia Martins

2009