sexta-feira, 10 de julho de 2009

Desnorte

A palavra Saudades,

É difícil de dizer.

Por vezes fica a amizade

Como gostava de te ver !

É crime sem perdão.

Eu sei! Querer amar-te.

Agora que pouco resta

Da rosa vermelha que me deste

Guardo as pétalas dessa flor

Nas folhas velhas do meu missal.

E tudo rola, com o rolar do tempo !

Eu sei ! Foi pecado sem perdão !

Ideia fugaz do meu viver.

Amar-te, foi pecado sem perdão.

Como gostava de te ver !

Meus sonhos são doida fantasia !

Fugazes, misteriosos, irrealizáveis !

Vivo no meu mundo de poesia

Em redoma de vidros inquebráveis !

Sou rocha firme que não parte !

Sou rude como pedra da ribeira !

As tuas mãos, são pétalas macias

Que afagam minha face envelhecida.

Foste o sonho, a vida, a morte

De meus sonhos, de doidas fantasias

Fugaz sonho ou desnorte ?

Sonhei mais uma vez contigo !

Tenho saudades!

Gostava de voltar a ver-te!

Amei uma ilusão. Uma fantasia !

Amor, beijo a tua face.

Guardei os beijos que me deste

Na palma da minha mão,

Juntos com a fantasia do meu sonho.

Já pouco mais me resta

Da vida que se esvai pouco a pouco.

Mas sonhei contigo !

Eu sei !

Amar-te foi pecado sem perdão !

Natércia Martins

domingo, 5 de julho de 2009

Espertinho

Hoje já ninguém se lembra, mas no início do século passado, as ruas, a que hoje se chama “ a baixinha” de Coimbra, ficavam ao mesmo nivel do rio.

Depois, com as obras da Rua Navarro, ficaram a um nível inferior. E era aí, numa dessas ruas estreitas que a minha avó tinha uma taberna, onde se vendia chafana, ou mesmo só o molho, quando não havia dinheiro para pagar a carne.

Parece que tinha fama de saborosa.

O velho Basófias era navegável e as Barcas Serranas desciam o rio desde Penacova, carregadas de carqueja, azeite e carvão. As recoveiras aproveitavam o transporte e aviavam os recados, as lavadeiras traziam roupa para lavar, ali mesmo na margem e no extenso areal, que na época, o rio, apresentava, estendendo essa mesma roupa, nas grades que ainda hoje lá se encontram, ou no dito areal.

Quando as barcas subiam o rio, levavam de volta as lavadeiras com a roupa já seca.

Contava a minha mãe que a minha avó mandava a criada para a porta da taberna contar as velas das Barcas a fim de saber quantas caçoilas de chanfana tinha que preparar.

Numa tarde de vento e chuva forte, aliás numa tarde de tempestade, a minha mãe foi visitar a mãe dela, minha avó e .... nessa tarde eu nasci . Ao mesmo tempo desabava a chaminé da casa em cima de um tacho de arroz de chouriço, que cozinhava em cima do fogão.

Passados um ou dois dias, lá fomos as duas a caminho da aldeia, na serra, na camioneta da carreira.

E foi na casa da minha avó, numa rua esteita e pequena que eu nasci. Lá em baixo, na taberna, apesar do temporal, a vida continuou sem mais transtornos que o arroz de chouriço desfeito debaixo da chaminé caída.

Aos Domingos, havia música no Parque da Cidade. E era ver algumasvelhotas, rapazinhos e militares a correr para ficar bem à frente da grade do coreto. Não raras vezes a luta por um lugar melhor “ descambava” em zaragata. E apanhava, quem não podia fugir, ou porque as pernas não acompanhavam, ou porque o pânico se instalava , ou simplesmente, não havia tempo de fugir. Numa dessas zaragatas, a minha bisavó foi apanhada. Ela, não perdia uma boa tarde de música no coreto.

Na pressa da fuga perdeu uma chinela. Claro que a minha avó não gostou da “ coisa”. No outro dia foi à esquadra a fim de reaver a chinela. Só tinham encontrado umas asas de um qualquer anjinho de uma qualquer procissão. Foi motivo de risota entre os militares, pois, Coimbra, cidade pequena, na época, todos se conheciam.

As histórias e personagens vão-se entrelaçando entre si. As tristezas, as alegrias e até partidas eram como se de uma família só, se tratasse.

Ali mesmo ao lado da rua onde morava a minha avó havia o Largo doRomal.

Morava lá o “ Perneta”. Tinha uma perna de pau, daí o alcunha. Morava no 1º andar. Como companhia, uma gata amarela. Quando subia a escada de madeira só se ouvia o som cavo da perna de pau a bater nos degraus.

Um dia a gata morreu. O homem desfazia-se em lágrimas de pranto. Juntaram-se as vizinhas e decidiram consolar o pobre homem. Fizeram uma coroa com o material que tinham mais à mão: carqueja. Ficou danado e nem teve dificuldade em descer as escadas atrás delas com a muleta pronta a desabar na primeira que encontrasse.

Tinha a minha avó Catarina um galo lindo. De penas amarelas e pretas. Andava por entre as pernas dos fregueses, sentados em bancos corridos. Comiam chanfana e bebiam vinho.

Lá ao fundo alinhavam-se as pipas cheias do líquido cor de rubi. O meu avô pouco por ali parava. Não gostava ! Tinha outras ocupações. E o galo por ali andava sem incomodar ninguém e também ninguém o incomodava. Migalha aqui, migalha ali, já fazia parte da clientela. O meu avô embora, por vezes arredio, ia-o observando, parecendo prazenteiro e alegre durante o dia. Tudo se modificava à noite. Cambaleava e o rabo cheio de penas enormes, ficava retorcido . A crista vermelha, ficava ainda mais vermelha e tombada. Mau ! Estaria o galodoente ?

Os dias iam correndo. O galo, de vez em quando largava um cócórócó sonoro, de bico aberto apontando ao sobrado onde eu nasci num dia de tempestade. À noite nem força tinha para cantar. O sonante cócórócó saía rouco, esganiçado, desafinado. Não havia resposta para tal transformação.

O meu avô tirou-se de cuidados e espreitou. Então não era que o esperto bicho se colocava debaixo da torneira da pipa e aparava, de bico aberto, o pingo que caía. Claro! À noite a bebedeira era no mínimo .... muito grande.!!!!!!!!!

sábado, 4 de julho de 2009

Café com chocolate


Maria tocou a campaínha do Lar e entrou, depois de um rapaz negro, mas de porte físico bonito, com farda aprumada e limpa, lhe ter aberto a porta.

Entrou e dirigiu-se a um quarto, também limpo, espaçoso e arejado.

Em cima da cómoda, fotografias em molduras brilhantes e uma jarra grande com um ramo de rosas vermelhas.

Um cadeirão de couro preto com uma almofada onde João se acomodava sempre que podia, descansando de longas caminhadas diárias, a ler um livro, prazer do qual não abdicava.

Olhou a visita, que chegava, por entre as lentes grossas que deixavam ver uns olhos cansados, meigos, castanhos e ainda brilhantes. Ficavam mais brilhantes ainda, quando Maria o visitava.

Ela, visita frequente, mas não programada, trazia-lhe de presente alguns mimos, como ele lhes chamava: um frasquinho de doce, um chocolate ou uma caixinha de bombons. Ela sabia, por experiência própria, que os velhos são gulosos. Aquele não fugia à regra.

Como sempre fazia, sentou-se numa outra cadeira de frente à janela, onde um páteo grande deixava antever uma escadaria, cheia de vasos com flores viçosas e frescas cuidadas pelo Senhor José, o jardineiro, também utente daquele Lar. Mas ainda suficiente apto e saudável para poder ocupar-se daquuele trabalho. Fazia-o com o mesmo cuidado e carinho com que tinha tratado da sua horta e do pequeno quintal da sua casa.

Agora sozinho e sem família, recolhera-se ali, tendo como família os outros utentes do lar.

Não gostava de estar fechado, e, então com autorização superior, conseguiu , ali continuar a sua actividade.

Falava com as flores e plantas como em tempo conversava com os filhos e netos.

No patamar ao cimo da escadaria, alinhavam-se cadeiras de verga onde de vez em quando se sentava, imaginando-se acompanhado e conversava com pessoas que não existiam.

João levantou-se abrindo a porta do quarto, com um gesto simples e voz firme, convidou Maria para um pequeno passeio.

Ele sabia que ela gostava de se sentar naquele átrio, naquelas cadeiras de verga, numa conversa simples e bem disposta, olhando os vasos de flores, as plantas verdes e a figura franzina do jardineiro. Aquelas cadeiras convidavam a isso mesmo: conversa !

Quando Maria visitava o Lar, João ganhava outra postura. Raramente convivia com os outros utentes. Lia livros da Biblioteca. Devorava-os uns atrás dos outros. Lia, lia, lia.....

Prazer que nunca deixou. Mas a visita da velha Amiga, dava-lhe um prazer único.

Sentaram-se lado a lado. A mão de Maria pousou no braço do Amigo, escorregou até á mão dele, que levemente estremeceu. Sem que desse a perceber o coração de ambos, bateu com mais intensidade e uma lágrima de saudade escorregou “ marota” por detrás das lentes grossas dele.

Maria, apesar da idade, tinha uma voz doce e suave, como se a idade não tivesse avançado. Ainda conservava alguns traços de juventude longínqua: olhos negros, agora cansados, lábios carnudos e sensuais.

Como gostavam de se ouvir um ao outro !

Desfiavam histórias de factos antigos. Quase sempre os mesmos, repetidos até à exaustão.

Cada um com uma história de vida diferente, mas mesmo assim gostavam de recordar cada um por sua vez.

João, como jornalista, correu mundo atrás de notícias que lhe deram uma projecção de vida, uma experiência e vivênciaque ele nem se apercebeu na época. Agora recorda tudo com lucidez e alguma saudade.

Conheceu locais e com esses locais, mitas mulheres, que também com elas experimentou vivências e culturas extraordinárias, que não esquece. A maioria dessas mulheres, já nem se lembra do nome.

Ela, com vida mais estável nunca saiu da terra que a viu crescer. Casou. Teve filhos e tem netos que adora.

Uma tarde de Setembro, depois de um passeio, no caminho para casa, viu aquela figura que, depois de tantos anos, lhe pareceu conhecida.

Ambos, ao cruzarem-se, no caminho, por entre as árvores que ladeiam o rio, olharam-se e reconheceram-se.

Tantos anos tinham passado !! Seria possível ?

Um abraço enorme, sentido encurtou a distancia temporal entre ambos. E foi assim que se reencontraram naquela tarde de Setembro.

Agora Maria era visita do Lar onde João se acolheu na sua “ reclusão “ forçada.

Ainda sentados no átrio, nas cadeiras de verga, conversavam e recordavam coisas da juventude. Os bailes dançados ao som da música da época: tangos, valsas e mais tarde quando o tempo encurtou as saias das meninas e estas “ voavam” nos braços dos rapazes ao som do Rock. Ainda recordaram, com uma gargalhada sonora quando , bebiam café à noite, na pastelaria e lhe colocavam quadradinhos de chocolate. O chocolate que se derretia, depois na boca deixando um sabor quase de um beijo roubado numa qualquer esquina da rua.

Era já quase noite.

Levantaram-se e devagarinho, como que a fazer “ render o tempo” foram até ao quarto. Eram horas de regressar a casa.

João entrou primeiro e num gesto lento, a deliciar-se, como fazia depois de um café com chocolate, retirou da jarra uma rosa que colocou na mão de Maria.




Natércia Martins

Junho -- 2009