Café com chocolate
Maria tocou a campaínha do Lar e entrou, depois de um rapaz negro, mas de porte físico bonito, com farda aprumada e limpa, lhe ter aberto a porta.
Entrou e dirigiu-se a um quarto, também limpo, espaçoso e arejado.
Em cima da cómoda, fotografias em molduras brilhantes e uma jarra grande com um ramo de rosas vermelhas.
Um cadeirão de couro preto com uma almofada onde João se acomodava sempre que podia, descansando de longas caminhadas diárias, a ler um livro, prazer do qual não abdicava.
Olhou a visita, que chegava, por entre as lentes grossas que deixavam ver uns olhos cansados, meigos, castanhos e ainda brilhantes. Ficavam mais brilhantes ainda, quando Maria o visitava.
Ela, visita frequente, mas não programada, trazia-lhe de presente alguns mimos, como ele lhes chamava: um frasquinho de doce, um chocolate ou uma caixinha de bombons. Ela sabia, por experiência própria, que os velhos são gulosos. Aquele não fugia à regra.
Como sempre fazia, sentou-se numa outra cadeira de frente à janela, onde um páteo grande deixava antever uma escadaria, cheia de vasos com flores viçosas e frescas cuidadas pelo Senhor José, o jardineiro, também utente daquele Lar. Mas ainda suficiente apto e saudável para poder ocupar-se daquuele trabalho. Fazia-o com o mesmo cuidado e carinho com que tinha tratado da sua horta e do pequeno quintal da sua casa.
Agora sozinho e sem família, recolhera-se ali, tendo como família os outros utentes do lar.
Não gostava de estar fechado, e, então com autorização superior, conseguiu , ali continuar a sua actividade.
Falava com as flores e plantas como em tempo conversava com os filhos e netos.
No patamar ao cimo da escadaria, alinhavam-se cadeiras de verga onde de vez em quando se sentava, imaginando-se acompanhado e conversava com pessoas que não existiam.
João levantou-se abrindo a porta do quarto, com um gesto simples e voz firme, convidou Maria para um pequeno passeio.
Ele sabia que ela gostava de se sentar naquele átrio, naquelas cadeiras de verga, numa conversa simples e bem disposta, olhando os vasos de flores, as plantas verdes e a figura franzina do jardineiro. Aquelas cadeiras convidavam a isso mesmo: conversa !
Quando Maria visitava o Lar, João ganhava outra postura. Raramente convivia com os outros utentes. Lia livros da Biblioteca. Devorava-os uns atrás dos outros. Lia, lia, lia.....
Prazer que nunca deixou. Mas a visita da velha Amiga, dava-lhe um prazer único.
Sentaram-se lado a lado. A mão de Maria pousou no braço do Amigo, escorregou até á mão dele, que levemente estremeceu. Sem que desse a perceber o coração de ambos, bateu com mais intensidade e uma lágrima de saudade escorregou “ marota” por detrás das lentes grossas dele.
Maria, apesar da idade, tinha uma voz doce e suave, como se a idade não tivesse avançado. Ainda conservava alguns traços de juventude longínqua: olhos negros, agora cansados, lábios carnudos e sensuais.
Como gostavam de se ouvir um ao outro !
Desfiavam histórias de factos antigos. Quase sempre os mesmos, repetidos até à exaustão.
Cada um com uma história de vida diferente, mas mesmo assim gostavam de recordar cada um por sua vez.
João, como jornalista, correu mundo atrás de notícias que lhe deram uma projecção de vida, uma experiência e vivênciaque ele nem se apercebeu na época. Agora recorda tudo com lucidez e alguma saudade.
Conheceu locais e com esses locais, mitas mulheres, que também com elas experimentou vivências e culturas extraordinárias, que não esquece. A maioria dessas mulheres, já nem se lembra do nome.
Ela, com vida mais estável nunca saiu da terra que a viu crescer. Casou. Teve filhos e tem netos que adora.
Uma tarde de Setembro, depois de um passeio, no caminho para casa, viu aquela figura que, depois de tantos anos, lhe pareceu conhecida.
Ambos, ao cruzarem-se, no caminho, por entre as árvores que ladeiam o rio, olharam-se e reconheceram-se.
Tantos anos tinham passado !! Seria possível ?
Um abraço enorme, sentido encurtou a distancia temporal entre ambos. E foi assim que se reencontraram naquela tarde de Setembro.
Agora Maria era visita do Lar onde João se acolheu na sua “ reclusão “ forçada.
Ainda sentados no átrio, nas cadeiras de verga, conversavam e recordavam coisas da juventude. Os bailes dançados ao som da música da época: tangos, valsas e mais tarde quando o tempo encurtou as saias das meninas e estas “ voavam” nos braços dos rapazes ao som do Rock. Ainda recordaram, com uma gargalhada sonora quando , bebiam café à noite, na pastelaria e lhe colocavam quadradinhos de chocolate. O chocolate que se derretia, depois na boca deixando um sabor quase de um beijo roubado numa qualquer esquina da rua.
Era já quase noite.
Levantaram-se e devagarinho, como que a fazer “ render o tempo” foram até ao quarto. Eram horas de regressar a casa.
João entrou primeiro e num gesto lento, a deliciar-se, como fazia depois de um café com chocolate, retirou da jarra uma rosa que colocou na mão de Maria.
Natércia Martins
Junho -- 2009