quarta-feira, 20 de junho de 2007

O Foguetão


Quando conto aos meus filhos que antigamente, antes do 25 de Abril, não podíamos falar com os rapazes, pois as escolas eram de sexos separados: cada um para seu lado.... eles fartam-se de rir.

O colégio onde estudei era misto Os rapazes num recreio e as raparigas separadas deles por um muro bem alto.

Sempre ouvi que o fruto proibido é o mais apetecido.. Fazíamos malabarismos incríveis só para os ver. Falar-lhes às escondidas. E como era bom uma pequena escapadela até às escadas ou ao corredor ande eles estavam.

Os pequenos namoricos ..... Esses eram também às escondidas. Passávamos papelinhos escritos em folhas arrancadas, de caderno. Até o papel que usávamos tínhamos que dissimular

dentro de cadernos de apontamentos “inocentemente” trocados durante o intervalo das aulas.

Havia uma janelita alta no cima das escadas que era território disputado com “ unhas e dentes”. É que a tal janelita estava estrategicamente colocada para o recreio dos rapazes. Quantas zaragatas, quantas dentadas e unhadas pela disputa da janelita.

Outros tempos ......

-junto ao colégio havia um campo de futebol, para os rapazes, claro !

Nós jogávamos ao mata, bilharda ou outros jogos considerados femininos, mas no recreio oposto.

O Director do colégio era um homem muito rígido. Com os óculos na ponta do nariz parecia que era bruxo

Aparecia sempre quando menos esperávamos. Havia de aparecer quando uma de nós tinha “ conquistado” a dita janela. Que pena ! Tanto trabalho e os rapazes lá em baixo sem nós os podermos olhar.....

De vez em quando, muito raramente, dava-nos autorização para se ir ao campo de futebol. Havia por lá actividades que, mesmo, sem o minimo interesse se agarravam com algum entusiasmo, pela nossa parte. Estavam lá os nossos “ meninos” !!!

Mas a juventude irreverente e imaginativa sempre soube dar as volta às questões. O meu irmão, o Sabe Tudo, O Bolinhas e o Papa lembraram-se de lançar um foguetão. Ainda hoje, quando falo nisto a qualquer um deles, abrem-se num sorriso maroto.

Será que pensaram em gozar com toda a gente ? Se foi isso que pensaram, conseguiram.

A história é assim: um chapéu de chuva aberto, um lençol, e alguns tubos de ensaio cheios de pólvora Só isto ? Pois !!!! E o estratagema para a infiltração no território feminino ?

Elas coseram pacientemente sob a orientação deles as varetas do chapéu ao lençol.


Levou alguns intervalos. Bastantes intervalos, claro. E o dia marcado lá chegou. Cartazes pendurados pelos corredores anunciavam a subida do foguetão.

Primeiro os “ cientistas” e algumas raparigas para recoserem as linhas partidas ou mal cosidas. Depois a população do colégio: professores, empregados e vigilantes.

Montado o cenário levaram algum tempo Havia que criar algum suspense....

Debaixo do chapéu e do lençol em forma de cilindro, o meu irmão ( “boa peça” ) acendeu o tão esperado fósforo e chegou ao tubo da pólvora. Mas em vez do foguetão subir fez um fraco e envergonhado PUM. O lençol e chapéu em fanicos e toda a gente a rir, menos quem tinha sido gozado a sério: o Director do colégio.


Nota: Esta história quase verdadeira passou-se no Instituto Vaz Serra em Cernache de Bonjardim lá para os anos 60

Natércia Martins

terça-feira, 19 de junho de 2007

Carta para TI

É uma carta que nunca vais ler
De tanto cismar nunca me saíste da " cabeça". Há tantos, tantos anos ....
Hoje resolvi dizer o que tenho cá dentro e nunca serei capaz de Te dizer Nunca mais te encontrei e o tempo foi passando ... Hoje acho que é impossível encontrar-te e olhar-Te como fazíamos há um ror de anos ... Lembras-te ?
Éramos muito novos e uma birra fez com que tudo acabasse Estupidez a minha !!!!!
Mas o destino não tinha programado encontrarmos e ficar juntos. Que pena ! O que poderíamos ter feito entretanto !!!!
Teria tido outros filhos e outros netos. Seriam parecidos com quem ? Comigo ? Contigo ? Sei lá !!!!
Ainda guardo algumas cartas e fotografias tuas, no fundo de uma velha caixa de sapatos Se soubessem o que ela tem lá dentro !!!! Um mundo de recordações !!!!
Lembras-te de um livrinho de missa que me ofereceste ? Quero levá-lo comigo quando morrer Sei de cor tudo o que tem dentro As pagelas e uma foto de um Padre Cruz que tu sabias que eu gostava Correm-me as lágrimas pela cara ao escrever esta carta. Deixo-as correr à vontade.
Quando estou sozinha em casa tu fazes-me companhia, tantas vezes . Eu gosto de te recordar como éramos noutros tempos: novos!!!!!
Não poderia morrer sem que tu soubesses como te recordo
E tal como nos nossos tempos envio-te um grande beijo mesmo que seja às escondidas, aliás como o faziamos ........

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Ovos de Anjo




Quando atravessamos a barreira dos cinquenta anos surgem-nos, com mais frequência factos da infância longinqua.

Factos antigos, factos de que nos lembramos vagamente que até parecem tirados de histórias de velhos livros, carregados de poeira, rebuscados no fundo da prateleira mais afastada do nosso conhecimento.

E foi assim, remexendo nos pensamentos que um dia destes dei por mim a reconstituir o velho lagar de azeite perdido algures num recanto quase esquecido da civilização, lá para os lados de uma aldeia do interior profundo do nosso Portugal.

Lembro-me da fornalha acesa durante toda a época da colheita da azeitona. Ardia com toros de oliveira com um brasido que nos fazia lembrar o inferno.

O inferno ? Porquê ? Verdadeiramente ninguém sabia dar uma explicação plausível.

Naquele lugar quentinho sentava-se quem passasse no caminho, num banco de madeira, feito de um toro cortado ao meio.

Mas havia quem tivesse lugar “ cativo”. Era o Abílio. O Abílio era um homem sem idade, sem identidade Abílio Abílio mais nada Nem sequer precisava de sobrenome Era do conhecimento de todos.

Sentava-se ali no primeiro dia de lagaragem vindo sabe-se lá de onde e sem se saber quem o informava que o lagar abria naquele dia..

Só abalava quando o último carvão se apagava. Desaparecia em silêncio tal como chegara, no primeiro dia.

Contava histórias de lobisomens, bruxas, duendes, santos e pessoas.

Eu e o meu irmão ouvíamos essas histórias pensando serem verdadeiras e compondo os factos conforme a nossa imaginação de crianças. Não gostava de ser interrompido. Abria muito os olhos a meter medo. E nós tínhamos medo.

O meu irmão mais pequenito agarrava – se à minha mão ou ao meu vestido a pedir protecção. Coitada de mim que tinha tanto medo como ele. Mas mesmo assim, corríamos para o lagar e ficávamos à espera que começasse a contar as suas histórias fantásticas, enquanto o azeite escorria amarelinho e em fio para dentro da fonte, enquanto as azeitonas eram esmagadas pelas mós e as ceiras com a massa já moída escorria como lágrimas por uma cara sem rosto.

Um dia o meu irmão, depois de uma longa conversa com o Abílio apareceu a correr em casa com dois minúsculos ovos sarapintados de azul, fechados na sua mãozita pequena, de garoto de 4 ou 5 anos

Todo contente correu para a minha mãe e segredou:

-- Mãe. Olha o que o Abílio me deu. São ovos de anjo !

-- De anjo?

-- Sim Se os anjos têm asas com penas porque é que não podem pôr ovos ?



Natércia Martins

domingo, 17 de junho de 2007

Os Zazuinos



Vejo-os passar sempre juntos.

Quase sempre pela uma da tarde ou, então, rente à noite.

Com dois carrinhos de mão, pouco pesados, que o peso trazem eles em sacas de linhagem ou ráfia, empilhados em cima umas das outras, presas com um cordel . Dentro das sacas levam pinhas.

Pinhas dos pinheiros, apanhadas pacientemente, uma a uma. Não sofrem de “ stress” , nunca a paciência lhes faltou à procura das ditas infrutescências.

Faça sol, faça chuva, lá passam eles todos os dias.

As pinhas, essas, vendem-nas a quem as encomenda.

Sustento do pão de cada dia. Conversa fácil de quem tem pouca cultura. Conversa fluente, simples, a falar sempre do mesmo: o monte, as pinhas, os pinheiros.

Sempre os dois. Inseparáveis há um ror de anos. Não tiveram filhos, porque uma operação mal feita lhes roubou esse prazer e a deixou estéril.

Não pedem nada. Aceitam o que lhes dão. Vivem das suas pinhas que vendem barato. O dinheiro apurado, chega para o “ conduto” que os alimenta dia a dia. Vida vivida dia a dia, sem precalços de maior, sem correrias.

Apenas, ele, bebe um “ copito” de vez em quando. Nada de grave. Nada que não se cure com uma soneca. Mas só de vez em quando .... que a vida são dois dias.

O que gosto de ver neles, é a amizade, a companhia que fazem um ao outro. O trabalho simples em conjunto, com tanto valor como um qualquer funcionário de grande empresa.

Cada um faz aquilo para o que está habilitado, ou melhor, cada um faz o que sabe.

Ela carrega um pequeno luxo: duas meias libras em ouro, penduradas nas orelhas.

Brincos bem antigos. Prenda da mãe quando se casou.

Dinheiro amealhado, tostão a tostão, também pacientemente guardado dentro de um porquinho de barro.

Aqui na Carapinheira, toda a gente os conhece.

Da minha parte, apenas esta pequena homenagem à sua amizade ou mesmo ao amor que têm um pelo outro e talvez, eles próprios nem saibam que têm


Natércia Martins






Nota: Numa das minhas idas ao Museu vim a saber que a Dália morreu Era assim que se chamava esta mulher.

Chorei sentida e sem falsa vergonha de o fazer. Afinal era uma pessoa que, de tanto a ver passar, me afeiçoei. Tenho saudades dela.

Que Deus a tenha em bom descanso .