segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O moinho
O meu vizinho, pedreiro de ofício, homem de uma imaginação fértil, conta histórias de bruxas, lobisomens e pessoas, tão antigas como o tempo em que se lembra de viver.
O degrau da minha porta continua a ser uma espécie de esplanada à noite, quando depois de jantar ficamos na conversa. Hábito já velho. Mas são giras as suas histórias e eu gosto de o ouvir.
Natural de uma povoação vizinha é de lá que traz as memórias mais antigas. Depois de sair da escola, o que naquele tempo era recorrente, começou por ser moleiro como o pai.
Com um macho e a carroça percorria os campos de Montemor, Arzila, Figueiró do Campo.
Franzino, de pouca idade,ia fazendo as entregas como podia e sabia.
O moínho, pertença do pai moía o milho trazido nos sacos e taleigas para serem tranformados em farinha.
 Em casa havia broa. Havendo milho, havia broa.
O moínho nunca parava girando pela força da água que caía em levada pela rampa do rodízio.
A terra é farta de água mas faltam-lhe já os moínhos que, um a um, se foram calando, pela idade dos moleiros, que, também, um a um nos foram deixando.
O meu vizinho já não é moleiro, mas as histórias ainda lhe povoam a cabeça.
Conta que ainda ouve os rodízios que fazem girar as mós. Sonha com o pai a deitar o milho dentro da moega e o chamadouro ( ou tangedor) a obrigar o grão a escorregar na quelha até cair na mó, que mói, transformando o cereal em farinha.
E lá no fundo do moínho, por entre sacos de farinha e grão espreitava um rato ou vários ratos, porque todos sabemos que onde há farinha ou grão, há infalivelmente ratos, que matreiros escapam ao olhar e ouvido apurado dos gatos agachados, mudos, quase mortos de tanta quietude, prontos a saltar por cima da presa.
As mós rolavam, numa cadência bruta a moer o milho trazido nas taleigas amontoadas na carroça da mula à espera do carreto do dia seguinte.
O senhor Augusto, pai do meu vizinho, foi moleiro desde sempre. Nasceu entre sacos de farinha, de grão e de mós.
Homem de grande estatura. Com quase dois metros de altura. Cento e vinte quilos. Broa e sardinha assada no braseiro da lareira. A acompanhar a sardinha a pingar em cima da fatia grossa da broa, nos dedos negros, sujos do picão, pois a mó precisava, de vez em quando, de ser picada De tanto moer, gastava-se.
Mas o meu vizinho, de boa memória, contou que num dia de Outono, já o campo pedia lavoura, as cegarregas já se calaram no seu torpor de começar a hibernar. Sentado num saco de milho a obsrevar o moínho, a mó e a moega, que sem se cansar continuavam no seu labor, enquanto à frente dentro da gamela de madeira gasta por anos e anos de uso, caía a farinha numa cadência certa, branca em chuva, pintando tudo em volta da mesma côr.
Então o Senhor Augusto chamou a mulher e disse-lhe que no dia seguinte precisava de almoço para ele e quatro homens que iriam cavar um campo a fim de preparar a terra para semear milho. Muito bem.
A mulher de estatura franzina, contrastando com o marido, cozinhava bem e para aqueles dias de gente “de  fora” fazia uns petiscos de comer e chorar por mais.
Ainda de madrugada o bom do Sr Augusto levantou-se, pegou na enxada ao ombro. Os outros homens levariam as deles. A terra era grande. Levava o dia inteiro com ele e os quatro homens a cavar.
Chegou, pegou na enxada e foi adiantando o trabalho. Em casa o galo cortado em bocados, lourinhos da assadura no forno, arroz branco, chouriço, pão assim como o vinho no garrafão.
Tudo na cesta grande ao fundo da terra esperava pela hora de almoço.
Quem transportou tudo isto foi a “ Ti Maria Fresca” mulher do Sr. Augusto, mãe do meu vizinho.
Enquanto ia pelo caminho, passou por uma figueira com figos, pingo de mel. Poisou a cesta. Foi aos figos. Tinha dentes postiços. Como se sabe os figos são inimigos de quem usa este tipo de dentadura. As bolinhas metem-se nos dentes, por baixo, pelas fendas. A mulher para se deliciar, tirou a dentadura e deixou-a em cima de umas folhas de couve. Quando já tinha a barriga cheia de figos, bem procurou os dentes, mas estes desapareceram, provavelmente levada pelos gatos. Nunca mais teve dentes.
O Sr Augusto cavava, cavava e os homens que não chegavam ao trabalho. Aliás nunca chegaram. O homem cavou tudo sozinho. As bagas de suor escorriam-he na nuca, mas ele não parava. Queria tudo cavado. No fim do dia olhou para a terra toda cavada, com as leiras direitinhas, sentou-se numa pedra e se tinha cavado tudo sozinho também tinha direito a comer. Foi o galo, o arroz, o pão, o chouriço e o vinho. Não sobrou nada do que era para todos.
Deitou-se e dormiu. Amanhã seria outro dia. O moinho continuaria a moer o milho e a farinha iria cair, como sempre, na gamela de mdeira em chuva, pintando de branco tudo ao redor, como sempre. O macho, no pátio, esperava por mais um carreto. Sempre o mesmo todos os dias.
Natércia Martins
2014


domingo, 5 de outubro de 2014

Gaitas de capador
A tradição tansformou-se em rotina ou a rotina é que se transformou em tradição.
Lá pela manhã bem cedo os homens juntavam-se na porta da cozinha onde a empregada ou a minha mãe trazia um copo e a garrafa da aguardente, guardada e sempre cheia, no armário da cozinha.
A aguardente feita pelo tempo das vindimas, quando o meu pai, de calças arregaçadas carregava o caldeirão do alambique de cobre com os restos que saiam dos pipos. Não confiava a tarefa da aguardente a ninguém.
A bica feita com uma pequenina peça de pau de oliveira, entalada no cano apenas pingava, e o vapor da borra se transformava em deliciosa aguardente de vinho. Tantas vezes eu ou o meu irmão ficámos de guarda à fogueira que alimentava o alambique.
Lembro-me que pelos meus 17 ou 18 anos tinhamos combinado um bailarico numa aldeia vizinha O tempo não passava e a bica, pingo, pingo. Vai de deitar lenha na fogueira. Fez-se num abrir e fechar de olhos.
Pois! O pior foi a graduação. Fraquinha !
O meu pai não se preocupou muito. Deitou tudo lá para dentro de novo. Agora fazem como deve ser. Lá se foi a festa.
 Seria por isso que os homens gostavam de começar o dia de trabalho na quinta com um copinho cheio? Talvez|
A minha mãe destinou o dia para a matança do porco. Este era tratado e engordado lá em casa com produtos da quinta. Sempre gordos.Muito gordos! O porco era trazido até à eira onde o aguardava o banco próprio, os alguidares para o sangue, a gamela para as tripas e todo o interior. Tudo se aproveitava.
Seguia-se o trabalho inerente à sessão. Porco morto, copo de tinto bebido por cada pessoa que ali estava. As mulheres incluídas.
Depois, já nas lages da eira, chamuscava-se com tojo recolhido na mata uns dias antes. Mais um copo. O que se seguia: lavar, raspar o courato, limpar, tirar as unhas ( a que chamavam castanholas e as raparigas solteiras mandavam, por graça aos rapazes, por alturas do Carnaval, a gozar com eles), fazia-se sempre da mesma forma. Tarefas inerentes às mulheres.
O porco pendurado no chambaril, na trave da adega. Mais um copo. O pipo estava ali mesmo à mão. Pronto! Até ao dia seguinte não havia muito mais a fazer. O meu pai não gostava quando da matança do porco e este já pendurado, a minha mãe, de mansinho, abria a porta e de faquinha na mão retirava bocadinhos, dizia ela, que não faziam falta, mas fritava para o jantar.
No outro dia era o desmanchar, fazer morcelas ( que na minha terra levam canela) cortar a carne e temperar os chouriços, salgar os presuntos. Enfim ! uma data de coisas que na sua maioria já nem me lembro.
A minha mãe andava sempre por perto, pois cada pedaço tinha a sua finalidade. Outrora havia o costume de levar aos vizinhos de mais perto a “ assadura”. Esta consistia em pôr num prato uma morcela, um pedaço de lombo, um rim ( conforme se sabia que a pessoa gostava ou não), figado, entretinho e sangue cozido. Coberto com um paninho, levava-se ao vizinho próximo ou à pessoa importante da aldeia. Dava uma dose de sarrabulho.
O animal já retalhado e cortado para os chouriços Estes ficavam em tempero os dias precisos, De seguida iam para o fumeiro.
Já a minha mãe, sempre ela, tinha rapado, bem rapadinho as costelas, ou entrecosto, que partia em bocadinhos. Infalivelmente havia arroz de entrcosto. Infalivelmente, por alguns anos, o meu pai fartinho de saber como ela deixava os ossos chamava o meu avô, ainda vivo, na altura:
Sr. Guilhermino ! Venha jantar. Temos gaitas de capador!
Ainda hoje, ao entrecosto chamamos gaitas de capador. Já lá vão tantos anos! Já não matamos porco, mas as gaitas de capador, não tão rapadas, em minha casa, subsistem.
E a cabeça do porco ? Tinha a sua função na matança. Um cozido: batatas, couves, nabos, cenouras e a cabeça do porco, faziam as delícias. Dizia-se ir comer a cachola.
Do bucho ainda se faz um cozinhado saboroso. Depois de bem lavado e tratado enche-se com bocadinhos de carne, chouriço, galinha e outras carnes. Cozinha-se e põe-se arroz, sumo de limão e ovos batidos. Vai ao forno a alourar. Acreditem que é um petisco !
Era um regalo chegar ao borralho e ao olhar o fumeiro, os chouriços, as farinheiras ou os paios, enfileirados lá em cima. Certinhos nas varas até ficarem bons para mergulhar em grandes potes de barro cheios de azeite, vindo do lagar, ainda a cheirar a novo. O velho que saía desses mesmos potes e já não servia, era utilizado na “lavagem” para engordar outros porcos.
O mesmo ritual. As mesmas pessoas. Os mesmos utensílios. Tudo igual ano após ano.
No presente nada disto se faz. Até o costume de levar a “ assadura” ao vizinho se perdeu. Mudam se os tempos ! 
Também se mudam os vizinhos !
Costume antigo de aldeia perdida na serra.
Costumes de outros tempos.

Natércia Martins
2014