A
última viagem
Conhecia –
os vagamente da minha antiga rua. Um dia, entrei naquela casa, não
sei muito bem, qual a força que me impeliu. Foi por instinto
ou talvez uma mão invisível e misteriosa me levasse lá.
Dei por mim a
cuidar de uma família que mal conhecia.
As primeiras
vezes foi-me muito estranho.
A mãe,
senhora de estatura pequena, magra e frágil, suportava,nos
ombros, com força incrível, a vida de filhos tão
diferentes.
Pouco a pouco
fui fazendo parte da família. Qualquer coisa que não
sei explicar me vai empurrando, cada vez mais ali para dentro da
porta.
É como
se uma voz de alguém, que não sei quem é, me
segredasse ao ouvido:
-- Entra. És
lá precisa !
Nada se faz
por acaso. Eu fui entrando.
Há uns
anos jurei que nunca mais abria o coração a ninguém.
Tranquei-o com um cadeado, imune a qualquer tentativa de me deixar
levar pela emoção. Engano meu !
Aquela mão
muito branca com dedos afiados, enlaçando os meus, comeveu-me.
Depois uns olhos meigos, de cachorro escorraçado, fizeram o
resto. Uma voz fininha, meiga, sumida, pediu água. O copo
bateu nos dentes produzindo um tilintar que me percorreu o corpo todo
como se fosse um raio que me atravessou os ossos um a um.
Era um homem
que parecia muito mais velho do que na realidade era. Doente. Muito
doente. Enterrado na cama de lençóis muito brancos e
uma colcha bordada com rosas grandes. Antiga aquela colcha !
Herdada das
mãos habilidosas da mãe, pessoa que até à
minha chegada cuidava dele.
E foi assim
que, sem dar conta, dei por mim a entrar devagarinho naquela casa
antiga, de móveis velhos que fariam as delicias de um qualquer
antiquário.
E eu, sem
querer, ali estava, sentada numa cadeira forrada de palhinha
entrançada, junto a um doente que mal conhecia. Pensei que
fosse um anjo, aliás, parecia um anjo.
A cabeça
e a face muito branca confundiam-se com o branco do lençol.
Delirava.
Perguntou pela
fotografia.
-- Que
fotografia ?
-- A que eu
guardo no bolso do casaco.
Procurei no
bolso do pijama. Não havia nada. Apenas e só um pouco
de cotão.
Não me
lembro de alguma vez lhe ter visto um casaco vestido.
A mãe,
que entretanto entrou no quarto disse-me:
-- Não
lhe ligues. Delira. Pergunta muitas vezes pela fotografia. Mas eu
nunca vi nada.
Fechou os
olhos, parecendo dormitar. Entrou, de novo, no torpor habitual.
Aproveitei
para me levantar e dar uma vista de olhos pelo quarto. Lá ao
fundo, uma velha mala. Tão velha que ao tentar levantá-la
se desmanchou. Um livro, do meio de outros livros, caiu. Lá de
dento saltou uma fotografia, velha, amarrotada e amarelada pelo
tempo. Curvei-me e apanhei-a. Ah ! Aquela era a fotografia que ele
procurava. Era eu ! Rapariga de vinte e tal anos, com vestido curto e
farto “ rabo de cavalo”.
O que estava
ali a fazer ? Como é que a fotografia foi ali parar ? Tudo tão
estranho, como estranho foi o novo contacto com aquela família.
Sentei-me de
novo. Ele dormia agora, com um ligeiro sorriso nos lábios.
Afinal morámos
na mesma rua, em tempos.
Com o rolar do
tempo e a vida que entretanto se modificou, nunca mais nos vimos,
pensava eu. Afinal parece que não terá sio bem assim.
Chegou a noite
e a hora de jantar. A fotografia ficou em cima da mesa de cabeceira.
Iria esperar por momentos de lucidez para lhe fazer a pergunta que
entretanto me “atazanava” a cabeça.
Porque estava
a minha fotografia dentro do livro ? Quem a tirou ?
Quando abriu
os olhos e meio zangada, perguntei:
-- O que é
isto ? Que fotografia é esta ?
-- É
tua. Não te conheces ?
-- Isso eu
sei. Que é minha eu vi !
Uma lágrima
grande rolou – lhe pela face macilenta.
-- Nem
imaginas. Quem tirou essa fotografia fui eu. Deixei de ir ao cinema.
Deixei de comprar pequenas coisas para conseguir o dinheiro para
comprar uma máquina. Segui-te dias a fio. Sem te aperceberes
tirei a foto. Foi a minha companhia em noites quentes de África.
Ao por do sol, olhava o céu e via-te desenhada nas nuvens
coloridas.
Eras a minha
companhia. Em horas mais tristes e saudosas de tudo, cheias de
angustia, lá estavas tu, sorridente no quadradinho de papel.
Escrevi-te cartas que nunca enviei. Fiz poemas que nunca leste. E
agora és tu que vieste tratar-me. Vou fazer a última
viagem da minha vida. Levo-te comigo, mais uma vez.
Fechou os
olhos e partiu ......
Natércia
Martins
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