O
velho solar
Um
solar é uma casa enorme com grandes janelas e grandes salões.
Imagino que assim seja. Nunca lá entrei, mas costumo passar na
estrada onde há um. Tem o brasão de pedra, no alto, por
cima da porta da entrada.
Hoje
está semiabandonado embora os donos o visitem de vez em
quando. Visita rápida porque as vidas profissionais são
na cidade grande.
Imagino-me
lá dentro a dançar ao ritmo de uma orquestra. O salão
grande iluminado por enormes candeeiros com o mestre de cerimónias
a dar as suas ordens. As senhoras vestidas com saias compridas e
blusas de renda Os homens a transpirar dentro das casacas com abas de
grilo e camisas de colarinho engomado. Noite dentro serve-se um chá
e bolinhos feitos na cozinha pelas criadas de farda branca e crista
de renda na cabeça.
Os
quartos de dormir com camas forradas de veludo e dossel de tule
branco.
Lá
dentro a azáfama de criados e criadas a atravessar os
corredores com baixelas de prata na mão a fim de servir os
convidados. Ouvem-se as gargalhadas das pessoas abafadas pelo som da
orquestra que toca valsas, tangos e ritmos variados pela mistura de
novas músicas. Seria assim a vida lá dentro ? Outros
tempos !
Aquele
solar meio abandonado agora não tem vida. O brasão por
cima da porta coberto com um pano preto, indica luto pela morte do
proprietário. Afinal as pessoas foram embora, os criados já
lá não vivem e da orquestra resta um piano de cauda,
velho a um canto do salão.
Uma
pena! Nos quartos de dormir ainda ficaram as camas mas o dossel foi
substituído por teias de aranha. Os ratos tomaram conta da
casa. As tábuas do chão outrora encerado apresentam-se
baças e sem brilho. As pratas e os linhos que compunham os
armários e arcas também já lá não
estão. Mas o pano que cobre o brasão deu ao solar um
cunho de assombrado. Dizem os vizinhos que de noite se ouvem passos a
vaguear pelas salas vazias.
Na
aldeia a imaginação é fértil em casos de
assombração. Este não foge à regra. Tem
almas penadas, correntes a fazer barulho e gargalhadas como que a
gozar com quem se atrever a incomodá-los.
O
meu vizinho é pedreiro e uma imaginação fértil
nestes casos de almas penadas.
Um
dia os donos do solar pediram-lhe que fosse ao telhado porque uma
telha fora do sítio deixava cair umas “ beiras” que
degradavam ainda mais o chão já por si muito velho.
O
homem lá foi. Saiu do trabalho na obra de todos os dias e ao
anoitecer subiu ao telhado. Colocou a telha no lugar, fez mais uns
pequenos arranjos numas outras telhas e saiu pelo jardim passando
pelo portão onde já as roseiras deitavam os ramos por
cima do caminho. Fez-se noite entretanto.
Ao
atravessar o jardim ouviu o piano tocar notas desafinadas. Quem seria
o músico ?
Claro!
Almas do outro mundo ! Correu para a saída enquanto uma mão
invisível lhe arrancou a boina que trazia na cabeça.
Pegou na bicicleta e correu para casa. O piano dentro de casa a tocar
sozinho e ainda lhe arrancaram a boina…..
No
outro dia o pai, moleiro de profissão, passou pela aldeia a
fim de deixar uns sacos de farinha e quando avistou o filho perguntou
o que fazia a boina pendurada na roseira do solar.
O
meu vizinho espantado olhou para a boina na mão do pai e
pensou que afinal quem lha tinha tirado não foi mais que a
roseira. Não levantou a cabeça o suficiente para lhe
passar por baixo. Então e o piano ? Como tocava sozinho ?
Hummmm! Tinha que indagar. Esperou pela noite, porque as almas só
andam de noite, e foi até ao solar.
Entrou
pela cozinha e dirigiu-se ao salão. Precisava tirar as “
coisas a limpo”. Nem era medroso e quem quer que fosse tinha que se
mostrar. Sentou-se muito quietinho num banco e esperou. O piano
começou a tocar mais desafinado. Abeirou-se e ninguém.
Com
cuidado levantou a tampa do teclado. Ninguém, mas uma ratazana
saiu de lá a correr fazendo uma escala quase perfeita no velho
piano de cauda que outrora servira para abrilhantar os bailes. O meu
vizinho verificou que afinal os “ fantasmas” existem e de que
maneira !
Natércia
Martins
2012
2 comentários:
Finalmente um texto novo! Fico à espera de mais.
Cumprimentos,
Luís
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