segunda-feira, 31 de maio de 2010

Faz de conta”


Encontrei- me com ele na mesa do café.

Cabelo grisalho e barba de 4 ou 5 dias. Fica-lhe bem aquele aspecto, de um homem de meia idade. Quase bonito. Olhos expressivos e mãos que falam quase tanto como a boca.

Conversava com uma amiga comum. Sentei-me. Com uma gargalhada cumpimentou-me e fez um comentário ao qual nem dei muita importância.

Mãos calejadas, magras e brancas, chamaram-me a atenção. Chamam sempre porque gosto daquelas mãos.

Olhei-o bem de frente, sem ele dar por isso. A minha amiga prendia-lhe a atenção, numa conversa da qual eu não fazia parte. Assuntos deles!

Foi como se o tempo tivesse recuado e vi uma criana magra, franzina, dos seus 9 ou 10 anos, sentado num caixote a comer um pão que tirou do bolso das calças.

A sua história não é a de uma criança que tivesse brincado ao pião, à bola, ao berlinde ou se tivesse deliciado com histórias de livros onde as aventuras fantásticas o esperavam e tivessem feito parte da sua infância.

Pois. ! É que em vez disso, e feito o exame da quarta classe, foi trabalhar numa velha tipografia, onde mal chegava às máquinas.

E o vai-vem da máquina que imprimia, imprimia, imprimia, papel atrás de papel, com ritmo cadênciado. Sempre a mesma cadência ..... E com fome de papel .....

As mãos pequenos do garoto passavam por entre os rolos de ferro, a dar de comer à máquina Sempre a mesma cadência ....

Naquele tempo o oficina parecia enorme e o barulho ensurdecedor. Só papel e tinta preta. Sempre o mesmo. Dia após dia .

De noite enquanto dormia, o matraquear da máquina continuava dentro dos seus ouvidos como se nunca parasse.

O outro dia era igual ao de ontem, de anteontem e será igual ao de amanhã. A fome da máquina, o papel que saía como que vomitado de entre os rolos de ferro.

E as pernas frágeis, por vezes empoleiradas em cima de um caixote, tremiam com o tremer da máquina. Sempre o diabo da máquina a comer e a vomitar papel !!

__ Rapaz, vai buscar papel.

E o rapaz corria, nas suas pernitas frágeis a trazer resmas de papel. E a máquina sempre com fome !

__ Rapaz, vai pôr tinta na máquina !

E o rapaz trazia a tinta preta como carvão em baldes quase do seu tamanho.

__ Rapaz vê se já acabou de imprimir !

Rapaz ! Rapaz ! Rapaz ! Sempre o rapaz !!

Um dia olhou a parede à sua frente e descobriu um calendário . Nunca tinha tido tempo de olhar. O gatinho de olhos azuis sorria-lhe sempre que por lá passava. Sim . O gatinho do calendário. Tinha ali um amigo que lhe sorria. E a máquina com fome de papel e tinta.!!

O dono da tipografia, o Sr Teixeira, sujeito simpático, mas entre atender os clientes e compôr um cartaz, não dava muita atenção, ao pequeno trabalhador.

No entanto quando à tarde a fome se fazia sentir e tirava o pão do bolso, o tal Sr Teixeira, patrão, aí, sim, reparava nele e dizia-lhe:

__ Rapaz, não comas em pé. Senta-te nesse caixote.

Então o menino, espreitava a ver o que a mãe lhe colocara dentro do pãozinho. E nesses curtos momentos sonhava com as figuras que saiam da máquina. Sonhava que saltavam do papel e vinham sentar-se ali junto dele. Faziam-lhe companhia.

Tanto sonhou com os bonecos que via impressos que quis, também ele, fazer parte dessas figuras. Pessoas que fingem situações. Pessoas que “ são “ outras pessoas.

Despem a sua pele para vestir a pele de outra personagem. Vidas de “ faz de conta” Tornou-se actor. E na sua vida de “ faz de conta” transmite aos outros personagens de “ faz de conta”, emoções, raivas, amores, traições, escondendo-se, também ele, nessas mesmas personagens de “faz de conta”.


Natércia Martins

2010

Tromba d’ Eiró

Entrei, de mão dada com a minha tia Laura. Sentei-me lá ao fundo numa cadeira velha. Os pés pendurados porque não chegavam ao chão. As cadeiras eram todas velhas, assim como a barbearia e o seu dono: O tromba d’Eiró.

Nós íamos cortar o cabelo num dos barbeiros da terra. Cabeleireiras, só alguns anos mais tarde. Muito mais tarde...

O tromba d’Eiró, além de velho, era também manco.

A tesoura estalava por cima do pente na cabeça dos clientes.

Dava tesouradas no ar, onde não havia cabelo. Nunca entendi porque razão fazia aquilo. Seria moda ?

A alcunha não sei quem o inventou. Toda a gente o chamava Tromba d’Eiró. Cabeça pequena, no alto do pescoço semelhante a um galo de “ pescoço pelado”, cabelos brancos e muito magro.

Já naqueles tempos, quando eu era pequena, seria nos tempos de agora, uma barbearia unisexo, uma vez que cortava cabelos a homens e mulheres.

A minha tia também se sentou e enquanto lia uma revista, a “ matar” o tempo, o barbeiro ia puxando conversa:

-- Tem chovido muito ! O tempo está mau !

A minha tia ia acenando com a cabeça sem vontade de responder. Eu não tinha voto na matéria. Encolhida na cadeira esperava pacientemente a minha vez.

A barbearia tinha um calendário sujo e com um gatinho deitado num tapete azul. Sim. A barbearia não tinha calendários com mulheres nuas. Era de respeito !

E o Tromba d’Eiró ia tesourando ora no cabelo do cliente, ora no ar.

Eu olhava, admirada com a “ mestria” do artista.

A barbearia ficava situada na rua principal, perto do mercado. Na rua, os passantes, iam olhando e um ou outro, juntamente com um comprimento, também paravam e faziam um comentário. Mas o barbeiro, entretido no corte do cabelo, não dava muita importância.

É que, enquanto nós, cachopos pequenos, não contávamos para o tempo de espera, nem para o lugar que ocupávamos, a menina Laurinha, não ! Essa era fina e havia que lhe prestar mais atenção. Já não seria muito jovem, mas era uma senhora algo bonita e com formas físicas ainda bem proporcionadas. E era a minha tia!

O barbeiro, embora velho e manco, tinha gosto apurado , em relação às suas clientes. O homem tinha bom gosto e a mulher sabia-o. Não saía da barbearia. Mas ele, esperto, mandava-a aos recados. Mandava-a à farmácia ou a qualquer sítio longe.

Enquanto ela ia e vinha com o recado cumprido, ele ia enchendo os olhos com quem lhe aparecia pela loja.

A menina Laurinha era dessas clientes que, quando precisava de cortar o cabelo, dava pretexto para a mulher do Tromba d’Eiró ter de fazer um recado bem longe.

O espelho com as bordas carcomidas pelo tempo, servia, também para reflectir a imagem dos clientes sentados junto à parede.

O balcão onde pousava a navalha, o púcaro da água, o pincel e o sabão “ pinta azul” eramos únicos utensílios usados pelo barbeiro. A tesoura continuava a dar tesouradas ora no cabelo, ora no ar. O pente também girava de um lado para o outro, ligeirinho por entre os dedos do mestre e o cabelo do freguês.

E o Tromba d’Eiró, olhando de soslaio a Laurinha, sentada na cadeira, sem lhe dar grande importância, coisa que o arreliava grandemente.

A barbearia era pequena. O espelho dava a panorâmica de um canto ao outro. O freguês finalmente acabou de ser atendido e uma nuvem de pó de talco inundou-lhe o pescoço. É que o barbeiro entusiasmado apertou com mais força a pequena bomba cheia de pó cheiroso, pensando que poucos minutos depois estaria com a menina Laurinha sob a sua tesoura.

Este pagou e foi embora. Entrei eu. Claro! Uma data de tesouradas e o cabelo lá ficou com umas pontas cortadas e outras mais ou menos. Agora vai-te embora !

Mas a menina Laurinha ! Essa, sim, era já a seguir ! Mas aí tinha que ter mais cuidado.

Colocou a toalha em volta do pescoço, devagarinho, acompanhada de uma data de salamaleques. Afinal não era todos os dias que tinha uma freguesa daquelas.

Penteou, penteou, cortou, penteou, cortou ....

Mais um jeitinho daqui, mais uma tesourada dali e o Tromba d’Eiró foi-se entusiasmando e cortando, cortando. Estava nas nuvens com a cabeça da Laurinha nas suas mãos.

Finalizado o serviço e olhando o espelho, ela soltou um grito de susto.

É que no meio do entusiasmo quase ficou sem cabelo.

Abriu muito os olhos e perguntou aflita:

-- Cortou tão curto ? E agora ?

Ao que o Tromba d’Eiró respondeu sem perder a calma:

-- Agora ? Não se preocupe. É bem de raíz, com o tempo volta a crescer !!

Natércia Martins

2010


Ser criança


Nasci de um minúsculo espermatozóide que se jntou a um óvolo. Fui mais rápido. Mas para isso tive que me esforçar e nadar, nadar. Ser o primeiroa lá chegar.

Depois, no quentinho de um ovo fui crescendo, no escuro da barriga de uma mulher que, sem saber ainda que eu lá estava, já gostava de mim.

É que eu fui desejado e planeado.

Ouvia vozes na rua. A voz da mulher era suave e quente.

Fui crescendo e a barriga avolumando.

De vez em quando ouvia as vozes, sempre vozes meigas fazerem a pergunta:

-- Será menino ou menina ?

E eu, lá dentro da barriga, quentinho, enroladinho, preso pelo cordão umbilical, ao útero da minha mãe.

Que bom ! Não vou sair daqui, nunca ! Pensava eu !

Mas o dia e a hora chegou. Mais uma vez tive que fazer força, muita força para sair por um túnel muito estreito e escuro.

Finalmente, cá fora, levei logo duas palmadas para chorar e assim os meus frágeis pulmões abrirem e eu puder respirar sozinho.

Comecei a outra aventura da minha vida a chorar. Ouvi o meu pai e a minha mãe a rir de felicidade.

Lavaram-me, vestiram-me e deitaram-me junto da minha mãe. Meu Deus, como eu tinha fome e o leite corria quentinho, aconchegando o meu pequeno estômago vazio.

Depois dormi. Dormi muito.

Uns dias mais tarde fui para casa dentro de uma alcofa onde me esperava um quarto cheio de bonecos e uma cama bem cheirosa.

Chorei, ri, estive doente, tive sarampo, tive os dentes a nascer um a um e gatinhei.

Um dia de manhã, descobri que em cima das mesas e armários havia objectos a que eu podia chegar. Que giro ! Olhar por cima da mesa e ver tudo. Os pratos, os copos, o pão .......

Os dias resumiam-se a comer, dormir e brincar.

Finalmente mais outra etapa da minha vida: A escola !

Lá fui, agarrado à mão forte da minha mãe.

Esperava-me a professora. Uma senhora muito maior que eu. De bata branca e óculos no nariz. Trocou algumas palavras com a minha mãe e ainda ouvi: -- Depois venho buscá-lo.

Uma sala enorme me esperava. As mesas e cadeiras, tudo em fila. E um quadro preto, enorme com letras que eu não entendia.

Aquilo não me agradava nada, mesmo nada !

Olhei desconfiado em volta. Afinal não era só eu. Havia mais meninos e meninas. Outra fase da minha vida que se iniciava ali.

Joguei ao berlinde, à bola, rasguei as calças, subi às árvores.

E os dias foram correndo devagar.

Afinal aquilo até era engraçado. Aprender a ler e escrever. Letra a letra, número a número.

Agora sou capaz de ler as aventuras dos livros e tornar-me participante nessas mesmas aventuras.

Esperam-me outras aventuras pela vida fora até crescer, deixar de ser criança e tornar-me numa pessoa realizada e feliz.

Ser criança é o melhor do mundo, mas ser criança não é nada fácil .....


Natercia Martins

2010


Abril



Abril de águas mil

Amanheceu na esperança

De trazer a Primavera

A solidariedade

O perfume dos malmequeres

As gaivotas no ar

E a liberdade


Abril de águas mil

Amanheceu na esperança

Que as fardas trouxessem

Paz

Igualdade

Coragem

Alegria


Abril de águas mil

Trouxe as árvores em flor

O arco-iris da esperança

Apareceu com os cravos vermelhos

Que floriram nos canos das espingardas


Abril de águas mil

Trouxe foguetes

Onde a multidão se juntou

Para aprender o que é democracia

E em cada aniversário

Abril vai nascendo

Um ano, outro ano e mais outro

E em cada ano

Abril de águas mil se renova

Se transforma

Mas Abril será sempre Abril !


Natércia Martins

O locutor de uma rádio de lisboa teve a coragem de transmitir a canção de Paulo de Carvalho: E Depois do adeus.Era essa a senha combinada para que os soldados saissem à rua na esperança que o país se tornasse melhor

O nascimento da democracia era, assim festejado, com foguetes. Chegou a altura de aprender que igualdade entre os cidadãos e a solidariedade, era até ali ignorada por muita gente.

E hoje, passando mais um aniversário, de uma revolução feita de malmequeres, cravos nos canos das espinardas, em vez de balas, fardas de soldados entre a multidão antecipando a Primavera onde o arco-iris pinta as ruas de colorido e alegria.

Quem dera que a gaivota que voava, voava, asas de vento, coração de mar, como a cantiga e o vermelho das papiolas se misturem de novo e tragam o perfume de acalmia a esta terra, e que Abril de águas mil, não tenha sido só uma revolução.



Natercia Martins

2009