Não sei muito bem como, mas dei por mim longe dos meus irmãos. Tentei gritar e chamar, mas o lugar onde me encontrava era tão quentinho e macio, que adormeci.
Quanto tempo ali estive, não sei. Acordei com o barulho de um portão a abrir e o ladrar de um cão.
__ Mau ! Um cão !
Ouvi uma voz grossa de homem dizer:
__ Quietinho, Fiel !!! Tem cuidado porque hoje trago uma prenda aqui dentro do bolso. Vai ser a alegria dos meninos.
Mais uma porta se abriu e o barulho de vozes fez-se ouvir:
__ Avô, avô trazes uma prenda ?
__ Sim. Não sei se vão gostar.
Uma mão grande agarrou-me com cuidado e tirou-me do bolso. Era uma bolinha preta, pequenina com dois olhitos assustados, assim na palma da mão.
Todos gritaram de alegria:
__ Um gatinho !
Pois era ! Um gatinho muito pequenino, preto, de olhitos castanhos e orelhas tão pequeninas que nem se viam.
Afinal era eu a prenda que o avô trazia. Foi uma algazarra. Todos queriam dar – me um nome. Surgiram sugestões: Óscar, Bolinha, Pantufa, Tareco..... Todos os gatos se chamam tareco. Era um nome muito corriqueiro.
Não havia consenso .... Foi, então que a avó sentada num velho cadeirão decidiu:
___ Não se vai chamar nada disso ! Vai ser Tobias.
E fiquei Tobias.
Brincava no colo dos meninos e dormia em almofadas. Quando podia dar uma escapadela era na cama do Joãozito. Macia, quentinha, com almofadas de cores garridas. O colo do avô era uma delícia. Aconchegava-me nas suas pernas e as mãos grandes que me trouxeram para casa faziam-me festas . E eu gostava tanto !
Nos dias quentes de verão a janela era o meu lugar preferido. O sol fazia desenhos na parede. Pareciam passaritos a voar. E eu aos saltos tentava agarrá-los.
Fui crescendo e os meninos também cresceram. Fiz-me um gato grande, luzidio, com uma vida de rei. Afinal eu passei a ser o rei daquela casa. Comia bem e dormia nos melhores lugares..Quando o Fiel espreitava lá para dentro de casa querendo entrar logo lhe diziam:
_ Aqui não há lugar para cães. E eu olhava-o a gozar com ele.
Um dia, estavam todos reunidos, sentados à mesa e ouvi dizer
_ Para a semana vamos de férias.
Férias ? Nunca tinha ouvido falar em férias. Não fazia a menor ideia do que seriam férias.
Os dias foram passando e não via mudanças na casa. Afinal as férias, não poderiam ser nada de anormal. Isso era o que eu pensava .....
No tal dia de início das férias, carregaram o carro com malas, malinhas e sacos Eu também fui ao colo. Já não cabia no bolso do avô. Só que o avô não ia lá. Sem que eu desse por isso, o avô falecera. Como as coisas mudaram!
Lá longe abriram a porta do carro e deixaram-me ali, no chão. Eu que nunca tinha andado na rua Era mimado como um rei, comia boa comidinha, dormia nas almofadas ou nas camas !
Fiquei quietinho, triste, a ver o automóvel a distanciar-se cada vez mais. Perdi-o de vista.
_ E agora ? Pensei.
Não conhecia nada nem ninguém. Quis entrar por uma porta aberta, mas enxotaram-me como faziam ao Fiel, lá em casa.
Cheio de fome e frio dormi na terra fria de um vaso, com uma flor a servir de teto.
Alguém caridoso deu-me de comer. Ao menos alguém teve pena de mim e fez-me festas, mas também se foi embora.
O dia chegou ao fim. Fui andando e descobri um barracão. Ali não chovia e o frio era menos.
Já aconchegado num monte de palha, ouvi barulho perto. As orelhas ficaram alerta. Um rato passou e viu-me. Olhou com medo que eu lhe saltasse para cima e o matasse. Mas eu nunca fizera isso. Chamei-o.
_ Eu sou o Tobias e tenho medo, fome e frio.
_ Olha, Amigo. Aqui cada um por si. Tens que ir à vida. Procura !
Então pensei que todo o tempo que passei dentro de casa tinha sido inútil. Afinal era um prisioneiro daquela gente, sem vontade, molengão, mimado.
Agora, sim Tenho toda a liberdade de fazer o que muito bem me apetece. Posso correr atrás dos pássaros, das rãs, molhar os pés nos charcos. Como onde posso, chamam-me“ bicho”subo às árvores e até faço medo aos ratos. Um dia um cão vadio correu atrás de mim Levantei a cauda e o dorso a fazer-me grande
Sem querer troquei toda a vida de luxo pela minha liberdade !
Natércia Martins
Dezembro -- 2008
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
terça-feira, 23 de setembro de 2008
As lagaradas
Sentada no degrau da minha casa à conversa com o homem mais idoso da aldeia, veio à lembrança as lagaradas que se faziam no lagar, entre o transportar, esmagar, caldar, e medir o azeite.
A exclamação AH ! Saiu-lhe com um misto de saudade e recordação.
Os olhos, velhos e cansados ganharam um brilho que já lhe não via há muitos anos. Participou em muitas.
Lá para meados de Novembro iniciava-se a safra da azeitona.
Varejar era tarefa dos homens. As mulheres tinham como ocupação , diga-se em abono da verdade , bem pesada de estender os panos ou mantas, debaixo das oliveiras.
Depois, de joelhos, escolhiam as folhas ou ainda curvadas apanhavam os bagos que iam caindo fora.
As azeitonas migravam dentro de sacos de linhagem grossa às costas, para a tulha e mais tarde esperava-as a vaza, onde as mós, pesadas e movidas por um macho, as esmagavam transformando os bagos pretos, luzidios em massa preta e feia.
E o lagareiro gritava lá para o fundo do lagar:
__ Olha o bacalhau que se queima !
E o rapaz corria ligeiro junto da fornalha onde a água borbulhava a ferver
Lá em baixo, junto ao brasido assava o “ fiem amigo”, comprado no dia anterior, na venda do Migalhas.
Posto a demolhar num velho regador que por ali andava, com pouco uso, já.
As batatas dentro da borralha assavam devagarinho. Várias cebolinhas pequeninas , trazidas da celha onde repousavam outras maiores. As pequenas é que eram boas.
E o lagar continuava a trabalhar, numa vagarosa tranquilidade.
Um ou outro passante entrava e aquecia-se à fornalha, bebia uma caneca de café que também o havia sempre, na cafeteira preta do fumo e do calor, pousada na trempe, também dentro da fornalha. Depois ia embora.
E o lagareiro voltava a gritar, agora, junto da prensa:
__ Olha o bacalhau que já cheira !
O moço do lagar corria a tirar as batatas e o bacalhau assado. Sacudia os pedacinhos queimados. Para dentro de um alguidar grande, de barro, ia esborrachando com as mãos calejadas e sujas da cinza e do azeite, as batatinhas, a cebola e desfiava o bacalhau. Cortava os alhos. Colocava -os num púcaro com muito azeite que tirava da “ fonte” ou tarefa e fervia tudo. Findo isto, despejava tudo por cima das batatas e do bacalhau.
Com dois paus de loureiro mexia o cozinhado.
Agora todos os trabalhadores do lagar, paravam o serviço e sentados em volta da mesa comiam de dentro do alguidar.
Acompanhavam com broa cozida à tarde. Ainda quente.
Os mais “ sabidos” escolhiam o bacalhau e deixavam as batatas.
Bebiam um “ copo” acompanhar. Iam molhando pedacinhos de pão no azeite que ficava no fundo do alguidar. Tão bom !
Eram assim as lagaradas há uns bons anos atrás, no lagar da minha avó.
Agora permitam-me um comentário:
__ Ainda bem que não havia ASAE, nesse tempo !
Natércia Martins
Setembro de 2008
A exclamação AH ! Saiu-lhe com um misto de saudade e recordação.
Os olhos, velhos e cansados ganharam um brilho que já lhe não via há muitos anos. Participou em muitas.
Lá para meados de Novembro iniciava-se a safra da azeitona.
Varejar era tarefa dos homens. As mulheres tinham como ocupação , diga-se em abono da verdade , bem pesada de estender os panos ou mantas, debaixo das oliveiras.
Depois, de joelhos, escolhiam as folhas ou ainda curvadas apanhavam os bagos que iam caindo fora.
As azeitonas migravam dentro de sacos de linhagem grossa às costas, para a tulha e mais tarde esperava-as a vaza, onde as mós, pesadas e movidas por um macho, as esmagavam transformando os bagos pretos, luzidios em massa preta e feia.
E o lagareiro gritava lá para o fundo do lagar:
__ Olha o bacalhau que se queima !
E o rapaz corria ligeiro junto da fornalha onde a água borbulhava a ferver
Lá em baixo, junto ao brasido assava o “ fiem amigo”, comprado no dia anterior, na venda do Migalhas.
Posto a demolhar num velho regador que por ali andava, com pouco uso, já.
As batatas dentro da borralha assavam devagarinho. Várias cebolinhas pequeninas , trazidas da celha onde repousavam outras maiores. As pequenas é que eram boas.
E o lagar continuava a trabalhar, numa vagarosa tranquilidade.
Um ou outro passante entrava e aquecia-se à fornalha, bebia uma caneca de café que também o havia sempre, na cafeteira preta do fumo e do calor, pousada na trempe, também dentro da fornalha. Depois ia embora.
E o lagareiro voltava a gritar, agora, junto da prensa:
__ Olha o bacalhau que já cheira !
O moço do lagar corria a tirar as batatas e o bacalhau assado. Sacudia os pedacinhos queimados. Para dentro de um alguidar grande, de barro, ia esborrachando com as mãos calejadas e sujas da cinza e do azeite, as batatinhas, a cebola e desfiava o bacalhau. Cortava os alhos. Colocava -os num púcaro com muito azeite que tirava da “ fonte” ou tarefa e fervia tudo. Findo isto, despejava tudo por cima das batatas e do bacalhau.
Com dois paus de loureiro mexia o cozinhado.
Agora todos os trabalhadores do lagar, paravam o serviço e sentados em volta da mesa comiam de dentro do alguidar.
Acompanhavam com broa cozida à tarde. Ainda quente.
Os mais “ sabidos” escolhiam o bacalhau e deixavam as batatas.
Bebiam um “ copo” acompanhar. Iam molhando pedacinhos de pão no azeite que ficava no fundo do alguidar. Tão bom !
Eram assim as lagaradas há uns bons anos atrás, no lagar da minha avó.
Agora permitam-me um comentário:
__ Ainda bem que não havia ASAE, nesse tempo !
Natércia Martins
Setembro de 2008
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
Este não vai ser mais uma historieta das minhas. Poderá vir a ser parte de algumas histórias mais. Só hoje vi um comentário á minha história O FOGUETÂO.
Se o Amigo Hermenegildo vir esta mensagem gostava que me enviasse um mail para Mnatercia@gmail.com
Lembro-me muito bem do alcunha YSTRICHC. Eu sou filha do Ten Mendes Nunes que era professor de matemática
Um abraço
Natercia Nunes Martins
Se o Amigo Hermenegildo vir esta mensagem gostava que me enviasse um mail para Mnatercia@gmail.com
Lembro-me muito bem do alcunha YSTRICHC. Eu sou filha do Ten Mendes Nunes que era professor de matemática
Um abraço
Natercia Nunes Martins
terça-feira, 24 de junho de 2008
O segredo
Foi meu aluno os quatro anos da escola primária. Lembro-me dele, no primeiro dia de aulas. Olhitos redondos, pretos com pestanas longas.
Agarrado às saias da mãe como que a pedir protecção. Nas sua ingénua ignorância sabia que os dias seriam passados ali, naquela sala grande, enorme, com duas janelas de caixilhos vermelhos e uma porta também enorme. A professora, que não conhecia de lado nenhum, também não lhe inspirava confiança. Nunca me tinha visto. Sabia que a mãe iria embora para casa mas ele iria ficar aquele dia e muitos mais ......
Foi o seu primeiro estender de asas. Outros tempos e outros estender de asas se iriam seguir pelos anos adiante.
Inteligente, começou a descobrir outros amigos, companheiros de brincadeiras e de estudo. Aprendeu a ler num instante. Fazia contas e problemas com facilidade. Pontual e aplicado.
Curioso, perguntava, sempre que não sabia.
Assim se passaram três anos. Sempre bom aluno.
De repente começou a chegar tarde à escola. Cada dia mais tarde.
Mandei chamar a mãe O que se passava ? A mãe também não sabia. Disse-me que saia da casa sempre à mesma hora Mandava-o como de costume de bata branca, lancheira com o almoço, e malita às costas. Mas chegava tarde, muito tarde. Onde seria que ele andava ?
A casa também começou a chegar cada vez mais tarde. A mãe pensou que ficasse na brincadeira pelo caminho. Mas não. Mistério a resolver....
O tempo foi passando. Distraído nos trabalhos. Errava problemas simples, não se esforçava em nada e até os desenhos eram feitos de forma descuidada. Seguramente havia alguma coisa que o distraía. Disse aos amigos que tinha um segredo. Não o desvendou a ninguém por mais que insistissem.
A Mãe, um dia seguiu-o, sem ele dar conta. Saiu de casa e dirigiu-se a uma laranjeira que havia entre a casa e a escola. A mala dos livros no chão e ele empoleirado num galho.
Sorria de satisfação com os olhitos pretos a brilhar.
Era um ninho e lá dentro dois ovitos sarapintados de azul .
Passou a vigiá-los. Embebecido ia espreitar todos os dias e ficava a olhar o ninho com os ovinhos lá dentro. Ali ficava esquecido do tempo que passava sem ele dar conta.
Um dia deu-se o milagre. Quando chegou ao ninho viu dois passaritos que esperavam ansiosos de biquito aberto. Ali estava o seu segredo !
A mãe, chamou-o. Com o dedo indicador nos lábios fez sinal de silêncio. Ninguém poderia interromper aquela magia.
Já na escola contou que, um dia, pelo caminho, de manhã, viu dois passaritos com palhas no bico que se dirigiam à laranjeira.
Curioso como era, foi espreitar. Era o começo do ninho. Viu entrelaçar e transportar penas
Um dia estava um ovo No outro dia mais um.
Esperou, pacientemente a ver o que acontecia. Tinha um segredo que não contaria a ninguém Era só seu. Até ao dia que os passaritos nasceram. Continuou a espreitar. Gostava de ver o vai vem dos pais trazer comida àqueles biquitos sempre abertos à espera.
Mas a desilusão também chegou. Um dia de manhã foi espreitar O ninho vazio fez adivinhar o inevitável ....
Entre soluços com choro alto e sentido contou o seu grande desgosto.
Tinham deixado o ninho .Também eles estenderam as asas até ali frágeis e foram à sua vida procurando outro ninho numa outra laranjeira alimentando outros biquitos abertos e esfomeados.
Natércia Martins
25/6/2008
Agarrado às saias da mãe como que a pedir protecção. Nas sua ingénua ignorância sabia que os dias seriam passados ali, naquela sala grande, enorme, com duas janelas de caixilhos vermelhos e uma porta também enorme. A professora, que não conhecia de lado nenhum, também não lhe inspirava confiança. Nunca me tinha visto. Sabia que a mãe iria embora para casa mas ele iria ficar aquele dia e muitos mais ......
Foi o seu primeiro estender de asas. Outros tempos e outros estender de asas se iriam seguir pelos anos adiante.
Inteligente, começou a descobrir outros amigos, companheiros de brincadeiras e de estudo. Aprendeu a ler num instante. Fazia contas e problemas com facilidade. Pontual e aplicado.
Curioso, perguntava, sempre que não sabia.
Assim se passaram três anos. Sempre bom aluno.
De repente começou a chegar tarde à escola. Cada dia mais tarde.
Mandei chamar a mãe O que se passava ? A mãe também não sabia. Disse-me que saia da casa sempre à mesma hora Mandava-o como de costume de bata branca, lancheira com o almoço, e malita às costas. Mas chegava tarde, muito tarde. Onde seria que ele andava ?
A casa também começou a chegar cada vez mais tarde. A mãe pensou que ficasse na brincadeira pelo caminho. Mas não. Mistério a resolver....
O tempo foi passando. Distraído nos trabalhos. Errava problemas simples, não se esforçava em nada e até os desenhos eram feitos de forma descuidada. Seguramente havia alguma coisa que o distraía. Disse aos amigos que tinha um segredo. Não o desvendou a ninguém por mais que insistissem.
A Mãe, um dia seguiu-o, sem ele dar conta. Saiu de casa e dirigiu-se a uma laranjeira que havia entre a casa e a escola. A mala dos livros no chão e ele empoleirado num galho.
Sorria de satisfação com os olhitos pretos a brilhar.
Era um ninho e lá dentro dois ovitos sarapintados de azul .
Passou a vigiá-los. Embebecido ia espreitar todos os dias e ficava a olhar o ninho com os ovinhos lá dentro. Ali ficava esquecido do tempo que passava sem ele dar conta.
Um dia deu-se o milagre. Quando chegou ao ninho viu dois passaritos que esperavam ansiosos de biquito aberto. Ali estava o seu segredo !
A mãe, chamou-o. Com o dedo indicador nos lábios fez sinal de silêncio. Ninguém poderia interromper aquela magia.
Já na escola contou que, um dia, pelo caminho, de manhã, viu dois passaritos com palhas no bico que se dirigiam à laranjeira.
Curioso como era, foi espreitar. Era o começo do ninho. Viu entrelaçar e transportar penas
Um dia estava um ovo No outro dia mais um.
Esperou, pacientemente a ver o que acontecia. Tinha um segredo que não contaria a ninguém Era só seu. Até ao dia que os passaritos nasceram. Continuou a espreitar. Gostava de ver o vai vem dos pais trazer comida àqueles biquitos sempre abertos à espera.
Mas a desilusão também chegou. Um dia de manhã foi espreitar O ninho vazio fez adivinhar o inevitável ....
Entre soluços com choro alto e sentido contou o seu grande desgosto.
Tinham deixado o ninho .Também eles estenderam as asas até ali frágeis e foram à sua vida procurando outro ninho numa outra laranjeira alimentando outros biquitos abertos e esfomeados.
Natércia Martins
25/6/2008
sexta-feira, 11 de abril de 2008
Vida no Castelo
Aquele castelo sempre me fascinou.
Erguido no cimo do monte, logo que se atravessa o grande portão de entrada, somos transportados a tempos medievais.
Do cimo das muralhas, os arrozais a perder de vista, entrecortados pelo verde escuro dos salgueiros e o rio que os atravessa.
A vila, no sopé, foi-se avolumando com o casario até lá abaixo, no fundo do monte.
Antigamente, o rio zangava-se e transbordava alagando tudo, transformando os terrenos em enorme lago lamacento e castanho. As pessoas acostumadas já não estranhavam. Limitavam-se a levar os seus haveres para pisos superiores das habitações e os animais, lá para cima, em abrigos no monte.
Quando o rio baixava, os detritos que ficavam depositados tornavam a terra ainda mais rica e fértil.
Sento-me numa pedra no cimo da muralha, numa tarde ensolarada de Domingo, quando resolvi dar uma volta por lá: ao castelo de Montemor-o-Velho..
Delicio-me olhando as verdes marinhas semeadas de arroz e milho que em Setembro se transformam em loiras searas com ceifeiras enormes que parecem formigas, vistas lá do alto, ziguezagueando por entre as espigas.
Castelo povoado de lendas, onde se mistura o fantástico com o real, de tal forma que nos faz acreditar que um dia podia ter acontecido.
A lenda de Abade João é prova disso, ou mesmo a lenda das Arcas da fortuna e da peste. Há quem acredite que enterradas nas muralhas se encontram duas arcas de pedra. Uma cheia de ouro e outra cheia de peste. Só que ninguém se atreveu a abrir a tampa de nenhuma delas com medo que em vez de ouro saia lá de dentro miséria, doença e peste.
A lenda de Abade João também se conta por ali, com laivos de verdade.
Ao tempo do Abade João, o castelo foi cercado por forças do califa de Córdoba, comandadas por um cristão renegado: Garcia Ibanhez Zuleima.
Em número superior, os combatentes do castelo deliberaram dar morte a todos os que ficaram, degolando-os, incluindo as esposas e filhos para que não fossem martirizados, caso perdessem a batalha.
Assim sendo, lutaram com tanta raiva que venceram. E foi aí que se deu o milagre. Os familiares dos defensores do castelo foram a correr esperar os vencedores com as cabeças repostas no seu lugar. Ainda hoje, a imagem de Nossa Senhora da Vitória tem uma cicatriz vermelha no pescoço, na Igreja local, que evoca o milagre.
E vou ficando a olhar o pôr do sol, para o lado da Figueira da Foz. O Sol quase mergulha no horizonte, transformando o céu numa paleta de cores. Uma cegonha sobrevoa a minha cabeça à procura do ninho, algures numa velha chaminé. As garças procuram alimento no sapal onde uma lontra espreita por entre a folhagem das canas.
Ouço barulho e assusto-me. Olho para trás e vejo soldado medieval. Cota de malha em ferro e sandálias de couro.
Meu conhecido ? Não !!!!
Olhou-me e sem se assustar perguntou o que fazia eu ali. Disse-lhe que gostava de olhar a paisagem do cimo das ameias. E ele ? Que fazia ali ? Disse-me que morava ali com a mulher e os filhos.
Mais barulho. Ao fundo e em grupo vinham soldados vestidos da mesma maneira e apressavam-se a subir a ladeira empedrada da entrada. Um senhor vestido com túnica vermelha, montado num cavalo, seguia na frente. Uma dama e as suas aias vieram esperá-lo com risinhos e alegria.
Desmontou do cavalo. Nem olhou para mim, nem estranhou as minhas calças de ganga e máquina fotográfica. Com o meu amigo guerreiro fui andando pela relva, rumo às traseiras da Igreja de Alcáçova, antigo cemitério.
Era já noite. Andavam por ali umas mulheres estranhas Traziam roupa preta e dançavam tendo no meio da roda uma enorme fogueira que elevava as chamas para o céu.
Descobriram-me e fizeram-me dançar com elas, nunca me deixando sair Ora puxava uma, ora puxava outra E eu dancei, dancei ... Já quase manhã, uma a uma foram desaparecendo, deixando-me sozinha . Aninhei-me ainda mais no ombro do meu amigo.
O castelo fervilhava de gente estranha, todos vestidos da mesma forma.
Das chaminés das casas saía o fumo das lareiras acesas e no ar o cheiro da panela da sopa que fervia, temperada com um bom naco de presunto ou toucinho.
Uma cavalgada e um cavaleiro apressado gritava
__ Deixem-me passar ! Fui ao Afonso comprar umas espigas doces para a minha mulher que está de esperanças E lá foi a galope com as caixas debaixo do braço, a caminho de casa.
Eu desci as escadas até à vila e ao volante do meu automóvel nem sei se sonhei ou se o castelo se encheu de vida naquele dia.
Natércia Martins
11 /04/2008
Erguido no cimo do monte, logo que se atravessa o grande portão de entrada, somos transportados a tempos medievais.
Do cimo das muralhas, os arrozais a perder de vista, entrecortados pelo verde escuro dos salgueiros e o rio que os atravessa.
A vila, no sopé, foi-se avolumando com o casario até lá abaixo, no fundo do monte.
Antigamente, o rio zangava-se e transbordava alagando tudo, transformando os terrenos em enorme lago lamacento e castanho. As pessoas acostumadas já não estranhavam. Limitavam-se a levar os seus haveres para pisos superiores das habitações e os animais, lá para cima, em abrigos no monte.
Quando o rio baixava, os detritos que ficavam depositados tornavam a terra ainda mais rica e fértil.
Sento-me numa pedra no cimo da muralha, numa tarde ensolarada de Domingo, quando resolvi dar uma volta por lá: ao castelo de Montemor-o-Velho..
Delicio-me olhando as verdes marinhas semeadas de arroz e milho que em Setembro se transformam em loiras searas com ceifeiras enormes que parecem formigas, vistas lá do alto, ziguezagueando por entre as espigas.
Castelo povoado de lendas, onde se mistura o fantástico com o real, de tal forma que nos faz acreditar que um dia podia ter acontecido.
A lenda de Abade João é prova disso, ou mesmo a lenda das Arcas da fortuna e da peste. Há quem acredite que enterradas nas muralhas se encontram duas arcas de pedra. Uma cheia de ouro e outra cheia de peste. Só que ninguém se atreveu a abrir a tampa de nenhuma delas com medo que em vez de ouro saia lá de dentro miséria, doença e peste.
A lenda de Abade João também se conta por ali, com laivos de verdade.
Ao tempo do Abade João, o castelo foi cercado por forças do califa de Córdoba, comandadas por um cristão renegado: Garcia Ibanhez Zuleima.
Em número superior, os combatentes do castelo deliberaram dar morte a todos os que ficaram, degolando-os, incluindo as esposas e filhos para que não fossem martirizados, caso perdessem a batalha.
Assim sendo, lutaram com tanta raiva que venceram. E foi aí que se deu o milagre. Os familiares dos defensores do castelo foram a correr esperar os vencedores com as cabeças repostas no seu lugar. Ainda hoje, a imagem de Nossa Senhora da Vitória tem uma cicatriz vermelha no pescoço, na Igreja local, que evoca o milagre.
E vou ficando a olhar o pôr do sol, para o lado da Figueira da Foz. O Sol quase mergulha no horizonte, transformando o céu numa paleta de cores. Uma cegonha sobrevoa a minha cabeça à procura do ninho, algures numa velha chaminé. As garças procuram alimento no sapal onde uma lontra espreita por entre a folhagem das canas.
Ouço barulho e assusto-me. Olho para trás e vejo soldado medieval. Cota de malha em ferro e sandálias de couro.
Meu conhecido ? Não !!!!
Olhou-me e sem se assustar perguntou o que fazia eu ali. Disse-lhe que gostava de olhar a paisagem do cimo das ameias. E ele ? Que fazia ali ? Disse-me que morava ali com a mulher e os filhos.
Mais barulho. Ao fundo e em grupo vinham soldados vestidos da mesma maneira e apressavam-se a subir a ladeira empedrada da entrada. Um senhor vestido com túnica vermelha, montado num cavalo, seguia na frente. Uma dama e as suas aias vieram esperá-lo com risinhos e alegria.
Desmontou do cavalo. Nem olhou para mim, nem estranhou as minhas calças de ganga e máquina fotográfica. Com o meu amigo guerreiro fui andando pela relva, rumo às traseiras da Igreja de Alcáçova, antigo cemitério.
Era já noite. Andavam por ali umas mulheres estranhas Traziam roupa preta e dançavam tendo no meio da roda uma enorme fogueira que elevava as chamas para o céu.
Descobriram-me e fizeram-me dançar com elas, nunca me deixando sair Ora puxava uma, ora puxava outra E eu dancei, dancei ... Já quase manhã, uma a uma foram desaparecendo, deixando-me sozinha . Aninhei-me ainda mais no ombro do meu amigo.
O castelo fervilhava de gente estranha, todos vestidos da mesma forma.
Das chaminés das casas saía o fumo das lareiras acesas e no ar o cheiro da panela da sopa que fervia, temperada com um bom naco de presunto ou toucinho.
Uma cavalgada e um cavaleiro apressado gritava
__ Deixem-me passar ! Fui ao Afonso comprar umas espigas doces para a minha mulher que está de esperanças E lá foi a galope com as caixas debaixo do braço, a caminho de casa.
Eu desci as escadas até à vila e ao volante do meu automóvel nem sei se sonhei ou se o castelo se encheu de vida naquele dia.
Natércia Martins
11 /04/2008
segunda-feira, 28 de janeiro de 2008
O quarto dos brinquedos
Quando vou visitar os netos, durmo no quarto dos brinquedos.
Este fim de semana, fui lá. A casa é grande, situada num lugar calmo e com sol a entrar por todas as janelas.
Quando a noite cai todos dormem
A luz do candeeiro público ilumina tenuamente o quarto.
Adormeci.
Pela madrugada acordei e olhei em volta. Que grande animação !
Pois é .....
Os brinquedos saíram de dentro do grande caixote e andavam pela casa numa tremenda “ rebaldaria”.
Por baixo da minha cama um comboio de pilhas percorria os espaços livres com as luzes a piscar. De vez em quando, o pequeno maquinista, fazia soar a sirene. Nas carruagens sentavam-se todos os animais e bonecos, em perfeita harmonia: leões, peluches, gatinhos, cães, macacos e um elefante. E riam, e riam ....
O polícia de lata ia e vinha até à porta do quarto. Lá ao fundo, um dragão desenhado no tapete, sacudia-se todo, com as cócegas que o combóiozinho, lhe provocava à sua passagem.
Sentei-me na cama. Seria possível ?
E foi, então, que ouvi um choro fininho, sentido. Levantei-me. Espreitei e no fundo de uma caixa de papelão, mesmo lá no fundo, uma bonequinha de plástico sem uma perna. Era ela que chorava .
Olhou-me. Vi os seus olhos castanhos, cheios de lágrimas, implorar que a tirasse dali.
Curvei-me sobre o caixote. Estendeu-me sobre o caixote. Estendeu-me um braço. O outro também estava partido. Aninhou-se no meu colo e olhou em volta, admirada de tanto movimento.
Contou-me que fora presente de aniversário.
Vinha embrulhada em papel prateado com um laçarote em cima. Em cima da mesa viu o bolo com as velinhas de coloridas e e todos os familiares da menina, cantar os parabéns.
Andou de automóvel e de carrinho de bébé. Vestiu casacos de lã e calças de papel.
Apaixonou-se pelo palhacito de cabelo vermelho e boca pintada.
Ele também gostava dela. Passeavam de mão dada e trocavam beijos doces. Dormiam no fundo do caixote bem juntinhos.
Contavam segredos um ao outro e riam, e riam, felizes.
Um dia aconteceu o acidente. Alguém pisou, sem querer, a pequena boneca.
Sem uma perna e um braço partido, já não era bonita e foi posta de lado. Ficou no fundo do caixote dos brinquedos.
Todas as noites ouvia a animação que se fazia cá fora mas impotente nas suas deficiências, ali ficou esquecida.
O pior é que o palhacito, sua grande paixão, também se esqueceu dela.
Olhou em volta à procura. Mais algumas lágrimas caíram dos olhitos cansados da boneca. É que o bonequinho de boca pintada e cabelo vermelho, corria de mão dada com a bailarina. Esta, dançava em pontas, nos sapatos cor de rosa e folhos verdes, mostrando duas pernas perfeitas, indiferentes a mim e à minha amiga.
O comboiozinho lá andava às voltas reluzente e de luzes a piscar com os animais e bonecos nas carruagens.
Ela não parava de chorar. No seu coraçãozito de boneca, a mágoa e a raiva de ser trocada e esquecida.
__ Pensam que não tenho sentimentos. Põe a mão aqui no meu peito, disse-me ela.
Vês como bate ? É a emoção de voltar a ver os meus amigos com quem brinquei tanta vez. O meu palhacito ! Tenho saudades da menina a quem me deram de presente. O meu palhacito !
Foi bom votar a vê-lo! Que bom ! Podia dizer-lhe tantas coisas bonitas ! Não posso. Ele nem sequer me olha ! Mas foi bom !
A manhã começou a raiar. Lentamente os brinquedos voltaram aos seus lugares dentro do caixote.
Peguei na bonequinha e com muito cuidado coloquei-a numa estante no meio dos livros.
Manhã clara ! Um a um os habitantes da casa, iniciaram a sua lida sem se aperceberem que na calada da noite, enquanto se dorme, naquele quarto há alegria, festas e dramas.
Eu, quando me levantei, passei pela estante dos livros, a boneca sorriu como a dizer-me:
__ Obrigada por me teres dado a oportunidade de voltar a ver o meu palhacito, mais uma vez...
Este fim de semana, fui lá. A casa é grande, situada num lugar calmo e com sol a entrar por todas as janelas.
Quando a noite cai todos dormem
A luz do candeeiro público ilumina tenuamente o quarto.
Adormeci.
Pela madrugada acordei e olhei em volta. Que grande animação !
Pois é .....
Os brinquedos saíram de dentro do grande caixote e andavam pela casa numa tremenda “ rebaldaria”.
Por baixo da minha cama um comboio de pilhas percorria os espaços livres com as luzes a piscar. De vez em quando, o pequeno maquinista, fazia soar a sirene. Nas carruagens sentavam-se todos os animais e bonecos, em perfeita harmonia: leões, peluches, gatinhos, cães, macacos e um elefante. E riam, e riam ....
O polícia de lata ia e vinha até à porta do quarto. Lá ao fundo, um dragão desenhado no tapete, sacudia-se todo, com as cócegas que o combóiozinho, lhe provocava à sua passagem.
Sentei-me na cama. Seria possível ?
E foi, então, que ouvi um choro fininho, sentido. Levantei-me. Espreitei e no fundo de uma caixa de papelão, mesmo lá no fundo, uma bonequinha de plástico sem uma perna. Era ela que chorava .
Olhou-me. Vi os seus olhos castanhos, cheios de lágrimas, implorar que a tirasse dali.
Curvei-me sobre o caixote. Estendeu-me sobre o caixote. Estendeu-me um braço. O outro também estava partido. Aninhou-se no meu colo e olhou em volta, admirada de tanto movimento.
Contou-me que fora presente de aniversário.
Vinha embrulhada em papel prateado com um laçarote em cima. Em cima da mesa viu o bolo com as velinhas de coloridas e e todos os familiares da menina, cantar os parabéns.
Andou de automóvel e de carrinho de bébé. Vestiu casacos de lã e calças de papel.
Apaixonou-se pelo palhacito de cabelo vermelho e boca pintada.
Ele também gostava dela. Passeavam de mão dada e trocavam beijos doces. Dormiam no fundo do caixote bem juntinhos.
Contavam segredos um ao outro e riam, e riam, felizes.
Um dia aconteceu o acidente. Alguém pisou, sem querer, a pequena boneca.
Sem uma perna e um braço partido, já não era bonita e foi posta de lado. Ficou no fundo do caixote dos brinquedos.
Todas as noites ouvia a animação que se fazia cá fora mas impotente nas suas deficiências, ali ficou esquecida.
O pior é que o palhacito, sua grande paixão, também se esqueceu dela.
Olhou em volta à procura. Mais algumas lágrimas caíram dos olhitos cansados da boneca. É que o bonequinho de boca pintada e cabelo vermelho, corria de mão dada com a bailarina. Esta, dançava em pontas, nos sapatos cor de rosa e folhos verdes, mostrando duas pernas perfeitas, indiferentes a mim e à minha amiga.
O comboiozinho lá andava às voltas reluzente e de luzes a piscar com os animais e bonecos nas carruagens.
Ela não parava de chorar. No seu coraçãozito de boneca, a mágoa e a raiva de ser trocada e esquecida.
__ Pensam que não tenho sentimentos. Põe a mão aqui no meu peito, disse-me ela.
Vês como bate ? É a emoção de voltar a ver os meus amigos com quem brinquei tanta vez. O meu palhacito ! Tenho saudades da menina a quem me deram de presente. O meu palhacito !
Foi bom votar a vê-lo! Que bom ! Podia dizer-lhe tantas coisas bonitas ! Não posso. Ele nem sequer me olha ! Mas foi bom !
A manhã começou a raiar. Lentamente os brinquedos voltaram aos seus lugares dentro do caixote.
Peguei na bonequinha e com muito cuidado coloquei-a numa estante no meio dos livros.
Manhã clara ! Um a um os habitantes da casa, iniciaram a sua lida sem se aperceberem que na calada da noite, enquanto se dorme, naquele quarto há alegria, festas e dramas.
Eu, quando me levantei, passei pela estante dos livros, a boneca sorriu como a dizer-me:
__ Obrigada por me teres dado a oportunidade de voltar a ver o meu palhacito, mais uma vez...
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