terça-feira, 15 de maio de 2007

Fagarra ou Ganfarra ?


Ti Zefa era a mulher que na aldeia “ aparava” os bébés que nasciam.

Como não havia hospital ou maternidade por perto, fosse rica ou pobre, todas as mulheres recorriam às mãos hábeis e curiosas da Ti Zefa.

Claro que não havendo sequer os cuidados mínimos de higiene todos , ou quase todos, nasciam sem mazelas, pelo menos visíveis.

Fosse a que horas fosse, estivesse na cama ou no trabalho do campo, havia sempre um marido aflito a gritar por ela:

__ Venhadepressa que a mulher já está com as dores Não se demore !

E lá ia ela ligeirinha a “ atender” a parturiente.

Lavava as mãos à pressa e com a mesma pressa chegava.

E tudo começava

O marido ficava à porta, do lado de fora. Podia ser preciso alguma coisa.

Ele tinha parte passiva na questão.” Aquilo” era coisa de mulheres. Ficava perto do quarto sentado a ouvir e quando o primeiro choro do bébé soava, alegrava-se e suspirava de alívio. Pronto ! Já está !

A Ti Zefa, acabado o serviço, era agora a sua vez de uma “ pinguinha” para acalmar. E se ela gostava ......

Sentava-se numa cadeira junto à cama da comadre e ficava a olhar embevecida, o bébé que dormia

É que todas as mães da aldeia lhe transmitiam o estatuto de Comadre por lhes ter “ aparado “ os filhos Isto é lhes ter feito o parto. Era a única entendida por aqueles lados. Tinha muitas comadres, por isso.

Para companhia de boas petiscadas era a comadre Marquinhas.

Cozinheira de profissão. Companheira e comadre de bebida. Tambem ela gostava, e muito ........

Cara redonda, vermelha, com algumas borbulhas. Sinais evidentes de quem bebia bem.

Um antigo governante português dizia que “ beber um copo de vinho era dar de comer a um milhão de portugueses “

Não deixavam créditos por mãos alheias. Bebiam bem até fartar !

A Senhora Marquinhas era chamada para os casamentos e batizados. Uns dias antes da boda ia a casa dos pais da noiva ou do noivo, conforme o caso e “ atacava” logo com um copo de tinto. Depois de ajudar a matar o porco ou os carneiros iam mais uns quantos para aquecer.

As receitas dos cozinhados do casamento já se faziam por intuição A comida chegava sempre.

Os convidados na sua maioria, gente do campo, tinham uma refeição melhorada. Era dia de festa e os pais dos noivos não olhavam a despesas Era em tudo um dia especial Havia que disponibilizar o melhor tanto para a boda como para a cozinheira. Mais filhos para casar e esta cozinheira a saber os “ preceitos” todos. Vinho com fartura e a Comadre Marquinhas já ficava contente.

Quando as duas se juntavam era uma festa.

Domingo à tarde na aldeia. Ninguem por perto e lá iam as duas até à taberna do Ti Xico Sapateiro. Conversavam e conversavam as desgraças da vida. Ambas viúvas de muitos anos. Uma porque o filho não dava notícias há muitos anos A outra porque a filha se casou para longe e raramente vinha ver a mãe. O genro tambem não era “ grande coisa “

As duas desfiavam um rosário de tristezas que se iam avolumando conforme o vinho ia diminuindo dentro da garrafa. O taberneiro ia enchendo de tinto .... E elas iam bebendo .......

E conversavam ..... e bebiam ........ e mais um copo ...... mais uma gargalhada ......

As faces já vermelhas mostravam bem o resultado de uma tarde de conversa e bebida .

Já noite fechada, Ti Zefa olha para a rua por entre a porta entreaberta. Vê que já é noite fechada . Olha para a garrafa vazia , vira-se para a comadre e comenta:

__” Oh Comadre ! Como nós estemos. Já chama fagarra a uma ganfarra “!!!!!!!


Natércia Martins



As botas do meu pai


A tarde corria devagar. Aliás, na aldeia, a tarde corre sempre devagar. Não há muito para fazer, além de cuidar dos animais. Há que regar as plantas: couves, milho e batatas. Mas isso faz-se logo pela manhã, quando o “ fresco “ se faz sentir. E que bom é o fresquinho da manhã, no meio do milho com a água a correr e molhar os pés. Eu gosto !

Há muitos anos que não faço este trabalho. E tenho saudades .....

Depois do almoço fica a “ sorna “. Com o calor a apertar e a cantiga das cegarregas convida à sesta dormida à sombra de uma árvore se as formigas cavalonas não se lembrarem de nos interromper o descanso com ferroadas dolorosas e chatas.

Resta a tarde, longa, até à noite.

Por entre um abrir e fechar de olhos sonolentos e preguiçosos há que pensar e talvez recordar .

O local mais fresco e aprazível fosse o “ Pivetas “. O Pivetas era o sapateiro. É isso mesmo ! Ali também se conversava e por entre cabedais, fivelas, sandálias e chinelas, encontravam-se umas figuras femininas com pouca roupa, impressas nuns postais comprados às escondidas e guardados nas prateleiras, bem lá no fundo.

Juntavam-se ali à espera que o Pivetas desse ordem de uma espreitadela às meninas dos postais em fato de banho, ou até uma ou outra mais despida.

Aquilo era uma festa ! O poder espreitar para um daqueles postais !

Depois vinham as histórias contadas quase sempre na primeira pessoas. Cada um dos “ visitantes” tinha uma história. Assim o sapateiro tinha sempre companhia. Ele gostava. Um dia a minha avó chamou a atenção do meu pai que as botas precisavam meias solas.

O meu pai pegou nelas e, claro, foram parar à oficina do Pivetas. Havia mais uns quantos sapateiros mas aquele tinha os postais mais bonitos, embora a colecção,fosse antiga e vista e revista.

Pegou nas botas com a promessa que na semana seguinte estariam consertadas.

A tarde convidava à conversa. Sentou-se num banquito perto da porta, onde já se encontravam mais dois ou três clientes.

O Pivetas com o avental de cabedal e a forma colocada nos joelhos martelava uns pregos numa chinela de mulher. Olhou para o meu pai e perguntou:

__ Ó senhor Nunes, como foi aquela história do canivete e o padre Zé ?

O meu pai encabulou porque embora a história tivesse uns laivos de cómica tinha-lhe valido uma valente tareia da minha avó, que não era mulher para brincadeiras.

Risota geral. Eles tinham ouvido a mesma história dezenas de vezes. Mais uma vez ...... nem parecia mal. Há um ou outro ponto que se acrescenta e tem sempre contornos diferentes.......

Apesar de tudo a história é gira .......

Parece que, quando o meu pai era pequeno o Padre Zé lhe pedia para ajudar à missa. Normalmente eram os garotos que mudavam o missal, levavam a bandeja para a comunhão, colocavam o vinho e água na galheta.

A isso chamava-se ajudar à missa

Eram sempre os garotos mais educados que ficavam encarregues desse trabalho.

E o pequeno António lá ia mesmo contrariado, mas não havia outro remédio ....

Um Domingo, à porta da Igreja e junto dos homens, tentando imitá-los pegou num canivete de cabo branco, de corno e afiava uma varinha de salgueiro Com calma, o padre chegou e olhou para as mãos do pequeno. Deitou - -lhe a a mão e levou para dentro da Igreja o objecto que considerava perigoso. Deu início ao acto sagrado. Lá para o meio da missa quando chegou a ocasião dizia o padre:

__ Muda o missal, António !

__ Não mudo. Dê-me o canivete.

__ Não posso. No fim da missa.

__ Não dá ? Não mudo o missal !

No público ninguém ouvia O diálogo entre os dois era sussurrado, em surdina.

__ Muda o missal !

__ Não mudo !

Foi, então, que o padre se viu obrigado a levantar a batina e tirar do bolso das calças, em plena missa, o canivete e passá-lo para as mãos do garoto. Pronto ! A história foi contada mais uma vez.

Fim do dia. E as botas ?

__ Senhor Nunes, estou com elas, dizia o Pivetas.

E a pergunta repetiu-se durante uma ou duas semanas.

__ As botas ?

__ Estou com elas, Senhor Nunes .....

Nas frase “ Estou com elas “ fazia supor que estava com elas no conserto. A meio, talvez ....

Até que um dia, o meu pai perguntou mais uma vez se as botas estavam prontas. A resposta repetiu-se.

__ Estou com elas ... Estou com elas ....

Olhando para os pés do velho sapateiro ....... e lá estavam elas ....... calçadas !!!!!!!

Pois ... Até falava verdade. “ Estou com elas” significava que estava com elas ...... calçadas .....

E assim, se ia governando, sem precisar de comprar botas ou sapatos. Ia calçando as dos fregueses que as levavam para consertar ....

Sempre ouvi dizer: “ Quem não tem cão .... caça com gato “ ........

Natércia Martins