terça-feira, 29 de outubro de 2013

Saltos Altos


Saltos altos

O meu pai entrou em casa com uma caixa novinha em folha, debaixo do braço. Colocou-a em cima de uma cadeira e foi embora.

Eu, curiosa, e pequena ainda, muito devagarinho e sem ninguém dar por isso, levantei a tampa. Que maravilha! Uns sapatos de salto alto. Amarelos e com um brilho que achei lindo. Luziam ainda mais quando tirei a tampa e olhei maravilhada. Eram de verniz. Como eu gostaria de crescer depressa para poder usar uns sapatos daqueles. Já me via empoleirada no cimo daqueles saltos enormes. Mas ainda iria faltar muito tempo. Apenas poderia sonhar e admirar aquela pequena maravilha.

A minha mãe entrou em casa vinda do trabalho e viu a caixa. Nem ligou muito. Não mostrou curiosidade. Eu fiquei quietinha à espera que quando abrisse a caixa soltasse uma exclamação de alegria.

Algum tempo passou e eu curiosa. E ela que não mostrava o mínimo interesse.

Ao jantar a caixa ainda lá estava por abrir. Que coisa! Parecia que o tempo não passava. O meu pai também não disse nada. E a caixa fechada em cima da cadeira.

Já tarde a minha mãe notou a presença de um objecto em cima da cadeira. Olhou para o meu pai e perguntou.

-- Foste tu que compraste?

-- Sim. Fui eu. Espero que gostes.

A minha mãe levantou devagarinho a tampa. Olhou uma, duas vezes. Aguçou a vista, franziu o nariz. Olhou mais uma vez. E quando eu pensava que iria sair uma explosão de alegria, ficou vermelha, olhou para o meu pai e gritou:

-- Amarelos? Vou parecer que tenho pés de canário. Nunca, na minha vida, vou usar uns sapatos amarelos. Quem pensas que sou? Uma qualquer que usa esta “coisa” ?

E os sapatos lá ficaram tristes dentro da caixa. Nunca ninguém os calçou.

A minha mãe não gostava do amarelo. E eu, ainda hoje, olho para a caixa dos sapatos amarelos e dou um sorriso. Uns sapatos tão lindos, com um salto fininho que fazia inveja a umas pernas bem-feitas. Eram lindos os sapatos !

O tempo passou. Cresci mas nunca fui capaz de os calçar. Quando mudei de casa trouxe comigo a caixa e os sapatos. Herdei-os como outros móveis que tenho e também vieram juntamente com pequenas lembranças.

Saltos altos nunca me fascinaram muito. Quando, passados uns anos e cheguei à idade de poder usar, já não me pareciam assim tão bonitos.

Fui a bailes e festas. Levava saltos altos, claro, mas nunca amarelos.

Mas penso: que ideia a do meu pai em comprar uns sapatos amarelos para dar de prenda à mulher. E de salto alto!

Será que ele não sabia que ela não gostava do amarelo?

Natércia Martins

domingo, 7 de abril de 2013

Na Quaresma


Na quaresma

A religiosidade nem sempre foi vivida da mesma forma. Evolui. Modifica-se, tanto com o rolar dos tempos como as influências de outros locais. Ainda bem!

A quaresma, na aldeia sem luz elétrica e encravada na serra entre pinheiros e mato, com as mulheres, na sua maioria vestidas de negro, embiocadas com lenços pretos na cabeça a lembrar “ burkas”, vivia-se cheia de medos do inferno com penas pesadas da mão divina, ou braseiros a queimarem-nos a alma.

E era assim que a quaresma era vivida. Sem um bailarico para nos animar. Com as músicas transmitidas pela rádio roufenho e sempre de cariz religioso. Havia a proibição de comer carne e fazer jejum, muito jejum, a que nós crianças escapávamos, precisamente por sermos crianças,

As missas em latim, que ninguém entendia nada. Mas tínhamos obrigação de assistir.

A igreja sombria, pesada, de pedra, era por si já um respeito. As imagens, também, esculturas de pedra olhavam-nos como uma ameaça.

Os pecados! Os pecados são pecados e há que os confessar. O padre sentado, imóvel, dentro do confessionário, farto de tanto pecado igual, dava a penitência maior ou menor conforme ouvia melhor ou pior o que se lhe dizia. A imaginação fértil da juventude inventava e confessava pequenos pecadilhos que nem cometíamos. Era o que vinha à cabeça na hora. É que a confissão era mais que um ataque de nervos. Coisas banais, tais como roubar laranjas no quintal do vizinho, esconder os sapatos da avó, etc. etc. Grande pecado, que hoje me atormenta, ainda, foi quando eu e os meus dois vizinhos, inocentemente, fomos brincar e encontrámos um campo repleto de abóboras. Lindas! Pequeninas, redondinhas e ainda verdes. Com um prego grande e durante toda a tarde divertimo-nos a escrever “ coisas” nas ditas abóboras. Toda a tarde! ….

Não nos lembrámos que ao crescer, crescia tudo o que lá gravámos. Todos os palavrões enormes que sabíamos. Se um sabia, o outro também sabia.

A minha mãe quando deu conta nem esperou pela confissão no confessionário. Deu-nos a penitência, logo ali, à chapada.

Voltando á quaresma.

A Semana Santa era vivida com um espírito de religiosidade e sacrifício imposto pela tradição. O que se podia, ou não fazer. 

Nunca levei muito a sério todos os rituais impostos. Aqueles longos sermões encomendados para pagamento de promessas com o padre empoleirado no alto do púlpito, e o varandim enfeitado com toalha bordada, falando das penas do purgatório e do inferno. Havia procissões da Via Sacra e cerimónias o dia todo prolongando-se pela noite escura.

Eu, que gosto de luz, sol e ver o inicio do dia tinha que ficar ali com o escuro natural da igreja. Já por isto mesmo era um sacrifício.

Na sexta-feira santa, que era conhecida por trevas – sexta-feira de trevas – as cerimónias eram bem diferentes. Por ser trevas, costumava-se levar uma pedra grande e bater com ela no chão de madeira a fim de fazer barulho. Muito barulho! Era a despedida da quaresma e espantar os demónios e entrar no sábado de aleluia. Costume antigo que se perdeu nos tempos.

A igreja não tinha bancos. Eram as pessoas que tinham uns banquinhos que levavam de casa. As mulheres usavam saias longas, rodadas. Ao sentar-se, nós, com a ponta do pé desviávamos os referidos bancos. Lá iam as mulheres ao chão. Tínhamos o cuidado de sair do local e ficar com cara de santo. Pois santos! No mesmo ritual das trevas e as pedras a bater no chão, as saias das mulheres ajoelhadas ali tão perto. Levávamos um ou dois pregos que pregávamos no fundo das saias. Estas ficavam presas ao chão. Mais risota.

O pior foi, quando pediram a um frade para fazer o sermão, encomendado por gente grada da aldeia. O frade foi cedo demais e para ocupar o tempo que faltava, lembrou-se fazer as suas orações e meditações pela coxia da igreja, que é de laje e xisto. Ia andando pela igreja acima até ao altar e dando a volta chegava à porta principal, num trajeto feito de oração.

Alguém trouxe de casa uma bola de algodão embebida com o líquido da garrafinha de mau cheiro, que sobrou do carnaval e a atirou para dentro do capuz do frade.

Este notava o cheiro pestilento e os paroquianos que iam chegando, também. Iam - se entreolhando desconfiados pensando quem seria. Depois de algum tempo alguém se lembrou de procurar dentro do capuz do frade. Lá estava ela sossegadinha, mas com tal cheiro que nem no inferno das ilustrações que nos mostravam na catequese.
                Natércia Martins