De Tomar ao Entroncamento
Era grande, preto, feio e deitava uma fumarada pegajosa logo que se punha em movimento..
No entanto as portas e janelas tinham bordaduras amarelas que brilhavam ao sol.
No cais de embarque havia um homem de fato de ganga azul que com o apito estridente, que se metia pelos ouvidos, dava ordem para o comboio iniciar a marcha. E ele lá começava, devagar, como que a pedir desculpa de andar tão devagar, tão devagarinho. Mas o carvão e as máquinas não davam mais.
Quem se atrasava precisava de correr, mas apanhava sempre o comboio.
O Comboio ia de Tomar ao Entroncamento. Tenho saudades dessas viagens. A distância entre as duas localidades não é muito grande mas o comboio demorava muito tempo.
Sentávamo-nos onde queriamos, ou onde houvesse um lugar vago. Ali viajavam os militares e as vendedeiras do mercado. Junto com as vendedeiras iam ao colo ou junto do chão, as galinhas, laranjas, figos e uvas.
Todos nos conheciamos porque eram sempre as mesmas pessoas.
A tropa vindo do quartel de Tomar e em direcção às suas casas no fim de semana ou em dia de folga.
E aí estava estabelecida mais uma confusão. Entravam na primeira carruagem e quando chegavam perto de estação de Curvaceiras, saiam e pouco depois entravam na ultima carruagem. Iam aos figos ou às uvas. Entravam e saiam com o comboio em movimento. E tinham tempo. Depois, muito bem instalados, nos bancos de madeira, já polidos de tantos passageiros transportados. De vez em quando, entrecortado pelo taf taf das rodas de ferro nos carris, gastos pelo tempo, o piiiiiiiiiii agudo avisando da sua presença.
Algumas passagens de nivel com a guarda de bata amarela e bandeirinha vermelha na mão, ficavam fechadas com a mesma lentidão com que o comboio passava..
Mas a viagem, longe de ser monótona, pese embora o tempo demorado, que era bastante, para não dizer que era imenso, era deveras divertida.
Os militares e vendedoras já vindas do mercado, insultavam-se mutuamente. Fosse pela ocupação de um lugar, fosse pelo incómodo que causava um cesto, ou ainda pelo cheiro algo incomodativo vindo de algum passageiro. Também havia disso. Ah! Sim Havia !
O comboio era o local certo para se arranjar namoro. Um namoro inocente que não passava da mão no ombro ou de frase mais atrevida.
Que saudades eu tenho dessas viagens de Tomar ao Entroncamento. Passava-se a linha, aliás um emaranhado de linhas férreas e entrávamos no Foguete que nos levava a Lisboa. Não tinha militares nem vendedoras do mercado. Era mais rápido e de cor prateada, mas também parava em todas as estações.
Quando viajava no comboio de Tomar ao Entroncamento tinhamos a sensação que a viagem nunca mais chegava ao fim, com os bancos de madeira, incómodos e atulhados de gente.
Recordo um militar de cabelo louro, um tanto refilão, aprumado na farda gasta, num dia de calor intenso, já farto da viagem, subiu a um dos bancos e quando pensávamos que iria fazer alguma declaração de guerra, ou de protesto, pôs - se a declamar versos de Camões:
“ Amor é fogo que arde sem se ver “.................
Estava apaixonado o rapaz ! Risota e assobios. Muito convicto no que dizia, falava, falava .....
O revisor, de alicate na mão madou-o calar, tocou-lhe no braço, gritou-lhe, mandou -o sair de cima do banco, pediu -lhe o bilhete. E ele sempre a declamar versos de Camões.
O revisor encolheu os ombros, apontou um dedo à cabeça e foi embora revistando os outros bilhetes.
Natércia Martins -- 2011-11-13