terça-feira, 29 de março de 2011
Que é feito de ti ?
João Inácio era um belo rapaz vindo trabalhar para Lisboa, onde uma irmã vivia com o marido e um filho.
Filho de gente humilde das terras onde os pinheiros, pedras e mato são paisagem relevante. Procurou instruir-se, trabalhando de dia e estudando à noite. Quantas vezes a cabeça cheia de sono, lhe caía sobre os livros. E ele, teimoso, fazia os possíveis por decorar os textos escritos, onde , sequiso de saber, ia buscar os conhecimentos necessários aos testes apresentados pelos professores.
O tempo foi passando até que conheceu, a colega de turma que lhe pareceu bem diferente das outras meninas.
Chegou o tempo da tropa. Mobilizado para uma das colónias trazia sempre consigo a fotografia de Emília.
No mato, por entre tiros e o medo que os assolava a todos, a fotografia acompanhava-o como um talismã.
Sempre que as dificuldades se lhe deparavam, o simples olhar passado à pressa pela foto, sentia - -se cheio de coragem para voltar à sua terra. E o tempo ia passando. As cartas, escritas, por vezes em situações de grande stress, traduziam toda a emoção de uma guerra para onde tinha sido chamado, e com a qual nada tinha nada a ver.
Chegou o fim da comissão. Voltou e a primeira coisa que fez, foi procurar a sua Emília.
Encontrou-a diferente. Escrevera-lhe cartas longas, cheias de emoção. Recebeu, em troca , versos e missivas com toda a ternura que uma jovem apaixonada pode escrever.
Mas estava diferente. Mais tímida, ela que não demostrava timidez, nas cartas e nos versos que enviava. Mais fria, contrariando, os versos e os projectos de uma vida a dois. E o tempo, mais uma vez foi passando. O distanciamento tornou-se cada vez maior.
As cartas ficaram cada vez mais raras, até que não chegaram mais, tanto de um lado como do outro.
E o tempo voltou a passar .....
Emília sentou-se no muro do jardim por entre azáleas e buxos. Olhou as pedras que faziam a calçada do carreiro. As formigas iam e vinham na azáfama do costume carregando pequenos grãos e sementes trazidos dos canteiros.
Sabia de cor quase todos os textos das cartas que João lhe enviara há anos. De tanto as ler, uma por uma, sabia-as de cor. Falou alto como que a relembrar o que escrevera em resposta àquelas cartas.
Onde estaria João ? Nunca mais se encontraram. A vida levou-os cada um para seu lado e agora as saudades começaram a fazer-se sentir.
Levantou-se e andou algum tempo até à beira da fontezinha pequena, apanhou uma mão cheia de pedrinhas e começou a atirá-las uma a uma, para a água onde nadavam dois peixinhos vermelhos.
A velhice é assim ! As recordações antigas voltam à nossa memória. Factos que julgávamos perdidos E recorda, a cada dia que passa, muito do que viveu com as cartas de João.
Lembrou-se da cara redonda, muito corado, quase sem barba. Alto e magro.
Virou a cara ouvindo o marulhar de pés no saibro do caminho. Era João.
Viu uns olhos cansados e uns fios brancos a matizar a cabeleira ainda na sua maioria, de cabelos pretos. A vida traz-nos, por vezes, factos que julgávamos esquecidos.
__ Vim ver-te. O que é feito de ti ?
Trazia com ele dois meninos pequenos.
-- São os meus netos.
Emília levantou, ainda mais a cabeça, mostrando o rosto cansado, também. Os olhos tinham o fulgor de outrora e os cabelos já na maioria, brancos.
Os meninos largaram a mão firme do avô e debruçaram-se no pequeno lago, rindo à gargalhada por causa dos peixinhos vermelhos.
-- Avô. Olha que lindos !
João olhou em volta Estava tudo na mesma Aquela casa era-lhe familiar, de visitas dos tempos de rapaz Os craveiros nos vasos, as hortenses azuis, os jacintos amarelos ..... Tudo ! Tudo na mesma !
Os degraus da escada em granito, servira tantas vezes de banco, onde se sentavam, mão na mão. Agora, ali, dois velhos, sentados na beira do laguinho a ver os dois meninos a brincar com os peixes vermelhos.
Natércia Martins
2011