segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Piloto


O Piloto era um cão preto que havia em casa dos meus pais. Acompanhava o meu pai na caça. Não foi ensinado a trazer as perdizes à mão mas ficava parado junto da caça morta por um tiro certeiro do meu pai ou do meu irmão. O que gostava mesmo era da escola. A minha mãe dava aulas pertinho de casa. O cão ia com ela de manhã, ao início do dia. Nesse tempo as crianças levavam almoço que, na maioria das vezes se traduzia por um pedaço de broa e uma sardinha frita. O Piloto observava todas as saquinhas da merenda. Se lhe cheirava não fazia cerimónia em “atacar” a comidinha. Quando isso acontecia a minha mãe repunha a merenda. Presunto ou chouriço dentro de um pão. Quantas merendas destas foram ganhas à custa do Piloto, que ficava com a fama e não com o proveito.
Aquele cão tinha atitudes de humano. Se o era o não nunca o saberemos. Mas que tinha coisas que não eram de um ser que dizem irracional, lá isso tinha.
Quando o meu pai vinha à tarde para casa o cão ouvia ao longe o trabalhar do motor do carro e corria disparado ao seu encontro. O encontro era sempre numa lomba que há perto do pinheiro manso. Aí abria-lhe a porta e o cão subia para o banco ao lado do meu pai e sentava-se como pessoa feliz.
O cão sabia sorrir quando lhe passávamos a mão na cabeça. Olhava-nos com uns olhitos meigos a dizer: passa lá a mão outra vez
Certo dia demos pela sua falta de manhã. A minha mãe foi para a escola, mas o Piloto não apareceu. Não apareceu para o almoço. É que não falhava a hora do almoço. Não apareceu para esperar o automóvel à tarde. À noite não chegou para jantar. Ficámos preocupados. No dia seguinte também não estava. Foi aí que resolvemos ir ao pinhal onde o meu pai caçava. Era perto de casa. Depois de andarmos quase toda a manhã a “ bater” o mato e chamar por ele, lá estava, deitado com uma pata dianteira presa na armadilha que os caçadores furtivos usavam para apanhar raposas.
Todo o caminho foi feito a chorar. As lágrimas corriam-lhe no pêlo. Trouxemo-lo ao colo. Lambeu-nos as mãos e os braços como um gesto de quem beija, agradecido. Aquela pata nunca mais teve força. Corria, mesmo assim, pela quinta e sentava-se nos degraus das escadas da minha avó. Ele e eu a ver o moleiro com os burros presos uns aos outros pela arreata com os foles do grão e da farinha em cima do lombo calejado.
Era um cão já velho. O pêlo ruço pelo correr dos anos Acompanhou o meu crescimento e o do meu irmão. Era família.
Era filho da cadela da vizinha. Quando nasceu e abriu os olhitos pequeninos e muito pretos Fui espreitar. Gostava de ver todos a mamar. A mãe olhou - me e penso que me disse: Leva aquele pretinho. É tão lindo!
Talvez tenha sido um cão igual a todos os outros. Para mim foi muito especial. Era o Piloto!
Brincava comigo enquanto o meu irmão aprendia a andar de bicicleta contornando os canteiros de violetas e o grande limoeiro da quinta.
Ajudou-nos a crescer. Encharcava-nos quando se sacudia depois de um mergulho no tanque de rega. Ladrava quando tinha fome e não nos resolvíamos a ir almoçar.
Aconteceu um dia o que acontece a quem já é velho: morreu! Morreu muito velho, cego e com pouca mobilidade. Foi a enterrar embrulhado num lençol na cova funda onde o meu pai plantou uma roseira.
Nunca me vou esquecer do Piloto. O meu amigo de infância. Brincava comigo a correr na eira onde no verão se estendia o milho e o centeio acabado de colher. Aí espalhávamos as molas da roupa de dentro do balde preso num prego num pau que servia de suporte à corda. A eira também servia para pendurar a roupa. Era espaçosa e limpa quando não tinha grão a secar ao sol ou depois da debulha.
A vida continua. Todos seguimos rumos diferentes. O meu pai e a minha mãe também faleceram, mesmo não sendo velhos ainda. A quinta já não é nossa também. Mas a roseira continua no mesmo lugar como que a lembrar o velho Piloto.

Natércia Martins