domingo, 7 de abril de 2013

Na Quaresma


Na quaresma

A religiosidade nem sempre foi vivida da mesma forma. Evolui. Modifica-se, tanto com o rolar dos tempos como as influências de outros locais. Ainda bem!

A quaresma, na aldeia sem luz elétrica e encravada na serra entre pinheiros e mato, com as mulheres, na sua maioria vestidas de negro, embiocadas com lenços pretos na cabeça a lembrar “ burkas”, vivia-se cheia de medos do inferno com penas pesadas da mão divina, ou braseiros a queimarem-nos a alma.

E era assim que a quaresma era vivida. Sem um bailarico para nos animar. Com as músicas transmitidas pela rádio roufenho e sempre de cariz religioso. Havia a proibição de comer carne e fazer jejum, muito jejum, a que nós crianças escapávamos, precisamente por sermos crianças,

As missas em latim, que ninguém entendia nada. Mas tínhamos obrigação de assistir.

A igreja sombria, pesada, de pedra, era por si já um respeito. As imagens, também, esculturas de pedra olhavam-nos como uma ameaça.

Os pecados! Os pecados são pecados e há que os confessar. O padre sentado, imóvel, dentro do confessionário, farto de tanto pecado igual, dava a penitência maior ou menor conforme ouvia melhor ou pior o que se lhe dizia. A imaginação fértil da juventude inventava e confessava pequenos pecadilhos que nem cometíamos. Era o que vinha à cabeça na hora. É que a confissão era mais que um ataque de nervos. Coisas banais, tais como roubar laranjas no quintal do vizinho, esconder os sapatos da avó, etc. etc. Grande pecado, que hoje me atormenta, ainda, foi quando eu e os meus dois vizinhos, inocentemente, fomos brincar e encontrámos um campo repleto de abóboras. Lindas! Pequeninas, redondinhas e ainda verdes. Com um prego grande e durante toda a tarde divertimo-nos a escrever “ coisas” nas ditas abóboras. Toda a tarde! ….

Não nos lembrámos que ao crescer, crescia tudo o que lá gravámos. Todos os palavrões enormes que sabíamos. Se um sabia, o outro também sabia.

A minha mãe quando deu conta nem esperou pela confissão no confessionário. Deu-nos a penitência, logo ali, à chapada.

Voltando á quaresma.

A Semana Santa era vivida com um espírito de religiosidade e sacrifício imposto pela tradição. O que se podia, ou não fazer. 

Nunca levei muito a sério todos os rituais impostos. Aqueles longos sermões encomendados para pagamento de promessas com o padre empoleirado no alto do púlpito, e o varandim enfeitado com toalha bordada, falando das penas do purgatório e do inferno. Havia procissões da Via Sacra e cerimónias o dia todo prolongando-se pela noite escura.

Eu, que gosto de luz, sol e ver o inicio do dia tinha que ficar ali com o escuro natural da igreja. Já por isto mesmo era um sacrifício.

Na sexta-feira santa, que era conhecida por trevas – sexta-feira de trevas – as cerimónias eram bem diferentes. Por ser trevas, costumava-se levar uma pedra grande e bater com ela no chão de madeira a fim de fazer barulho. Muito barulho! Era a despedida da quaresma e espantar os demónios e entrar no sábado de aleluia. Costume antigo que se perdeu nos tempos.

A igreja não tinha bancos. Eram as pessoas que tinham uns banquinhos que levavam de casa. As mulheres usavam saias longas, rodadas. Ao sentar-se, nós, com a ponta do pé desviávamos os referidos bancos. Lá iam as mulheres ao chão. Tínhamos o cuidado de sair do local e ficar com cara de santo. Pois santos! No mesmo ritual das trevas e as pedras a bater no chão, as saias das mulheres ajoelhadas ali tão perto. Levávamos um ou dois pregos que pregávamos no fundo das saias. Estas ficavam presas ao chão. Mais risota.

O pior foi, quando pediram a um frade para fazer o sermão, encomendado por gente grada da aldeia. O frade foi cedo demais e para ocupar o tempo que faltava, lembrou-se fazer as suas orações e meditações pela coxia da igreja, que é de laje e xisto. Ia andando pela igreja acima até ao altar e dando a volta chegava à porta principal, num trajeto feito de oração.

Alguém trouxe de casa uma bola de algodão embebida com o líquido da garrafinha de mau cheiro, que sobrou do carnaval e a atirou para dentro do capuz do frade.

Este notava o cheiro pestilento e os paroquianos que iam chegando, também. Iam - se entreolhando desconfiados pensando quem seria. Depois de algum tempo alguém se lembrou de procurar dentro do capuz do frade. Lá estava ela sossegadinha, mas com tal cheiro que nem no inferno das ilustrações que nos mostravam na catequese.
                Natércia Martins