quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A candeia da minha bisavó

A minha avó tem, pendurada, por cima da lareira, uma candeia. É muito velha e não está em muito bom estado.
Diz que era da avó do meu pai, portanto, minha bisavó. Tem um depósito que se enchia de azeite e por cima uma torcida feita de trapo velho. Era a iluminação daquele tempo.
Numas férias em que fui passar uns dias na aldeia, fiquei sozinha enquanto a minha avó e o meu avô foram tratar dos animais ao quintal.
Sentei-me no cadeirão, onde se senta o meu avô, frente à lareira acesa e olhei mais uma vez para a candeia. Arregalei os olhos. É que a sair do bico da candeia, muito devagarinho vinha uma menina vestida de cor-de-rosa e trazia uma varinha na mão. Fiquei muito admirada.
Oh! Vinha falar comigo.
__ Sara! Olha à tua volta.
Sentados nos degraus da escada estavam os anõezinhos, a Branca de neve, o Pirata com uma perna de pau e Ali Bábá, o capuchinho vermelho e o príncipe da história da Cinderela. A Cinderela também lá estava.
O sebastião dormia enroscado mesmo ao lado, levantou uma orelha, depois outra, mexeu a cauda e acordou. Quando viu tanta gente ia para se levantar assustado, mas eu disse-lhe que estivesse quieto que todas aquelas personagens eram das histórias que eu lia em pequena.
Um tapete mágico aterrou mesmo aos meus pés. Sentei-me em cima e voei pela janela aberta. Passei por cima das ruínas romanas de Conímbriga. Ali havia romanos e escravos a morar.
Na casa dos repuxos uma menina como eu chamou-me:
__ Sara! Vem brincar com estas pedrinhas que apanhei ali no lago.
Assim estivemos durante muito tempo.
A menina ria-se muito e eu também. Corremos por entre os muros do palácio. Já perto da noite veio uma criada buscá-la. E agora? O tapete voador tinha fugido e eu fiquei sozinha a chorar muito. A tal senhora vestida de cor-de-rosa veio ao meu encontro. Vinha a cavalo no gato da minha avó. O sebastião pousou e lá fomos as duas outra vez para casa.
Quando entrei era uma festa. Os anões brincavam à macaca, o pirata fazia piruetas só com uma perna, a Branca de neve ria-se muito com estas brincadeiras.
Enquanto isto se passava, bateram à porta. Era o lobo mau que fugiu da história da menina que ia levar o lanche à avozinha, na mata, e os caçadores vinham atrás dele.
A rapariga do Capuchinho vermelho também estava senta junto à lareira com o cestinho cheio de bolos, no colo.
A minha avó e o meu avô chegaram do quintal e correram com o lobo mau.
Esta história ficou uma trapalhada mas é uma pequena prenda dos teus 10 anos.
Quando vieres a casa da avó lembra-te da candeia da tua bisavó que continua pendurada num prego por cima da lareira. Pode ser que a menina vestida de cor de rosa te venha visitar de novo.
Natércia Martins
2012







quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A última viagem

Conhecia – os vagamente da minha antiga rua. Um dia, entrei naquela casa, não sei muito bem, qual a força que me impeliu. Foi por instinto ou talvez uma mão invisível e misteriosa me levasse lá.
Dei por mim a cuidar de uma família que mal conhecia.
As primeiras vezes foi-me muito estranho.
A mãe, senhora de estatura pequena, magra e frágil, suportava,nos ombros, com força incrível, a vida de filhos tão diferentes.
Pouco a pouco fui fazendo parte da família. Qualquer coisa que não sei explicar me vai empurrando, cada vez mais ali para dentro da porta.
É como se uma voz de alguém, que não sei quem é, me segredasse ao ouvido:
-- Entra. És lá precisa !
Nada se faz por acaso. Eu fui entrando.
Há uns anos jurei que nunca mais abria o coração a ninguém. Tranquei-o com um cadeado, imune a qualquer tentativa de me deixar levar pela emoção. Engano meu !
Aquela mão muito branca com dedos afiados, enlaçando os meus, comeveu-me. Depois uns olhos meigos, de cachorro escorraçado, fizeram o resto. Uma voz fininha, meiga, sumida, pediu água. O copo bateu nos dentes produzindo um tilintar que me percorreu o corpo todo como se fosse um raio que me atravessou os ossos um a um.
Era um homem que parecia muito mais velho do que na realidade era. Doente. Muito doente. Enterrado na cama de lençóis muito brancos e uma colcha bordada com rosas grandes. Antiga aquela colcha !
Herdada das mãos habilidosas da mãe, pessoa que até à minha chegada cuidava dele.
E foi assim que, sem dar conta, dei por mim a entrar devagarinho naquela casa antiga, de móveis velhos que fariam as delicias de um qualquer antiquário.
E eu, sem querer, ali estava, sentada numa cadeira forrada de palhinha entrançada, junto a um doente que mal conhecia. Pensei que fosse um anjo, aliás, parecia um anjo.
A cabeça e a face muito branca confundiam-se com o branco do lençol.
Delirava.
Perguntou pela fotografia.
-- Que fotografia ?
-- A que eu guardo no bolso do casaco.
Procurei no bolso do pijama. Não havia nada. Apenas e só um pouco de cotão.
Não me lembro de alguma vez lhe ter visto um casaco vestido.
A mãe, que entretanto entrou no quarto disse-me:
-- Não lhe ligues. Delira. Pergunta muitas vezes pela fotografia. Mas eu nunca vi nada.
Fechou os olhos, parecendo dormitar. Entrou, de novo, no torpor habitual.
Aproveitei para me levantar e dar uma vista de olhos pelo quarto. Lá ao fundo, uma velha mala. Tão velha que ao tentar levantá-la se desmanchou. Um livro, do meio de outros livros, caiu. Lá de dento saltou uma fotografia, velha, amarrotada e amarelada pelo tempo. Curvei-me e apanhei-a. Ah ! Aquela era a fotografia que ele procurava. Era eu ! Rapariga de vinte e tal anos, com vestido curto e farto “ rabo de cavalo”.
O que estava ali a fazer ? Como é que a fotografia foi ali parar ? Tudo tão estranho, como estranho foi o novo contacto com aquela família.
Sentei-me de novo. Ele dormia agora, com um ligeiro sorriso nos lábios.
Afinal morámos na mesma rua, em tempos.
Com o rolar do tempo e a vida que entretanto se modificou, nunca mais nos vimos, pensava eu. Afinal parece que não terá sio bem assim.
Chegou a noite e a hora de jantar. A fotografia ficou em cima da mesa de cabeceira. Iria esperar por momentos de lucidez para lhe fazer a pergunta que entretanto me “atazanava” a cabeça.
Porque estava a minha fotografia dentro do livro ? Quem a tirou ?
Quando abriu os olhos e meio zangada, perguntei:
-- O que é isto ? Que fotografia é esta ?
-- É tua. Não te conheces ?
-- Isso eu sei. Que é minha eu vi !
Uma lágrima grande rolou – lhe pela face macilenta.
-- Nem imaginas. Quem tirou essa fotografia fui eu. Deixei de ir ao cinema. Deixei de comprar pequenas coisas para conseguir o dinheiro para comprar uma máquina. Segui-te dias a fio. Sem te aperceberes tirei a foto. Foi a minha companhia em noites quentes de África. Ao por do sol, olhava o céu e via-te desenhada nas nuvens coloridas.
Eras a minha companhia. Em horas mais tristes e saudosas de tudo, cheias de angustia, lá estavas tu, sorridente no quadradinho de papel. Escrevi-te cartas que nunca enviei. Fiz poemas que nunca leste. E agora és tu que vieste tratar-me. Vou fazer a última viagem da minha vida. Levo-te comigo, mais uma vez.
Fechou os olhos e partiu ......

Natércia Martins